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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.24 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2018

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p101-123 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p101-123

 

ONGs no Brasil: contextualização histórica do cenário para atuação em psicologia escolar

 

NGOs in Brazil: historical contextualization of the scenario for acting in educational psychology

 

ONGs en Brasil: contextualización histórica de escenario para el trabajo en psicología escolar

 

 

Pollianna Galvão*; Claisy Maria Marinho Araujo**

 

 


Resumo

Este artigo oferece uma contextualização histórica sobre o percurso de desenvolvimento das organizações não governamentais (ONGs) no Brasil. Atualmente, esses espaços vêm se ampliando no cenário do Terceiro Setor como novo agente social para o atendimento das demandas públicas. O texto parte de uma breve descrição sobre as ONGs educativas no País, como um campo de trabalho emergente ao psicólogo escolar. Em seguida, abordase a caracterização histórica sobre as transformações das políticas de Estado, os impactos nas formas de exercício da democracia pela sociedade civil organizada e os desdobramentos à história de origem e consolidação dessas instituições no Brasil. Apresenta-se o atual cenário das ONGs, sinalizando as características político-econômicas que alavancaram o crescimento do número e tipos de serviços prestados por essas entidades nos últimos tempos. Nessa seção, discute-se uma proposta de atuação do psicólogo escolar como possibilidade de trabalho nas ONGs educativas. Por fim, são feitas algumas reflexões sobre os desafios educacionais que se colocam ao psicólogo escolar diante desse novo contexto socioeducativo com potencial para o desenvolvimento humano.

Palavras-chave: Psicologia escolar. ONG. História. Políticas de Estado.


Abstract

This article provides a historical overview of the development of nongovernmental organizations (NGOs) in Brazil. Currently, these areas have been expanding in the Third Sector as a new social actor to meet public demands. The study starts from a brief description of the educational NGOs in the country as an emerging field of work for the school psychologist. Afterwards, it deals with the historical characterization of the transformations of the country’s state policies, the impact on the exercise of democracy by civil society and the unfolding history towards the origin and consolidation of these institutions in Brazil. It presents the current situation of NGOs, signaling the political-economic features that boosted the growth in the number and types of services provided by these entities in recent times. In this section, we discuss a proposal for performance of the school psychologist as a possibility to work in educational NGOs. Finally, some reflections on the educational challenges faced by the school psychologist at this new socio-educational context with the potential for human development are highlighted.

Keywords: School Psychology. NGO. History. State policies.


Resumen

En este artículo se ofrece una visión histórica de la trayectoria de desarrollo de las Organizaciones no Gubernamentales en el país. En la actualidad, estos espacios se han expandido en el escenario del Tercer Sector como un nuevo agente social para atender las demandas públicas. El texto parte de una breve descripción de las ONG de educación en el país, como un campo de trabajo emergente para el psicólogo escolar. A continuación, se ocupa de la caracterización histórica de las transformaciones de las políticas del Estado, el impacto en las formas del ejercicio de la democracia por la sociedad civil organizada y las consecuencias de la historia de origen y consolidación de estas instituciones en Brasil. Se presenta el escenario actual de las ONGs, destacando las características político-económicas que impulsaron el crecimiento del número y tipos de servicios prestados por estas entidades en los últimos tiempos. En esta sección, se discute una propuesta de actuación del psicólogo de la escuela como una posibilidad de trabajo en ONG educativas. Por último, se realizan algunas reflexiones sobre los retos educativos que enfrenta el psicólogo de la escuela en este nuevo contexto socio-educativo con potencial para el desarrollo humano.

Palabras clave: Psicología escolar. ONG. Historia. Políticas de Estado.

1 ONGs EDUCATIVAS: UM CONTEXTO EMERGENTE DE ATUAÇÃO PARA O PSICÓLOGO ESCOLAR

A atuação de psicólogos escolares em Organizações não Governamentais (ONGs) é uma realidade relativamente recente para a área da Psicologia no Brasil. Em sua origem, a Psicologia escolar direcionou a sua prática no contexto da escola, privilegiando estudos e intervenções no âmbito da educação básica. Contudo outros espaços institucionais têm surgido como ambientes de trabalhos férteis ao trabalho de psicólogos escolares, devido ao reconhecimento do potencial educativo agregado a esses locais, fator que os aproxima dos propósitos desse profissional que se compromete com o desenvolvimento humano (Araujo, 2009; 2010; 2014).

As ONGs educativas detêm, em sua missão política, um compromisso social voltado para a formação humana, especialmente dos indivíduos pertencentes às camadas populares da sociedade, o que incita um chamado à atenção do psicólogo escolar a esse cenário. A defesa por uma atuação crítica em Psicologia escolar em ONGs parte da convicção de que a área deve estar comprometida, política e socialmente, com instituições civis que empreendem iniciativas para tornar a sociedade menos desigual. Para isso, os psicólogos escolares devem estar seguros e conscientes acerca da especificidade de um perfil profissional que subsidie seus papéis, responsabilidades e funções no trabalho em ONGs, espaço educativo ainda pouco conhecido pela área (Araujo, 2003; Araujo, 2009; 2010; 2014; Araujo & Almeida, 2005; Soares, 2008; 2014; Soares & Araujo, 2010).

Nas últimas décadas, as ONGs têm crescido e se expandido por todo o território nacional, por meio de fundações e associações sem fins lucrativos, conhecidas como "Fasfil". São várias as filiações temáticas e missões institucionais com que essas instituições comparecem nesse cenário. Áreas como educação, saúde, meio ambiente, defesa de direitos humanos, trabalho, tradicionalmente de responsabilidade legítima do Estado, foram se constituindo alvo de ações não governamentais oriundas da sociedade civil organizada (Burgos, 2007; 2012; 2013; Dagnino, 2004a; 2004b; 2005; 2011; Gohn; 2006; 2009; 2010; 2011; Montaño, 2010; Souza, 2009). Muitas delas vinculam-se a propósitos educacionais de natureza não formal e demandam profissionais que atuam na área da Educação Social (Caro & Guzzo, 2004; Gohn, 2006; 2009; Soares, 2008; 2014; Soares & Araujo, 2010; 2011a; 2011b; 2012).

Ao pretender versar sobre a atuação do psicólogo em ONGs educacionais, um cenário bastante específico e inovador para a articulação entre Psicologia e Educação não formal, este artigo objetiva oferecer uma contextualização histórica sobre o percurso de desenvolvimento dessas instituições no País e sua relação atual com a inserção de psicólogos nesse trabalho, convidando a uma reflexão da categoria profissional sobre a ressignificação do seu perfil em um contexto emergente de trabalho.

2 POLÍTICAS DE ESTADO, DEMOCRACIA E SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA: CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E ORIGEM DAS ONGs NO BRASIL

Os regimes político-administrativos do Brasil trilharam percursos complexos e contraditórios na linha tênue entre os interesses políticos, mercadológicos e sociais (Dagnino, 2005; 2011; Gohn, 2009; 2010; 2011, 2014a, 2014b). Por um lado, o Estado (primeiro setor) é a esfera que tradicionalmente estabelece as condições legais sobre as quais opera o mercado. Do outro, ocupando a esfera econômica e tecnológica, está o próprio mercado (segundo setor), que tenta delimitar seus interesses desenvolvimentistas, coerentes aos ideários liberais, pela livre concorrência, iniciativa individual e busca por lucro. A sociedade civil organizada é o terceiro elemento que veio se transformando e desempenhando um papel fundamental na criação de mecanismos de democratização dirigidos pela política de governança vigente (Dagnino, 2005; 2011; Gohn, 2009; 2010; 2011, 2014a, 2014b; Szazi, 2006; Neves, 2007).

No Brasil, foram quatro tipos de Estado que estabeleceram as formas de gerenciamento democrático após o regime imperialista (conhecido como Brasil Monárquico, 1822-1889): o Estado liberal, o Estado liberal-democrático, o Estado social-democrático e o Estado social-liberal. O primeiro Estado com pretensões democráticas no Brasil foi estabelecido no fim do século XIX, logo após a sua independência do regime absolutista, cujo ideário adveio das influências da Revolução Francesa (especialmente disseminados com os pressupostos iluministas "vida, liberdade e propriedade privada"). O Estado liberal consolidado na Primeira República (1890-1930) instaurou-se no período em que a democracia em direção aos direitos civis começou a surgir apenas no plano ideológico, limitada às elites regionais compostas por grupos oligárquicos (grandes comerciantes rurais e proprietários de terras) e pela burguesia industrial (comerciantes urbanos, bancários e intelectuais de elite) (Dagnino, 2005, 2011; Montaño, 2010).

De acordo com Montaño (2010), o Estado liberal não levou benefícios à parte majoritária do povo brasileiro, pois os centros de decisão, em proveito dos próprios privilégios, enfraqueceram os meios para a ampliação dos direitos sociais e agravaram as desigualdades e injustiças decorrentes da política econômica vigente. Foi um período em que os movimentos operários nasceram, protagonizando greves e lutas historicamente importantes, como as greves gerais em 1909 e 1917, em São Paulo, e a insurreição de 1918, no Rio de Janeiro.

Com as pressões sociais e ideológicas, oriundas especialmente das ideias marxistas que adentravam no cenário nacional, o Estado brasileiro se transformou em liberal-democrático ainda na primeira parte do século XX. A ascensão da industrialização mundial vivenciada naquele período propiciou a adoção da ideia de um Estado simultaneamente mediador das leis e interesses mercadológicos e protetor dos direitos sociais (Gohn, 2009; 2011). Conforme afirmam Montaño (2010) e Souza (2009), foi ensaiada uma política de democracia de bases populares no início do governo de Getúlio Vargas (Era Varguista), entre 1930 e 1937, o que demarcou a transição do primeiro tipo de Estado para o liberaldemocrático. De acordo com os autores, com a instituição do Estado Novo a partir da promulgação da Constituição Federal de 1934, o governo passou a ser marcado por concessões simultâneas à classe média e proletária, com destaque à legitimação dos sindicatos como órgãos de representatividade dos trabalhadores.

Na segunda metade do século XX, os ideais socialistas passaram a emergir com maior ênfase nas doutrinas políticas de democracia, demarcando, pouco a pouco, a transição para o terceiro tipo de Estado, o social-democrático. Conhecido também como Estado de bem-estar social, os seus princípios ganhavam força nas diretrizes políticas dos governos no País, apesar de que, na prática, foram poucas as ações que de fato beneficiaram a maior parte da população (Medeiros, 2007; Montaño, 2010).

A estatização, preceito que subsidiava a ideia de um Estado fortemente interventor nas leis do mercado em prol do setor social, tornou-se o mote para o monopólio das bases governistas e para a acepção de ideologias políticas autoritárias instauradas entre as décadas de 1950 a 1980. As primeiras ONGs no Brasil nasceram vinculadas ao contexto dos sucessivos governos de presidentes desenvolvimentistas do Estado social-democrático na década de 1950 e início da de 1960 (Haddad, 2012; Landim, 2002; 2005; Souza, 2009). Tais governos voltavam-se predominantemente para o desenvolvimento econômico e as políticas de industrialização, priorizando medidas públicas para acolhimento das empresas que tinham interesse em investir no País (Landim, 2002). Houve uma ampliação, no plano teórico, do acesso da sociedade civil junto à política de governo, e a divisão de poderes se expandiu para novos atores sociais, como os representantes dos operários da indústria, dos trabalhadores rurais, dos professores universitários de base esquerdista, entre outros (Burgos, 2007; Dagnino, 2005; 2011; Gohn, 2010; 2011; Souza, 2009). Contudo ainda não era notória a atenção desses governos no que diz respeito às políticas sociais que, em tese, deveriam ser prioridade no Estado de bem-estar social. Nesse período, a quantidade das ONGs era modesta, sendo que boa parte se vinculava às instituições religiosas que realizavam ações de caridade e assistência básica filantrópica.

A forma de condução da política dos últimos governos desenvolvimentista daquele período (Jânio Quadros e João Goulart) preocupava cada vez mais os representantes das elites e os líderes das classes populares na disputa de interesses liberais e sociais no Estado de bem-estar social, o que culminou na eclosão de inúmeros atos públicos e manifestações por todo o País, tanto de oposição como de apoio ao governo (Gohn, 2010). Em 31 de março de 1964, líderes das tropas militares desencadearam um movimento golpista de deposição de João Goulart da Presidência da República, culminando no seu exílio ao Uruguai dois dias depois. O chamado golpe militar representou um marco que enfraqueceu a primeira experiência de regime democrático no País e desencadeou uma sucessão de ações que vieram a diminuir os avanços em relação ao processo de democratização e às políticas de participação civil na esfera de governo.

Foi especialmente durante a vigência dos governos militares, entre 1964 e 1985, no contexto de um Estado autoritário e repressor, que as ONGs começaram a crescer e a mudar os rumos ideológicos. Os movimentos sociais protagonizados pela sociedade civil organizada daquele período caracterizaram uma relação conflituosa com o regime ditatorial. Os manifestos de trabalhadores, artistas e estudantes universitários foram duramente contidos pela ingerência militar, culminando no exílio de líderes sindicalistas e representantes políticos de esquerda, e no silêncio forçado da sociedade civil (Burgos, 2007; Dagnino, 2005; 2011; Gohn, 2009; 2010; Medeiros, 2007).

Naquele contexto, as ONGs permaneceram em clandestinidade por bastante tempo, não havendo registros formais de suas existências originais e filiações civis. Uma característica que lhes resguardava era que essas organizações eram compostas, em sua maioria, por membros de sindicatos e de partidos de esquerda, muitas vezes disfarçadas sob a forma de organizações de natureza religiosa, as quais realizavam ações de caridade e assistência básica filantrópica (Haddad, 2012).

Alguns setores da Igreja Católica, após o golpe de Estado de 1964, tiveram destaque pelo número de ações voltadas às classes sociais de baixa renda, porque eram alvos menos cobiçados pelos militares. Os setores da Igreja, dos partidos políticos e das universidades, por meio de ONGs, desenvolviam atividades socioeducativas em duas grandes direções. Uma delas era a realização de trabalhos de base voltados para as demandas da comunidade local: cursos de organização comunitária, capacitação especializada à atividade remunerada, assistência técnica, educação escolar, etc. A segunda linha de atuação referia-se a trabalhos de formação da classe popular para a militância, visando ao exercício da cidadania no processo de revisão e ampliação da democracia brasileira (formação a partir de temas pertinentes à análise crítica da situação socioeconômica do País, como aumento da pobreza, ineficácia de políticas sociais oriundas do governo, transparência da gestão pública, etc.) (Haddad, 2012; Martins & Groppo, 2010; Medeiros, 2007; Souza, 2009).

Uma parcela expressiva das ONGs na década de 1970 manteve suas linhas de ação de forma autônoma e independente do Estado, sendo considerada fonte de poder social alternativo ao poder político, de contraposição. Muitas delas eram lideradas por ativistas de partidos esquerdistas e líderes comunitários que, ao retornarem do exílio incidido no período de movimento pela anistia contra a ditadura militar, prestavam serviços diretamente às populações de baixa renda (Burgos, 2007; Dagnino, 2005; 2011; Landim, 2002; 2005; Medeiros, 2007). Esse contexto refletia uma necessidade de se restaurarem os direitos civis e políticos que haviam sido cassados no golpe militar e, ao mesmo tempo, consolidar e avançar as políticas sociais e os direitos de democracia por meio da formação crítica da população.

De acordo com Souza (2009) e Szazi (2006), após a abertura política civil principiada na década de 1980, os movimentos sociais no Brasil passaram a se organizar com mais intensidade, por meio de consolidação de instituições jurídicas (associações, fundações, cooperativas, sindicatos, etc.), na intenção de prover medidas diretas para resolução dos problemas herdados do período da ditadura militar. Em meados dessa época, tais iniciativas iam ao encontro da mobilização nacional que compunha o cenário da democracia brasileira, como a reivindicação por eleições presidenciais diretas no Brasil (Diretas Já, 1983- 1984) e o movimento pró-Constituinte, iniciativas precedentes à instituição da Constituição Federal de 1988.

O Estado de bem-estar social entrou em declínio no Brasil ao longo da década de 1980, com o revigoramento dos ideários neoliberais que se acendiam sob o pretexto do controle inflacionário, como uma reação contra as ações estatais intervencionistas, bem como contra os movimentos coletivos que não paravam de crescer nas décadas de 1970 e 1980 (Martins & Groppo, 2010; Montaño, 2010; Souza, 2009). No período de transição do Estado de bem-estar social para o Estado social-liberal nessa década, observou-se uma melhor definição legal dos direitos republicanos brasileiros bem como uma consolidação prática da participação dos cidadãos (indivíduos ou organizações da sociedade civil) na esfera das políticas públicas e sociais (Gohn, 2011; 2014a). Contudo, as organizações sindicais, os movimentos sociais e as ONGs se enfraqueceram como forças mobilizadoras de contraproposta política, por meio do rígido controle das vias de participação democrática nos setores de governança.

O Estado social-liberal legitimou um novo republicanismo ao fim da década de 1980, pela institucionalização da Constituição da República Federativa de 1988 (Gohn, 2009; 2010; 2011; 2014a; 2014b; Haddad, 2012; Martins & Groppo, 2010; Rizzo, 2011; Souza, 2009). Com os princípios da social-democracia regidos por esse Estado, a sociedade civil formalmente passou a compor o cenário da política brasileira, através de seus meios de representatividade. A partir da Carta Magna, os movimentos sociais passaram por uma crise de mobilização, porque o Estado já concebia a sua participação pela ampliação democrática. De acordo com Gohn (2010; 2011), essa crise ocorria simultaneamente ao crescimento abrupto do número de ONGs no País, nos primeiros anos dessa década. Essas instituições, que surgiram como grupos de apoios aos movimentos sociais no regime autoritário, descobriram novas funções, papéis e estrutura política no contexto social-liberal, redefinindo significativamente a sua relação com o Estado até os diais atuais.

Tradicionalmente, os movimentos sociais e as ONGs vinham sendo concebidos como um processo de tomada de consciência coletiva contra a repressão e alienação de uma realidade social desigual e injusta e, ao mesmo tempo, uma tentativa organizada de romper com os privilégios da classe política dominante que corroboravam com a manutenção social. Com adoção das políticas neoliberais no País, após o Consenso de Washington,1 as pressões do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial foram mais intensas no que diz respeito à implantação das diretrizes neoliberais nos países considerados em desenvolvimento, como o Brasil. Nesse contexto, grande parte dessas instituições brasileiras se aliou ao Estado e passou a dividir responsabilidades sociais sob a égide da participação civil (Burgos, 2007; Dagnino, 2005; 2011; Gohn, 2010; 2011; Martins & Goppo, 2010; Montaño, 2010). Uma parcela das ONGs passou a desempenhar papel prioritariamente assistencialista, visto que assumiram o discurso neoliberal da “ineficiência e incapacidade do Estado” para lidar com a ampla gama dos problemas sociais. Isso levou a distintos desdobramentos, entre os quais se destacam:

a) a internalização da ideia de que as ONGs eram a garantia para o provimento das demandas sociais, em níveis de qualidade exigidos pela própria população que as compõem; e
b) o movimento de reivindicação por mais acesso aos fundos públicos, principalmente legitimado pela Constituição Federal de 1988.

Ainda como desdobramento das políticas sociais do modelo de Estado de bem-estar social, foi notório o avanço na área da Educação entre as décadas de 1980 e 1990.2 A despeito desse crescimento, o planejamento formal sobre os rumos da educação no País ocorreu apenas em 1992, com o debate para a elaboração do Plano Decenal de Educação para Todos (1993-2003). Em que pesem as críticas e os desdobramentos sociais não desejáveis, foi no governo de Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1995, que se concretizou um planejamento político-estratégico para a Educação brasileira, pela reforma do seu sistema (Rizzo, 2011). Em 1996, o Brasil formalizou a descentralização do sistema educativo ao âmbito dos municípios, com um discurso ambíguo entre autonomia e interdependência das unidades do Poder Executivo, de clara aspiração neoliberal.

É nesse cenário de descentralização política e reforma da Educação que se observou um maior fomento das ONGs educacionais a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394/1996, pela qual se estabeleceu abertura legal de instituições organizadas pela sociedade civil. Devido à concepção de Educação que adota, essa Lei compreende que, além da educação formal relativa ao contexto escolar, outros espaços podem ser considerados importantes agentes de formação, como os movimentos sociais, as organizações da sociedade civil e as manifestações culturais. Concorda-se com Prette (2002) e Guzzo (2002) na afirmação de que as lacunas e contradições manifestas na LDB de 1996 representaram um cenário em que se tentava ajustar a política educacional à política social e econômica que vinha se configurando no País, nos anos antecedentes à aprovação dessa lei.

Ao final da década de 1990, outra referência legislativa ampliou a participação de ONGs na conjuntura da reforma educacional. Refere-se à institucionalização do terceiro setor por meio da Lei nº 9.790/1999, que regulamenta as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). A partir da regulamentação das ações não governamentais da década de 1990, as ONGs passaram a atuar mais diretamente no apaziguamento da dificuldade de acesso e permanência na escola por meio de ações compensatórias, perdendo-se ideologicamente em sua atuação política. Aulas de reforço para alunos com dificuldades de aprendizagem, amparo a crianças e adolescentes que estavam fora da escola e atividades de complementação escolar estavam entre as principais ações (Caro & Guzzo, 2004; Gohn, 2009; 2014a; Soares & Araujo, 2010). Embora o desempenho dessas atividades reflita uma preocupação da sociedade com relação às suas próprias emergências e demandas, os problemas educacionais eram tratados de fora da escola, sem a devida contextualização e articulação com os setores de onde esses problemas eram originados.

Para estudiosos das ONGs, como Dagnino (2005; 2011), Gohn (2009; 2010; 2011; 2014a; 2014b), Landim (2002; 2005) e Souza (2009), a década de 1990 leva a uma clara diferenciação entre as ONGs que atuam na articulação específica de demandas populares e na explicitação dos conflitos sociais daquelas que têm como propósito operar nas esferas governamentais, tornando-se uma organização "paraoficial" na linha tênue (e duvidosa) entre público e privado. As ONGs passaram a coexistir com uma dupla definição: como meios civis de transformação social, sob uma nova forma de participação social na esfera das políticas públicas; e como campo propício para as ações do neoliberalismo, que busca repassar suas responsabilidades sociais para a sociedade civil e a esvazia de uma atuação política, tendência que tem permanecido no curso do século XXI, conforme será visto a seguir.

3 O CENÁRIO DAS ONGs NO SÉCULO XXI: DESAFIOS EDUCACIONAIS E REFLEXÕES PARA A ATUAÇÃO EM PSICOLOGIA ESCOLAR

Na virada do milênio, a relação estabelecida entre as ONGs e o Poder Público não sofreu grandes transformações político-ideológicas com a ascensão de um governo esquerdista no início dos anos 2000 (Medeiros, 2007). O Estado, tanto no âmbito da Federação como dos Estados, Distrito Federal e Municípios, continuava seguindo na direção da ampliação e consolidação de políticas de gestão participativa sob os moldes neoliberais (Szazi, 2006).

A legitimação das ONGs como "parceiras" do Estado, solidificado na gestão pública dos governos da década de 1990, ampliou-se gradativamente nos anos seguintes visto que os governos continuavam transferindo parte de suas responsabilidades ao terceiro setor (Burgos, 2007; Dagnino, 2005; 2011; Medeiros, 2007). Nos primeiros anos da década de 2000, as políticas designadas ao terceiro setor persistiam em duas grandes direções. Em uma, aumentavam-se os mecanismos legais que tratavam de delinear um perfil institucional específico para que as ONGs executassem as políticas sociais (por exemplo, os critérios estabelecidos para a Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (CEBAS) – incluírem a promoção de trabalho voluntário e estipulação de metas e objetivos de avaliação de desempenho). Em uma direção paralela, surgiam as políticas de incentivo fiscal destinadas ao segundo setor, incitando a classe empresarial a investir na realização de projetos sociais (Szazi, 2006).

Em ambas as direções, paulatinamente, elevavam-se os critérios e exigências burocráticas para a obtenção de títulos e certificados em âmbitos federal, estadual e municipal, no intuito de canalizar recursos públicos e benefícios fiscais às entidades sem fins lucrativos e de oferecer incentivos tributários aos doadores e patrocinadores de programas sociais (Albuquerque, 2006; Franco, 2005; Szazi, 2006). Observa-se que os mesmos mecanismos legais que fomentaram a participação das ONGs no processo de governança democrática também se constituíram, na prática, em caminhos volúveis no cumprimento dos benefícios sociais (a exemplo do "escândalo das ONGs", em outubro 2011, período no qual se sucederam várias denúncias de corrupção cometidas entre organizações que detinham privilégios nas parcerias com o Ministério do Turismo e o Ministério do Esporte) (Medeiros, 2007; Montaño, 2010).

O cenário das ONGs na atualidade pode ser analisado pela quantidade de entidades privadas sem fins lucrativos, universo de fundações e associações registradas no Cadastro Central de Empresas (Cempre), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).3 De acordo com o IBGE (2006; 2012), fica evidente um aumento acentuado ao longo da década de 2000 (figura 1).

 

 

A quantidade dessas entidades duplicou em nove anos, ao contrário do que as análises sociológicas sinalizavam em razão da ascensão de um governo esquerdista em 2002 (Burgos, 2007; Dagnino, 2005; Landim, 2005; Medeiros, 2007). As políticas de parceria do terceiro setor na década de 1990 eram alvos da crítica esquerdista por estarem respaldadas nas políticas neoliberais dos governos da direita (Martins & Groppo, 2010). Portanto o que se esperava, teoricamente, é que haveria um decréscimo dessas organizações sociais ao longo dos anos 2000.

A figura 2 apresenta um gráfico pelo qual se pode ver a proporção da distribuição das áreas temáticas de atuação das Fasfil no ano de 2010. Observase que o campo da “educação e pesquisa” ocupava a segunda posição entre as dez categorias do Cempre, com a quantidade de 87.948 entidades sem fins lucrativos.

 

 

O panorama das entidades sem fins lucrativos no País, especialmente a relevância numérica na área social da Educação, conduz a uma reflexão crítica sobre a diversidade e amplitude dos mecanismos que levam a sociedade civil organizada a ampliar sua participação junto às esferas públicas. Na esteira do processo de democratização complexo e contraditório, as ONGs educativas vêm crescendo e trazendo propostas pedagógicas diversificadas, muitas delas aliadas às políticas educacionais inclusivas mais contemporâneas, como a educação de tempo integral, a educação no campo e educação de jovens e adultos (Rizzo, 2011). A despeito dessa diversidade, elas partem da intenção comum de diminuir as disparidades sociais pela ampliação da formação cultural dos sujeitos pertencentes às camadas populares (Gohn, 2009; Rizzo, 2011; Santos, 2011; Soares & Araujo, 2010; Souza, 2009).

Na atual conjuntura governamental, as políticas públicas privilegiam a educação formal como um dos meios para a superação da pobreza e de combate à desigualdade social, com a ampliação e continuidade de programas sociais (a despeito dos cortes orçamentários em razão dos ajustes fiscais vivenciados nos últimos tempos). São exemplos os programas Bolsa-Família, Pronatec, FIES, Prouni, entre outros. Tradicionalmente, a escola é considerada como contexto privilegiado e instrumento basilar da democracia que resguarda essa função política (Araujo, 2010; 2014; Araujo & Almeida, 2005). Paralelamente, não se pode deixar de reconhecer que as ONGs educativas têm desempenhado uma relevante missão política, principalmente em uma sociedade na qual ainda se encontram desafios para a seguridade dos direitos sociais. Essas instituições agregam importante papel nessa missão quando sua filosofia institucional orienta a concretização de propostas socioeducativas capazes de criar espaços de reflexão crítica sobre a realidade e promover aprendizagem e desenvolvimento humano de modo diferenciado da escolarização formal.

4 POSSIBILIDADES DE TRABALHO DA PSICOLOGIA ESCOLAR EM ONGs EDUCATIVAS

Por um olhar retrospectivo sobre a origem das ONGs, observa-se que existem aspectos ideológicos, éticos, políticos, culturais, pedagógicos e outros que imprimem características peculiares à sua função educativa, que, no entanto, não deve ser confundida e nem substituída pela formação da escola. Elas agregam princípios e valores relacionados aos movimentos de luta pelos direitos educacionais das classes populares, oportunizando a ampliação de práticas pedagógicas variadas em múltiplas linguagens, expressões de cultura e de conhecimento (Caro & Guzzo, 2004; Gohn, 2006; 2011; Soares & Araujo, 2010; 2012). O panorama das ONGs na atualidade é um convite para o compromisso social do psicólogo escolar, que pode contribuir com a intenção formativa intencionada por essas instituições.

Sabe-se que a atuação da Psicologia escolar nas ONGs é uma realidade já expressa, ainda de que modo modesto, por meio de pesquisas, estudos teóricos e relatos de experiência (Caro & Guzzo, 2004; Carvalho, 2007; Dadico, 2003; Dadico & Souza, 2010; Soares & Araujo, 2010). Contudo a literatura da área ainda carece de estudos que versem sobre as especificidades do perfil do psicólogo escolar quando atua nesses espaços. A dimensão educacional ligada às ONGs é peculiar e, igualmente, adere características próprias ao trabalho que é desenvolvido nela. Por isso, defende-se que é necessário ter clareza sobre os aspectos históricos, sociais e institucionais desses contextos que, certamente, levam desdobramentos à prática e perfil profissional.

Se existe o reconhecimento de que esses espaços realizam um trabalho para o desenvolvimento humano, por meio da diversidade de atividades culturais e múltiplas oportunidades de aprendizagem não formal, de que forma o psicólogo escolar pode corroborar uma educação crítica e emancipatória? Defende-se, primeiramente, que o próprio psicólogo escolar deve ter clareza e consciência crítica sobre os espaços educacionais alternativos que surgem em meio ao complexo sistema educacional. A constituição das ONGs educativas vem aliando-se a distintos propósitos ideológicos que, em diferentes momentos históricos, exerceram papéis políticos diversos em relação à conquista dos direitos sociais. Esse profissional deve ser capaz de contextualizar sua ação à história de injustiças sociais que justificam a existência das ONGs no País e que dão abertura a um novo campo de atuação em Psicologia escolar. Ao se ter essa visão crítica do contexto e uma clareza sobre os desdobramentos de seu trabalho nessas instituições, pode-se evitar que a sua atuação não se desloque do campo político para o da caridade e da assistência básica.

Nesse sentido, defende-se que o psicólogo escolar deva se comprometer com o desenvolvimento de um trabalho de qualidade, ressignificado e ampliado pelas características inerente às ONGs e com o cuidado para não desempenhar um papel assistencialista, sob a égide da solidariedade profissional. Reitera-se que a atuação fundamentada apenas na ordem da caridade, beneficência e filantropia, embora importantes aspectos de valores humanos, não sustenta uma elaboração técnica, sistemática, consistente e intencional de projetos socioeducativos emancipatórios específicos às ONGs (Soares & Araujo, 2010).

Se o benefício social e político trazido por essas instituições pode se enfraquecer já que suas práticas refletem ações compensatórias ao papel do Estado, o compromisso do psicólogo escolar nas ONGs pode e deve privilegiar estratégias de mediação para a conscientização de concepções adaptacionistas e excludentes ainda inerentes a esses espaços (Guzzo, 2005; 2008; Araujo, 2010; 2014; Araujo & Almeida, 2005). Essas concepções ajudam a fundamentar serviços educacionais assistencialistas, respaldados tanto por um discurso de suprimento às falhas contidas na educação pública quanto por concepções de aprendizagem e desenvolvimento que se fundamentam em uma noção passiva de sujeito que pertence às camadas populares.

O psicólogo escolar, com base em sua especificidade de atuação, pode provocar processos de conscientização das noções de aprendizagem, desenvolvimento e ensino que engessam a concretização de uma educação social com potencial transformador. A compreensão de que o sujeito assistido pela instituição é “carente”, excluído e privado das possibilidades de ascensão social pode enfraquecer propostas formativas emancipadoras. O psicólogo escolar deve desenvolver um trabalho visando a mediações que levem os atores das ONGs à conscientização de seus papéis e responsabilidades como agentes de formação humana emancipatória, a partir da ruptura com noções passivas de desenvolvimento e em favor do estabelecimento de uma compreensão de sujeito ativo e protagonista de sua história de vida.

Dessas considerações que demarcam a defesa sobre uma atuação crítica e contextualizada historicamente da Psicologia escolar em ONGs, são sugeridas, a seguir, algumas linhas de intervenção que podem orientar o trabalho dos psicólogos nesses espaços. Propõe-se uma categorização de atividades pautada em três grandes dimensões:

a) assessoria à gestão pedagógico-institucional;
b) assessoria ao trabalho coletivo; e
c) acompanhamento ao processo socioeducativo.

As dimensões propostas foram baseadas e adaptadas de Araujo (2014) e são coerentes à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394,1996) e aos Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997), marcos legislativos que preveem a participação das instituições da sociedade civil no atendimento educacional.

4.1 Assessoria à gestão institucional

Compõe um conjunto de atividades junto aos gestores, diretores e coordenadores pedagógicos da ONG, com o objetivo de:

a) criar espaços coletivos nos quais possam aprofundar as discussões sobre o desempenho da organização, o impacto da intervenção pedagógica junto aos educandos, famílias e setores comunitários, as dificuldades encontradas, desafios superados e perspectivas sobre as ações que podem ser empreendidas;
b) planejar reuniões para a discussão e análise dos documentos orientadores da ONG, de modo que os significados que compõem as suas diretrizes reflitam as necessidades, iniciativas e desafios do cotidiano institucional em sua diversidade;
c) promover momentos de capacitação que envolvam o nivelamento de conhecimento crítico sobre a educação não formal, o papel das instituições de terceiro setor e os processos de desenvolvimento individual e social que podem ser ampliados pela organização, com clareza e lucidez sobre os limites e possibilidades de colaboração com o Estado (e não pelo Estado);
d) assessorar a elaboração de estratégias de capacitação dos educadores sociais com base na compreensão sócio-histórica do desenvolvimento adulto, de modo a incentivar a criação de políticas de incentivo para os possíveis meios, intra e extrainstitucional, de formação inicial e continuada;
e) acompanhar e assessorar o planejamento de ações da coordenação pedagógica que visem à busca por parceiros governamentais e empresariais, em uma perspectiva para além do fomento às atividades da ONG, contemplando ações que incentivem a aproximação dos agentes financiadores junto aos educadores, educandos, famílias, escolas e comunidade;
f ) auxiliar, junto à coordenação pedagógica, o processo de implantação das políticas institucionais de forma crítica, identificando pontos que possam ser obstáculos para o processo de mudanças e ajudando no delineamento de ações coletivas para a sua superação.

4.2 Assessoria ao trabalho coletivo

a) criar espaços para a reflexão do grupo de profissionais acerca das intervenções realizadas junto aos educandos, família, escola e comunidade, incentivando o compartilhamento de ações bem-sucedidas e dos desafios a serem superados;
b) mediar a tomada de consciência sobre o potencial de reinvenção das práticas educativas, estimulando o desenvolvimento de habilidades de análise, reelaboração e síntese sobre a área de conhecimento do educador social, visando à ampliação do desenvolvimento global dos educandos;
c) provocar a intencionalidade da equipe quanto ao planejamento e realização das atividades educativas, de forma que as ações de sucesso deixem de ser pontuais para se tornarem resultados dos objetivos do trabalho previamente traçados;
d) criar momentos coletivos de estudos teóricos articulados aos estudos de caso e ao planejamento das atividades educacionais, de modo a construir formas seguras para intervenção na realidade, não apenas para a superação dos problemas, mas para o reconhecimento dos pontos fortes de suas práticas e a difusão dos fundamentos que as sustentam;
e) contribuir com a formação dos educadores sociais, no que compete ao conhecimento psicológico, especialmente quanto às concepções de sujeito das classes populares, por meio da sistematização de momentos que circulem os sentidos atrelados a uma noção de sujeito histórico e protagonista de sua formação.

4.3 Acompanhamento ao processo socioeducativo

Referem-se às atividades de rotina estabelecidas pelo psicólogo escolar no cotidiano institucional, junto aos educadores sociais e educandos, no processo de apropriação do conhecimento, objetivando:

a) conscientizar os educadores sociais sobre a importância de sua mediação no processo de ampliação qualitativa da formação dos processos psicológicos dos educandos, como agentes de desenvolvimento humano;
b) incentivar a criação de projetos pedagógicos respaldados pela ética social e integrados às múltiplas linguagens do conhecimento humano, visando à promoção da conscientização de uma cultura cívica junto aos educandos, de modo que se fortaleçam processos psicológicos para análise crítica da realidade;
c) fortalecer a cultura de sucesso escolar, mobilizando continuamente a ressignificação dos fenômenos escolares, a partir do acompanhamento da rotina dos educadores na consecução de suas oficinas (artes, música, dança etc.) e nos inúmeros espaços que se constroem no dia a dia institucional;
d) incentivar a articulação dos saberes da prática do educador social, seu conhecimento sobre a realidade comunitária dos educandos e os conhecimentos técnicos, teóricos e metodológicos da Educação, de modo que possa auxiliar a resolução de tarefas e de situações-problema em sala de aula e na intervenção pedagógica junto à família e à comunidade.

É importante destacar que essa proposta não esgota as diversas possibilidades de atuação da Psicologia escolar em ONG e, portanto, não deve ser concebida como um modelo pronto e generalizável a qualquer instituição. Por sua característica aberta, histórica, processual e dinâmica, as ações delineadas devem ser ressignificadas e redesenhadas à luz das características, prioridades e singularidades inerentes às realidades das organizações. Esse é um exercício reflexivo ao qual novas proposições podem somar-se, ampliar e revisar criticamente, seja com base na consecução de estudos e pesquisas ou pela experiência da prática profissional.

Na atualidade, cabe ao psicólogo escolar, que é convidado a atuar nas ONGs educativas, potencializar a função emancipatória dessas instituições que exercem um papel político importante na ampliação da democracia e dos direitos sociais, ajudando a direcionar os sujeitos "marginalizados" no centro de sua atuação, como protagonistas da transformação da realidade social. A função da educação não formal emancipatória, nesse sentido, deve fundamentar-se em uma compreensão de sujeito ativo (capaz de exercer influência em seu próprio desenvolvimento), histórico (com lucidez sobre o seu papel e relevância no processo de mudanças) e político (orientado por concepções ideológicas claras em seus objetivos sociais e desdobramentos, em favor da construção de uma ética social solidária).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desafio que se coloca aos psicólogos escolares que trabalham em contextos educativos voltados para as classes populares, como as ONGs, está em construir competências profissionais que possam conduzir a uma atuação crítica e segura, capaz de contrapor a reprodução de processos adaptativos e domesticadores, visando a um amplo desenvolvimento dos sujeitos para a cidadania. Alerta-se para a necessidade de se investir na formação inicial e continuada do psicólogo escolar, diante da atual conjuntura educacional que fomenta o surgimento das ONGs, com base no reconhecimento de uma especificidade exigida para atuação nesses espaços.

Como defendido, as ONGs agregam importante papel na missão educacional quando sua filosofia institucional orienta a concretização de propostas socioeducativas capazes de criar espaços de reflexão crítica sobre a realidade e promover aprendizagem e desenvolvimento humano de modo diferenciado da escolarização formal. Essas instituições carregam princípios e valores relacionados aos movimentos de luta pelos direitos educacionais das classes populares, oportunizando, ao longo do tempo, a ampliação de práticas pedagógicas variadas em múltiplas linguagens, expressões de cultura e de conhecimento (Caro & Guzzo, 2004; Gohn, 2006; 2011; Soares & Araujo, 2010; 2012).

A dimensão educacional ligada às ONGs é específica e, igualmente, adere características próprias ao trabalho do psicólogo escolar, o que leva à necessidade de se compreenderem melhor esses espaços e ressignificar o perfil profissional para atuação coerente ao propósito da transformação social. É importante ter clareza e criticidade sobre os aspectos históricos e sociais que originam, mobilizam e definem as atividades de educação não formal para o exercício competente da profissão.

O psicólogo escolar precisa estar atento aos aspectos institucionais que caracterizam as ONGs, sua história, missão, filosofia, estrutura, filiações governamentais e, ou, não governamentais, em suas convergências e divergências práticas, que possam vir a ser obstáculos ao potencial transformador da educação emancipatória investida pela organização. A intervenção institucional que pode ser feita nesses contextos deve estar voltada para a conscientização dos atores quanto a seus papéis, funções e responsabilidades na conjuntura das redes de relação. Nesse cenário, defende-se que o psicólogo escolar deve fazer uma constante análise crítica sobre si, no que diz respeito ao seu perfil profissional, contextualizado na história da intervenção e pesquisa em Psicologia escolar e na ampliação de sua atuação a contextos educativos contemporâneos.

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Texto recebido em 21 de novembro de 2014 e aprovado para publicação em 18 de maio de 2016.

 

 

* Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde, Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, professora e pesquisadora do Núcleo de Estudos em Psicologia na Educação do Maranhão (NEPEMA) da Universidade CEUMA. E-mail: polliannagalvao@yahoo.com.br.
**Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília.E-mail: claisy@unb.brEndereço: Universidade de Brasília, Laboratório de Psicogênese, Secretaria da Coordenação de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde, Campus Universitário Darcy Ribeiro, ICC Sul, Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento, Instituto de Psicologia, Caixa Postal 4500, Universidade de Brasília, Brasília-DF, Brasil. CEP: 70910-900.
1 O Consenso de Washington foi um conjunto de medidas econômicas formulado entre lideranças capitalistas em 1989, que visavam à aplicação de regras básicas aos países considerados emergentes, para fins de ajustes econômicos. De acordo com Gohn (2011), essas medidas nada mais foram do que políticas neoliberais que intencionaram a redução do papel do Estado e cunharam as privatizações em massa de empresas estatais, liberalização dos mercados de bens de capital, desregulamentação acentuada da economia e outras consequências que pouco beneficiavam as políticas sociais.
2 Na década de 1980, o nosso País fazia parte de um dos chamados seis grandes complexos de intervenção social. No ano de 1980, a média de anos de estudos de um brasileiro de mais de 25 anos era de 3,8 anos. Em 1990, após a Constituição de 1988, a média saltou para 4,8 anos. Em 1996, época da reforma de nosso sistema educacional, era de 5,4 anos (Ipea, 2010).
3 Esse estudo foi realizado em parceria do IBGE com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (ABONG) e o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE).

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