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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.24 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2018

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p209-229 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p209-229

 

Os profissionais do disque 100: afetos decorrentes do atendimento a denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes

 

Professionals in charge of the “dial 100” service: feelings caused by dealing with child and adolescent sexual abuse assertions

 

Los profesionales de marque 100: afectos derivados de la atención de las denuncias de abuso sexual contra niños y adolescentes

 

 

Vinicius Novais Gonçalves de Andrade*; Sônia Margarida Gomes Sousa**

 

 


Resumo

Este artigo objetiva apresentar uma análise dos afetos vividos por teleatendentes, monitores e escuta especializada de um serviço de recebimento de denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes. Trata-se de pesquisa delineada qualitativamente, fundamentada nos pressupostos da Psicologia sócio-histórica de Vygotsky, da qual participaram 9 sujeitos, entre eles teleatendentes, monitores e escuta especializada. Foram realizadas entrevistas mediante roteiro de temas e perguntas, sistematizadas e analisadas com base na metodologia de núcleos de significação. Os resultados mostram que o atendimento às denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes possibilita contato com os seguintes afetos: raiva/revolta/ódio; nojo; tristeza/sofrimento; frustração/impotência; angústia/adoecimento; humanização e satisfação/felicidade. Vivenciar esses afetos depende, em grande parte, daquele que acessa o serviço: a criança ou a pessoa que abusou.

Palavras-chave: Psicologia sócio-histórica. Disque 100. Afetos.


Abstract

The main goal of this article is to present an analysis of the feelings experienced by phone-operators, monitors and specialized listeners of a governmental hotline service designed to receive assertions of child and teenager sexual abuse. It is a qualitative research based on the assumptions from Vygotsky’s socio-historical Psychology, focusing on nine subjects, including phone-operators, monitors and specialized listeners. The Interviews were carried out according to a script of themes and questions, which were then systematized and analyzed according to the methodology of significant nucleus. The results show that the receipt of sexual abuse assertions involving child and adolescent raises feelings such as anger/ revolt/hate, disgust; sadness/suffering; frustration/powerlessness, anguish/ sickening; humanization and satisfaction/happiness. Living these feelings depends mostly on the person that requests the service: a child or the abuser.

Keywords:Socio-historical Psychology. “Dial 100” Service. Feelings.


Resumen

Este artículo pretende presentar un análisis de los afectos vividos por los teleoperadores, monitores y responsables por la escucha especializada de un servicio de recibimiento de denuncias de abuso sexual contra niños y adolescentes. Se trata de una investigación delineada cualitativamente, fundamentada en los presupuestos de la Psicología Socio-Histórica de Vygotsky, de la cual participaron 9 personas, entre ellos, teleoperadores, monitores, y responsables de escucha especializada. Fueron realizadas entrevistas mediante guion de temas y preguntas, sistematizadas y analizadas con base en la metodología de núcleos de significación. Los resultados muestran que la atención de las denuncias de abuso sexual contra niños y adolescentes posibilita contacto con los siguientes afectos: rabia/indignación/odio; asco; tristeza/sufrimiento/ frustración/impotencia; angustia/enfermarse; humanización y satisfacción/felicidad. Vivir estos afectos depende en gran parte de quien tiene acceso al servicio: el niño o a la persona que lo violentó.

Palabras clave: Psicología socio-histórica. Marque 100. Afectos.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo é um dos produtos de pesquisa de mestrado, intitulada As falas dos atendentes do Disque 100 sobre a escuta das denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes (Andrade, 2012), que, por sua vez, foi um recorte de pesquisa Monitoramento e análise da implantação e funcionamento do serviço help line/Disque 100, na atenção a crianças, adolescentes e autores de violência sexual (Sousa, 2010), financiada pela Secretaria de Direitos Humanos.

O Disque-Denúncia Nacional é um programa vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH-PR). Trata-se de um "canal de comunicação […] eficiente com a rede de retaguarda, mapeando os serviços locais e construindo fluxos de proteção e responsabilização" (Brasil, 2009, p. 7). Desse canal destacam-se as ações de:

a) ouvir, orientar e registrar a denúncia; b) encaminhar as denúncias para a rede de proteção e responsabilização; e c) monitorar as ações tomadas pelos órgãos de responsabilização e informá-las ao denunciante.

Criado em 1997, foi constituído como um serviço voltado ao grupo populacional composto por crianças e adolescentes. A partir do ano de 2010, com a mudança de nome para Disque Direitos Humanos (DDH), e com o funcionamento por módulos, passou a atender diversos grupos populacionais, como idosos, pessoas em situação de rua, lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT), além de criança e adolescente. Dessa forma, atualmente, o serviço recebe, encaminha e monitora denúncias de diferentes grupos populacionais de brasileiros.

Segundo dados oficiais do DDH, no módulo da criança e do adolescente, no ano de 2011, foram realizadas 82.139 denúncias; em 2012, ocorreram 130.003; e, no ano de 2013, 124.079. Comparando-se os dados de 2011 com os de 2012, verifica-se que houve um aumento de 58,31% no recebimento de denúncias e um decréscimo de 4,58%, se comparando-se os anos de 2012 com 2013. No primeiro trimestre de 2014, os índices alcançaram a marca de 49.248 e, no mesmo período de 2015, 42.114 (Brasil, 2015). Sobre essas estatísticas, um aspecto de relevo é que a maior parte das vítimas é do sexo feminino (em 2015, por exemplo, elas compunham 45% dos casos). Esse pode ser um indício de que a sociedade brasileira continua marcada pelo patriarcado nas relações de gênero (Lima & Alberto, 2015; Anjos & Rebouças, 2015). Conforme Nogueira (2013), há um sistema de privilégios/opressão masculina e feminina. Nesse sentido, gênero somente pode ser compreendido nas relações entre as pessoas, como "uma forma de dar sentido às transações" (Nogueira, 2013, p. 28) e não como atributo individual e natural.

Realizou-se pesquisa qualitativa mediante a qual se buscaram informações sobre os afetos dos seres humanos, concebidos pela teoria de Vygotsky como complexos psíquicos constituídos pelo amálgama afetivointelectual (Vygotsky, 2001; Rego, 2010; Barbosa, Master, & Curti, 2015) e inseparáveis, que permitem a apreensão do sujeito em sua totalidade. Dessa forma, neste artigo, serão analisadas as falas dos sujeitos da pesquisa supracitada. Os excertos representam a variabilidade (ou, muitas vezes, a semelhança) e o "colorido" impresso aos afetos vividos pelos sujeitos, ao receberem denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes.

2 MÉTODO E METODOLOGIA DA PESQUISA

Este artigo discute sobre o relato de uma pesquisa qualitativa desenvolvida acerca do Disque 100.1 Nesta investigação, objetivou-se a analisar os afetos vividos pelos profissionais desse serviço quando do recebimento de denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes. A pesquisa qualitativa é compreendida por Minayo (2008, p. 21) como investigação em profundidade, no exercício das Ciências Humanas e Sociais, que "trabalha com o universo de significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e atitudes".

Neste estudo, adotou-se como aporte teórico-metodológico a Psicologia sócio-histórica alicerçada em Vygotsky e, como fundamento, o método do materialismo histórico dialético, que busca o desvelamento de tensões e contradições, a fim de propor problematizações e sínteses dialéticas a respeito do objeto pesquisado. Como assevera Gonçalves (2005), essa abordagem inicia-se com o corpus empírico.

Para o desenvolvimento da pesquisa empírica, foram selecionados 9 sujeitos (componentes do contingente de 56 trabalhadores do Disque 100)2, entre eles, teleatendentes, monitores e escuta especializada, escolhidos por conveniência: sendo de ambos os sexos, idades e etnias variadas, graduandos e graduados em diferentes cursos e diferentes níveis de experiência de trabalho no Disque 100.3 Realizou-se com os sujeitos entrevistas semiestruturadas, que foram sistematizadas e analisadas segundo metodologia de núcleos de significação propostos por Aguiar e Ozella (2006). Elaborou-se o estabelecimento de relações entre temas aglutinados por semelhança, contraposição ou complementaridade. Na pesquisa, foram seguidos os preceitos éticos preconizados pela Resolução 196/1996, mediante aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados obtidos pela pesquisa apontam uma diferença marcante em relação aos sentimentos relatados pelos sujeitos participantes da pesquisa e categorizados pelo pesquisador, ou seja:

a) afetos vividos quando do recebimento de ligações dos autores de abuso sexual contra crianças e adolescentes; b) afetos vividos no atendimento a outros usuários, por exemplo, a própria criança ou uma pessoa que presencia ou supõe a existência de abuso sexual e acessa o serviço para denunciar.

Com a investigação em foco, constatou-se que o recebimento de denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes suscita nos trabalhadores do Disque 100 os seguintes afetos:

a) raiva/revolta/ódio; b) nojo; c) tristeza/sofrimento; d) frustração/impotência; e) angústia/adoecimento; f ) humanização; g) satisfação/felicidade.

A seguir, discorre-se sobre cada um desses afetos experimentados pelos sujeitos entrevistados, cujos nomes são fictícios.4 Os depoimentos dos sujeitos foram transcritos conforme a sequência acima enunciada.

3.1 Raiva/Revolta/Ódio

Esses sentimentos foram os que mais apareceram entre os teleatendentes ao receberem as ligações, tanto monitores como escuta especializada. Os relatos combinam com outros sentimentos, como volições e repercussões, dependendo do usuário que acede ao serviço: se a própria vítima/criança, os sentimentos são de revolta por esta estar submetida a essa situação de violência. A esses sentimentos aliam-se o de pena, cuja consequência é agir rapidamente, visando à cessação dos abusos, pois, a partir do momento do recebimento da denúncia, o teleatendente passa a sentir-se responsável pela possibilidade de a criança continuar viva ou não. Ribeiro (2004) assevera que certos sentimentos negativos (o horror, por exemplo) podem causar a paralisia de ações, atrapalhando o atendimento às vítimas.

Quando se trata de crianças que ligam para o serviço, os sentimentos negativos aparecem e as volições são as mais variadas. Na entrevista a seguir, Álvaro expressou essa situação sobre a criança que procura o Disque 100:

Tinha sentimentos meio que de revolta no fato daquela criança estar sendo abusada, mas meio que assim também de […] essa pessoa acaba que quebra o silêncio, né, e você pensar o que levou aquela criança a ligar para registrar aquela denúncia? Então, tem o sentimento de revolta da questão em si, mas tem o sentimento de responsabilidade de que você tem que tentar de uma maneira ou outra (Álvaro).

Álvaro ressalta a atitude da criança, sua autonomia e iniciativa de ligar para o serviço, "quebrar o silêncio" e até faz provocação sobre como ou qual situação a criança estaria vivenciando e quão difícil é para ela, a ponto de ela resolver dar um basta nos abusos, procurando acessar o Disque 100 e pedir ajuda. Todavia o acesso do abusador sexual de crianças e adolescentes é sentido de forma diferente:

E tem a outra situação que é a pessoa falar "eu abuso", isso pra mim é o tipo de ligação mais chata […] a gente sabe que ele liga pra, digamos que, não sei se ele sente prazer naquilo de ligar, pra ficar desafiando o serviço, mas o que a gente mais percebe é isso, entendeu? "Ah, eu abuso sexualmente, isso pode, isso não pode?". Ou conta uma história […] Então, acho que essas questões que me deixaram muito revoltado mesmo. E até onde vai a maldade do ser humano? (Álvaro).

O entrevistado declara que o atendimento ao autor do abuso sexual contra crianças e adolescentes é considerado difícil e conduz à revolta, classificando esse ato como maldade exercitada pelo ser humano. Revela sentir esse afeto durante esses atendimentos, porque detalhes dos abusos são verbalizados, desdobrandose em processos subjetivos, pois a imaginação das cenas relatadas mostra-se inevitável. Ribeiro (2004) revela que isso ocorre porque os abusos sexuais contra crianças e adolescentes são concebidos pelas pessoas como absurdos e horrorosos.

O ódio é um sentimento análogo à revolta, sentido pelos teleatendentes, monitores e escuta especializada. Maria revela o processo imaginativo, que acontece contíguo ao atendimento da denúncia, relatando que tal processo inicia-se com a fala do usuário, passa pela imaginação do teleatendente e termina com sentimento de ódio vivido. Ela descreve:

Abuso sexual, por exemplo, a criança que é abusada todos os dias, naquele exato horário, quando fala assim "é uma criança negra, tem quatro anos", você já imagina a criança, não imagina o rosto, porque não tem como, mas você já imagina o tamanho da criança; "o cara é muito alto" e você já imagina aquele cara, que ele é alto; "ele é forte", você imagina aquele cara muito forte abusando de uma criança de 4 anos. Você registra a denúncia e, no momento, vem aquele sentimento de ódio, você tem um sentimento de ódio (Maria).

Os detalhes acerca do autor de abuso sexual de crianças ou adolescentes ou ainda da própria situação do crime são motivadores de sofrimento. Como pode ser constatado na fala de Maria, são os detalhes relatados que suscitam seu processo imaginativo, culminando, necessariamente, em ódio. Ela argumenta que existem casos em que a deixam mobilizada como quando o conteúdo da denúncia envolve o chamado "pacto de silêncio" perpetrado pelo abusador à vítima. Ela diz:

"Olha, você não vai contar nada pra sua mãe, senão eu vou te matar." Eu fico nervosa, porque como é que fica na cabeça da vítima, entendeu? O que ela pode fazer realmente? E quando a mãe sabe e que também é vítima dele? Que ele bate nela, que ele espanca ela, que ele bota a faca no pescoço dela e diz "Olha, você não vai falar nada pra ninguém", que a filha dela tá sofrendo abuso sexual, mas, se ela fizer alguma coisa, as duas correm risco de morrer (Maria).

Os atendimentos feitos a abusadores sexuais de crianças e adolescentes trazem como repercussão o poder de mudar completamente a forma de Maria agir em seu trabalho e diante do próprio atendimento realizado. Ela ressalta que sua calma e tranquilidade dão lugar à agressividade e rispidez. São palavras dela:

Então, quando acontece um fato desse, "eu abuso", quando o pedófilo liga pra gente, é diferente, [meu] comportamento é totalmente agressivo, eu me transformo, eu sou outra pessoa. Eu sou tranquila, calma pra atender, mas, quando o pedófilo fala assim "eu tô abusando", aí pode ser oito horas da manhã que eu já mudo, na hora, meu comportamento (Maria).

Sobre os abusadores sexuais de crianças e adolescentes, Cristina revela tentativa de ressignificar a imagem internalizada acerca desse sujeito. Ela diz que construía uma imagem absolutamente negativa da pessoa que abusou, mas que, como consequência do conhecimento dos valores constitutivos do Disque 100, tenta se livrar dessa imagem. Ela enuncia:

Eu sempre tive a tendência, como todo mundo, de ter raiva, de ficar indignada: como ele pode fazer isso? É uma criança! Ele tem que morrer, ele é um safado, ele não presta. Mas eu comecei a pensar muito no […] contexto, no que leva ele a fazer isso; na vida pregressa dele, o que ele fez, quais as condições que aconteceu, como é que aconteceu (Cristina).

Cristina manifesta uma atitude crítico-reflexiva ao questionar-se sobre o processo subjetivo de constituição de um abusador sexual de crianças e adolescentes, ou seja, que momentos de sua história de vida foram marcantes e favoráveis a tais violências, em que contexto ele esteve e o que o constituiu subjetivamente, quais são as circunstâncias do abuso? Com essas reflexões, Cristina dá indícios de que não tem julgado o abusador pela aparência construída social e historicamente, adjetivando-o sempre negativamente. Parece ir além da aparência, buscando a compreensão da subjetividade como síntese de determinações diversas (Oliveira, 2005).

3.2 Nojo

Não raro os atendentes do Disque 100, bem como os monitores ou os que assumem o cargo de escuta especializada, mostram-se enojados com os conteúdos de algumas (ou muitas) denúncias recebidas de abuso sexual contra crianças (Andrade & Sousa, 2013b). O sentimento de "nojo" evidencia um completo estranhamento e não concordância com a situação exposta pelos usuários. O estranhamento ocorre por estarem envolvidos os autores da violência e a sua atitude durante o acesso ao serviço, que varia do relato pormenorizado do abuso sexual (inclusive concomitante ao atendimento, ou seja, relata em tempo real o que está fazendo com a criança) até a própria masturbação, aproveitando a oportunidade telefônica. Nesse sentido, os atendentes expressam nojo do autor do abuso e vontades/volições variadas, como enunciadas:

Lidar com pedófilo é um pouco de asco assim, sabe? […] Geralmente eles ligam, e a gente não sente asco pelo que ele fala, mas porque ele começa a sussurrar no telefone e a gente percebe que ele tá se masturbando no momento da ligação, entendeu? Então isso incomoda um pouco, mas tranquilo, também consigo conduzir numa boa (Teresa).

Teresa relata a repulsa sentida durante o atendimento ao abusador sexual, que não liga para pedir ajuda por estar em estado de sofrimento psíquico, mas sim para usar a atendente como meio para obtenção de prazer enquanto se masturba. Apesar desse afeto, claramente expresso, ela argumenta que consegue fazer o atendimento seguindo um script do serviço, ou seja, ser a pessoa que conduz a ligação com diálogo rápido, claro e objetivo.

Ao relatar situação semelhante, Maria mostrou, neste trecho da entrevista, uma intensa carga emotiva e expressou seus desejos em relação ao abusador:

Ele só quer ouvir sua voz, se masturbar. Esse eu tenho muita vontade de xingar […]. Eu fico com muito nojo, muito, muito nojo […] que tira a roupa dela, que faz isso e aquilo com ela […]. São pessoas que, sinceramente, eu acho que não teria que ter mais vida, eu acho que, por mim, eu fazia uma maldade com ele (Maria).

Dessa forma, fica subentendido que Maria concebe o autor dos abusos sexuais como o único e exclusivo culpado, de forma que a complexidade do fenômeno é reduzida à individualidade e, assim, é possível resolvê-lo com extermínio, seguindo a máxima do "olho por olho, dente por dente".

3.3 Tristeza/Sofrimento

Frequentemente, o sentimento de frustração dos trabalhadores é acompanhado de tristeza (Andrade & Sousa, 2013a). As limitações tanto do funcionário quanto do próprio serviço e também dos órgãos aos quais são encaminhadas as denúncias são causadores desses sentimentos, desdobrando-se em um círculo vicioso de sentimentos e atitudes. Sobre as falhas dos órgãos que compõem a rede de proteção de crianças e adolescentes, denominada por Guedes (2012) de redes de proteção social, Bruna reflete:

É triste a realidade desses órgãos para onde são encaminhados os atendimentos, porque, muitas vezes, são casos que ficam ali na prateleira, sabe […]. E aí bate um desespero, e aí você olha assim: meu Deus! O que é isso gente? É Ministério Público, é Promotoria, é Delegacia, é Conselho, e aí ele vem falar que a situação continua a mesma? (Bruna).

Essa entrevistada relata os casos de denúncias que ficam aguardando providências dos órgãos que as recebem ou transitando entre um e outro órgão, sem receberem conclusões e responsabilizações. Pode-se ressaltar que, nesse jogo de "empurra-empurra" entre os responsáveis, as crianças e os adolescentes continuam sofrendo violências e, algumas vezes, morrem em decorrência dos inúmeros maus-tratos. Quando os órgãos não apresentam competência na resolução dos casos ou nas situações que envolvem extrema violência, é inevitável o sofrimento dos teleatendentes, monitores e escuta especializada, sentimento que esses sujeitos desenvolvem por não saberem manejá-los ou então direcionálos. Bento revela tristeza e as repercussões desse sentimento em sua vida, bem como manifesta a necessidade de desabafar:

Eu simplesmente não externalizava nenhum tipo de sentimento de sofrimento, e eu ficava extremamente sensível mesmo, de não poder ouvir uma criança chorando que eu ficava mal. E eu compreendo que isso é como se fosse a questão […] de encapsular esses sentimentos e que chega um momento que estoura mesmo. É isso […] eu, pelo menos, fico triste, angustiado, "deprê" e pessimista, entendeu? (Bento).

O entrevistado revela que a consequência do que vivencia no atendimento às denúncias é ficar angustiado, deprimido e pessimista, chorando facilmente por lembrar-se das denúncias envolvendo abuso sexual de crianças e adolescentes.

3.4 Frustração/Impotência

O Disque-Denúncia é um serviço que tem as funções de receber, encaminhar e monitorar denúncias. Não executa, portanto, a cessação da violência sofrida pela vítima que as formaliza, tampouco é incumbido de fazer as devidas responsabilizações aos denunciados. Existe uma tensão entre as características do serviço, as volições e as reverberações dos atendimentos dos teleatendentes, monitores e escuta especializada.

Ana argumenta que sua frustração se instala quando percebe sua limitação diante do processo necessário para a retirada da vítima das situações de abuso, salientando que, "Às vezes, é um sentimento meio de frustração pelo limite: olha, meu atendimento só pode ir até aqui, não mais do que isso". É como se o seu papel fosse o primeiro de inúmeros outros necessários.

Álvaro revela sua vontade de desempenhar papel que vai além de suas atribuições. Afirma que, como consequência do atendimento, almeja ir até o local e dar um fim, ele mesmo, à situação de abusos vividos pelas crianças e adolescentes. Ele também relata:

Dá vontade de ir lá e resolver a situação. Mesmo que você não tenha poder para isso […]. Você sabe que você tá fazendo seu papel, o seu melhor possível, e sabe que, lá na frente, pode ser que uma pessoa pegue essa denúncia e não ache assim tão séria […] "Ah, tá, não posso ir agora lá não, vou deixar para amanhã". Por acomodação de órgãos mesmo. Nisso a criança acaba morrendo (Álvaro).

Álvaro tece críticas à atuação dos órgãos que compõem a rede de proteção social, mostrando que nela existem falhas que, muitas vezes, custam a vida da vítima. Scrivano (2013) afirma que existem conselhos tutelares que não dispõem de espaço físico adequado e sequer de combustível para os automóveis usados no cotidiano do serviço.

3.5 Angústia/Adoecimento

Angústia é uma das emoções mais relatadas entre os sujeitos pesquisados. Pode-se apreender pelo menos uma referência de cada teleatendente, monitor e escuta especializada entrevistados acerca da angústia/adoecimento. Esse afeto aparece no depoimento dos sujeitos, muitas vezes acompanhado por processo de adoecimento em decorrência das limitações de atuação diante das denúncias formuladas, pela identificação dos atendentes com os usuários e vontade de eles próprios solucionarem os casos de violência.

Cristina fala sobre a angústia e sentimentos análogos bem como sobre as consequências do recebimento de denúncias:

Eu nunca fiz nada para lidar com o sentimento de raiva, de angústia […], tanto é que passei por um momento complicado, que você acha que a vida está parada, […] que a vida é uma porcaria. E você fica triste sem entender o motivo. Eu acho que aqui tem muita gente que começa a chorar e não sabe o porquê que está chorando. Fala: "Ah! Minha vida é muito boa, tenho pai, mãe" […], mas se sente muito triste. (Cristina).

Cristina destaca que, mesmo tendo pai e mãe, mostra-se entristecida, chorosa, como se tivesse perdido o sentido de sua existência. A angústia passa a ser um sentimento frequente em seu cotidiano como consequência do atendimento às denúncias.

Ansiedade, sofrimento e adoecimento podem ser notados na fala de Bruna:

A gente adoece, há situações que você tem que partilhar com alguém, fica semanas comentando uma situação e esperando o retorno dos órgãos competentes, e a gente fica ansioso em saber o que aconteceu com aquela criança: "e, aí, gente! Alguém atendeu fulana, alguém atendeu sicrana", e aí se você não tomar cuidado, é justamente essa carga de sofrimento que para na gente e a gente, de alguma forma, tem que arrumar uma válvula de escape, porque, se não, a gente fica doida (Bruna).

Essa entrevistada apresenta característica complementar à mencionada por Cristina. Fala sobre uma possível forma de lidar com o sofrimento experienciado nos atendimentos. Diz que a ansiedade de esperar um retorno das redes de proteção social sobre o caso é real e gera sofrimento pela expectativa de saber se a vítima foi ou não retirada da situação de violência. Relata que, em certos atendimentos, obviamente os mais marcantes, é necessário falar sobre eles com outros atendentes até que o caso seja solucionado, o que pode perdurar por semanas. Conversar com outros atendentes funciona, portanto, segundo Bruna, como terapêutica, visando à redução de sofrimento.

Sobre a ansiedade sentida em consequência da espera de respostas dos órgãos da rede de proteção social, Bento desabafa:

Com relação à atribuição e ao lidar com a situação, são muitos sentimentos mesmo, de tristeza de angústia, porque o que a gente ouve não é fácil. E assim, tem momentos que você se identifica muito com algo que você tinha e te incomoda muito, muito mesmo. Tem situações que, pra mim, é muito difícil, violência contra crianças, vamos dizer assim, com menos de 4 anos sabe, porque assim a criança é totalmente vulnerável mesmo, ou então bebê. Surge um sentimento de muita angústia, de aflição e agonia mesmo, entendeu? (Bento).

No depoimento de Bento, percebem-se dimensões semelhantes às apresentadas por Bruna quando ambos tentam expressar como lidam com os sentimentos vividos no atendimento. Bento destaca quão difícil é atender denúncias nos dias em que está sensibilizado. Acrescenta dois aspectos relevantes: o primeiro, de identificar-se com o conteúdo da denúncia relatada, e não raro isso acontece; o segundo, o de a vítima ser bebê ou criança pequena. São situações em que o sofrimento ganha enormes proporções. Bento atribui a essas situações e às limitações o processo de adoecimento sofrido por tantos atendentes. Ele assim se expressa: "E se eu for me angustiar por isso, eu vou adoecer muito, porque eu vou me angustiar pelas coisas que eu não consigo atender. E eu já me angustiei por isso, mas se eu me martirizar mais ainda, eu não trabalho mais" (Bento).

Teresa atribui o motivo causador da sua angústia e de seu sofrimento à espera pela resposta do órgão responsável pela proteção de crianças e adolescentes. Muitas vezes, a vítima corre o risco de morrer, e a espera pelos encaminhamentos se torna ainda mais dolorosa, como é dito por ela:

A vítima tá numa situação cada vez pior! A menina vai morrer se continuar desse jeito. A gente fica um pouco inquieto […], a gente, com certeza, fica: "Ó meu Deus, o que vai acontecer com aquela menina?" […] Às vezes, a gente fica desejando uma resposta do órgão (Teresa).

A dúvida quanto à resolução ou não do caso, com a consequente cessação dos abusos, é geradora de ansiedade, principalmente se há risco iminente de morte da vítima, como são os casos em que esta está exposta à situação denunciada por tempo prolongado.

Além dos sentimentos negativos apresentados anteriormente, também são relatados pelos teleatendentes, monitores e escuta especializada sentimentos como humanização e felicidade na realização da escuta das denúncias.

3.6 Humanização

Teresa se manifesta sobre sentir-se mais humanizada ou humana como consequência do recebimento de denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes, afirmando que esse sentimento é possível apenas quando o teleatendente consegue, de alguma forma, colocar-se no lugar da vítima, entender o processo que ela está vivenciando, ser empático e tentar ajudar. A partir do momento em que recebe a ligação com empatia, a consequência é um atendimento mais sensível e delicado dispensado ao usuário. Teresa assevera:

A partir do momento que você consegue se colocar no lugar do outro, enxergar com os olhos dele a situação, acho que você consegue fazer um atendimento mais delicado, mais sensível, mais humanizado […]. Então eu acho que o atendimento humanizado passa por isso, de ter a empatia, saber se colocar no lugar do outro (Teresa).

Bruna afirma que, quando o teleatendente ingressa no DDH, muitas vezes não tem perfil. Adquire-o somente com o passar do tempo, com experiência vivida no labor diário, mediante o enfrentamento das diversas situações. Ao subjetivar os valores instituídos pelo Disque-Denúncia, o trabalhador torna-se mais humano ou mais humanizado. Nas suas palavras:

Tem pessoas aqui que eu vejo que entram sem o mínimo de perfil, mas, ao longo do tempo, […] a pessoa vai se tornando um ser humano melhor. Sabe, é quando você ouve, você sabe que tem sofrimento em tudo quanto é canto desse Brasil, mas quando você ouve exatamente o que acontece você vê até o seu sofrimento bem inferior e aí você começa a se tornar um ser humano melhor, você tem obrigação, como pessoa, como ser humano mesmo, de tratar o outro de forma humanizada mesmo, essa é a palavra […] A psicóloga […] tocava sempre na mesma questão de a pessoa ser muito humanizada pra trabalhar aqui. Então não havia a questão de você se acostumar com o que você ouve aqui (Bruna).

Essa entrevistada revela que trabalhar no DDH implica escutar relatos que envolvem extrema violência oriunda de todo o território brasileiro, a qual o teleatendente jamais imaginou que existisse, dando indícios a esse trabalhador de que seus problemas são muito menores que os vividos por tantas crianças e adolescentes brasileiros. Escutar o sofrimento dos usuários traz, como assevera Bruna, a obrigação de o teleatendente tornar-se mais humano, ou seja, de, cada vez mais, atender com valores humanos as pessoas. Concomitantemente a essa atitude está a de não se acostumar a escutar e elaborar denúncias, mas, sim, de conceber, de modo específico, a demanda de cada solicitante.

Sara se posiciona de forma contrária ao fato de o teleatendente acomodarse com o trabalho realizado no DDH e afirma: "Acho que Deus me livre de naturalizar esse tipo de coisa! Tem que indignar […] sempre ficar indignada. Acho que tudo move a gente". Se o teleatendente se acomoda com aquilo que ouve do usuário, essa atitude não desperta nesse trabalhador a vontade de agir em prol de restabelecimento dos direitos das crianças e adolescentes, ao passo que, se ele ficar indignado, incomodado com os relatos, agirá pensando em desenvolver um bom trabalho, formulando a denúncia para posterior encaminhamento. Assim, o objetivo é sempre o mesmo: cessar a violência e restabelecer o direito usurpado, defender, enfim, os direitos humanos de crianças e adolescentes.

Para discorrer sobre o processo ou sentimento de humanização necessário aos trabalhadores do Disque 100, Álvaro lança mão de conceitos caros às Ciências Humanas: sociedade, ética, cidadania, capitalismo e individualismo. Assim se expressa:

Então, eu acho que a sociedade devia se capacitar mais, interessar mais em proteger o próximo e não ser tão egoísta assim […] Se eu posso fazer, eu faço, independente de ser um conhecido meu ou não, mas eu acho que eu me tornei muito mais humanizado trabalhando aqui do que eu quando eu entrei […] Você se torna uma pessoa ética, de exercer a sua cidadania, menos egoísta, né. Que é o que o capitalismo prega, né? Que é essa questão de você ser egoísta e pensar só em você, né? Vai levar a ruína para nossa sociedade se continuar assim (Álvaro).

A discussão de Álvaro tem como eixo norteador o fato de que a sociedade capitalista constitui sujeitos egoístas, que não pensam em uma proposta de sociedade que preze pelos interesses coletivos, resultando em violência que, segundo Chauí (1998), contrapõe-se à ética. Sawaia (2009, p. 370) contribui com a discussão por meio do conceito de sofrimento ético-político, revelando: "Trata-se de sofrimento/paixão, gerado nos maus encontros caracterizados por servidão, heteronomia e injustiça, sofrimento que se cristaliza na forma de padecimento".

3.7 Felicidade/Satisfação

Os momentos de felicidade e satisfação vividos pelos teleatendentes, monitores e escuta especializada do Disque 100 são poucos e estão relacionados aos usuários que acessam o serviço mostrando histórias de superação das violências sofridas. Além desse aspecto, esses sentimentos advêm da capacidade de o teleatendente receber a denúncia e registrá-la com competência. Penso, Costa, Ribeiro, Almeida, e Oliveira (2008, p. 215) asseveram que, no trabalho com crianças abusadas sexualmente, o profissional vive sentimentos de "empatia […] preocupação […] desejo de ajudá-las […] carinho pelas crianças […] alegria ao ver a força da criança em recompor sua vida".

Álvaro destaca que, na época em que assumiu o cargo de teleatendente, sentiase útil ao atender o indivíduo que acessava o Disque 100. Ressalta, todavia, que não experimentava apenas uma forma de sentimento. Ele assevera:

Quando eu atendia, a princípio, eu ficava, assim um sentimento assim meio que você tá sendo útil mesmo, né?! […] Não tem como você ter um sentimento único, né? Então, são basicamente dois opostos, né? Uma hora se sente feliz, outra hora se sente angustiado, triste (Álvaro).

Ele ressalta que os sentimentos vividos durante o atendimento no Disque 100 variam entre os opostos felicidade e angústia, pois uma ligação pode trazer uma informação positiva, como a de que a violência em relação a determinado caso foi solucionada; e sentimentos negativos, quando a ligação é de usuário que sofre extrema violência.

Clara tem um depoimento com sentido semelhante ao de Álvaro no que concerne à felicidade que sente ao ter um retorno positivo de determinado caso. Ela faz referência a isso e revela uma das situações em que sentiu felicidade:

Às vezes a gente sente um alívio, um sentimento bom de ter participado. Um retorno legal do registro que você fez de abuso e exploração da criança era uma rádio no interior de Goiás e tinha material pornográfico, que levava as crianças para a rádio e abusava dela ali, e tinha material nos computadores, né!? E é uma prova irrefutável, daí eu peguei a denúncia e, uma semana depois, o usuário ligou dizendo que tinha fechado a rádio. […] Dever cumprido, de paz. E é raro isso acontecer, porque a gente passa a denúncia e não sabe muitas vezes para onde você vai, o que acontece. Então a gente tem momentinhos de alegria, às vezes de euforia (Clara).

Ela destaca a importância de seu trabalho, porque, concretamente, ele contribui com a interrupção das situações de abuso e exploração sexuais vividas por crianças, por exemplo, no caso da Rádio no interior do Estado de Goiás, relatando sobre a felicidade de receber o "retorno" do caso. "Retorno" significa o usuário ou os órgãos que compõem a rede de proteção informar ao Disque 100 as medidas tomadas após o recebimento da denúncia. Cabe ressaltar que os retornos das autoridades não se constituem uma obrigação, mas sim uma forma de colaborar. Os retornos são pouco numerosos, prova disso é que a teleatendente usa o termo "momentinhos".

Bento tem sentimento parecido com o de Clara diante do recebimento de retornos das autoridades e também expressa sua felicidade:

A gente fica muito feliz quando alguém liga aqui e fala assim: "Olha, investigaram. A criança não está mais sofrendo violência, deu certo!". Lógico que é uma minoria que retorna pra fazer isso, pra falar isso, mas, quando isso acontece, é muito gratificante mesmo, muito, muito, muito mesmo (Bento).

"Gratificante" é o adjetivo encontrado por Bento para caracterizar a felicidade sentida quando recebe informação de que a violência contra aquela vítima chegou ao fim. Ele repete o termo "muito" para enfatizar quão se sente recompensado pelo seu trabalho.

Sobre atendimentos à vítima, Cristina fala de sua satisfação por ter a oportunidade de acalmar o usuário que liga chorando. Apesar de ser um atendimento que envolve muito sofrimento, traz satisfação. Ela declara:

Acho que eu me sentia bem em conversar, assim, com alguém na telefonia, em conseguir acalmar, em conversar com uma criança. Assim, é mais sofrido […] lidar com o sofrimento do outro assim, porque, às vezes, a pessoa liga chorando […]. É um atendimento diferente, é muito cansativo, mas, sei lá, eu sinto como se estivesse fazendo mais alguma coisa, uma coisa de maior importância (Cristina).

Já Elizabeth fala que a satisfação depende do tipo de usuário que está acessando o serviço, a própria vítima, alguém para denunciar abusos sofridos por outra pessoa ou ainda o próprio abusador. De forma geral, sente-se satisfeita quando o usuário rompe o silêncio que paira acerca das situações de abuso sexual contra crianças e adolescentes:

Quando é aquele usuário que está ligando, admitindo aquela limitação e pedindo ajuda, acho que é assim um sentimento de alívio. Que bom que ele ligou pedindo ajuda! Tanto que a gente ressalta o que ele poderia fazer, parabeniza a ação dele em pedir ajuda e se coloca à disposição dele. Então, é um alívio (Elizabeth).

A teleatendente sente-se aliviada ao saber que, ao acessar o serviço, a vítima está dando o primeiro e importante passo a fim de se livrar das violências sofridas. Ter contato com relatos de extrema violência e sentir-se feliz a cada boa resolução de casos traz repercussões subjetivas aos trabalhadores do DDH, o que tem relação estreita com o fato de se sentir cada vez mais humano ou humanizar-se.

Pelo exposto, fica evidente que abordar os afetos e seus desdobramentos para o bom desenvolvimento das atividades daqueles que se envolvem com o atendimento a crianças e adolescentes abusados sexualmente mostra-se essencial. Nesse sentido, Penso et al. (2008, p. 217) afirmam: "É fundamental conhecer e avaliar os sentimentos e as emoções que tais episódios de abuso provocam, pois, assim, é possível adequá-los melhor, para que possam auxiliar o profissional no processo de aproximação e intervenção com essas".

Trazer os afetos para a pauta de discussões no campo das Ciências Humanas e Sociais permite destacar esse importante constituinte da subjetividade do ser humano e que esteve por muito tempo relegado pela Psicologia, em decorrência de correntes racionalistas (Sawaia, 2000).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Discutir os afetos à luz da teoria sócio-histórica de Vygotsky mostra-se necessário, a fim de reforçar a superação da [suposta] dicotomia entre emoção e razão, como é ressaltado por Sawaia (2000), Molon (2009), Rego (2010) e Magiolino (2010). Discussão que, aplicada ao objeto desta pesquisa, postula o pensamento, a emoção e volição como dimensões psíquicas indissociáveis e presentes a todo o tempo, durante o trabalho desenvolvido pelos profissionais que atuam no DDH.

Ao atenderem os usuários do serviço em foco, os trabalhadores, indagam-se em como melhor atendê-los, emocionam-se com histórias contadas e agem em prol da cessação da violência relatada. Sua ação depende dos sentimentos ou emoções vividas e da forma como foram impactados durante a ligação. Ribeiro (2004) e Ribeiro e Costa (2007) oferecem subsídios teóricos a essas assertivas, ao argumentarem que as emoções direcionam as ações dos profissionais que lidam com estes fenômenos, e que é importante reconhecê-las, a fim de, com agilidade, prestar o melhor serviço possível aos sujeitos em situação de violência.

Dessas entrevistas, pôde-se apreender que os sentimentos de humanização e satisfação/felicidade são vividos quando a violência é cessada por consequência dos atendimentos aos usuários e se sustentam na percepção de terem se tornado pessoas mais humanas e preocupadas com o próximo, isto é, alguém mais sensível aos problemas dos outros. Os trabalhadores sentem-se gratificados, felizes e satisfeitos quando têm notícias de que crianças e adolescentes foram retirados das situações de violência. Talvez esse seja o ponto nodal e que poderia proporcionar melhoras nos atendimentos: contar com o respaldo dos órgãos de execução ao notificarem o DDH sobre a cessação da violência.

Os sentimentos de raiva/revolta/ódio e nojo são vividos quando do atendimento aos abusadores sexuais, entendidos como monstros, doentes, safados e maus. Raiva e revolta são os sentimentos mais referidos durante as entrevistas, ao lado da vontade de bater ou matar. Nojo é sentido diante do atendimento às ligações em que os abusadores sexuais relatam pormenorizadamente as cenas de sexo vividas com crianças e adolescentes ou diante das "ligações masturbatórias", momentos em que não se sabe se o abuso ocorreu ou não, mas que eles aproveitam a oportunidade do relato para masturbarem-se.

Entender e viver essa realidade produz tristeza, angústia, frustração e impotência nos teleatendentes, monitores e escuta especializada, principalmente quando não contam com o respaldo dos órgãos de execução, ou seja, da rede de atenção que não funciona em virtude de suas falhas estruturais e da falta de capacitação de pessoal. Com a pesquisa objeto deste artigo, pôde-se apreender, então, que as emoções estão sempre presentes de forma marcante no trabalho desenvolvido pelos atendentes do Disque 100, tanto no atendimento à criança abusada como à outra pessoa, denunciando situação de abuso, quanto ao abusador.

Espera-se que esta investigação contribua com o campo das Ciências Humanas e Sociais, possibilitando leituras e análises das informações empíricas fundadas na teoria sócio-histórica de Vygotsky, mediante a qual se entende os afetos e o abuso sexual como fenômenos psicossociais em meio às relações interpessoais dos seres humanos, ativos, possuidores de história e com possibilidades de transformá-la.

Além disso, ela traz contribuições ao Disque-Denúncia ao permitir visibilidade e relevância das denúncias como um primeiro instrumento que objetiva a cessação da violência sofrida por crianças e adolescentes; ressalta a importância do serviço, por sua abrangência nacional e pela construção de dados contínuos e longitudinais sobre o panorama da violência sofrida pelas crianças e adolescentes brasileiros e, por fim, desse serviço como componente das políticas de proteção e garantia de direitos desses sujeitos. Entretanto, como os temas discutidos neste artigo não estão resolvidos, fechados e definidos, nem na empiria tampouco nas epistemologias, fazem-se necessários esforços constantes no campo científico para apreensão dessa realidade, entendendo que ela é processual, transforma-se e cria novas contradições.

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Texto recebido em 11 de dezembro de 2014 e aprovado para publicação em 15 de setembro de 2015.

 

 

* Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia da PUC Goiás, bolsista CAPES.E-mail: viniciusnga@ hotmail.com..
**Doutora em Psicologia Social pela PUC São Paulo, professora titular do Curso de Psicologia da PUC Goiás.E-mail: smgsousa2@gmail.com..
1Essa pesquisa de mestrado foi realizada no Disque 100, ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República do Brasil, no ano de 2010, momento em que houve a mudança de denominação de Disque 100 para Disque Direitos Humanos. Como forma de manter o conhecimento produzido atualizado, doravante, neste artigo, será utilizada apenas a nomenclatura de Disque Direitos Humanos ou DDH.


2Os sujeitos foram selecionados a partir da pesquisa matriz já mencionada. Buscou-se características diversas entre si (conforme descrito nos pormenores metodológicos) compondo um grupo mais heterogêneo possível.


3Critérios não detalhados, a fim de se evitar a identificação dos participantes.


4Esses nomes foram escolhidos aleatoriamente, com o objetivo de manter o anonimato dos sujeitos pesquisados, preservando-os, portanto, de serem identificados.


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