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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.24 no.1 Belo Horizonte Jan./Apr. 2018

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p291-301 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p291-301

 

Desafiando a norma: normalização, resistência e guerra social no Brasil

 

Challenging the norm: normalization, resistance and social war in Brazil

 

Desafiando la norma: normalización, resistencia y guerra social en Brasil

 

 

Marco Antônio Sousa Alves*

 

 


Resumo

O artigo pretende, com base na análise do poder empreendida por Michel Foucault, refletir sobre os mecanismos de normalização e as lutas contemporâneas anti-identitárias. Em primeiro lugar, é analisada a crítica desenvolvida na primeira metade da década de 1970 à filosofia política tradicional e ao discurso jurídico do poder, quando então o foco de suas análises foi dirigido para outros mecanismos de natureza disciplinar ou biopolítica. Em segundo lugar, o estudo é dirigido para a maneira como Foucault via as lutas contemporâneas, tomadas como formas de resistência aos mecanismos de normalização, entendidas em seus últimos anos de vida como uma arte de não ser governado de determinada maneira. Por fim, o trabalho aborda a guerra social em curso hoje no Brasil, tomando-a como mais um exemplo de investida normalizadora que torna ainda mais oportuno lembrar Foucault, em especial a sua postura de resistência.

Palavras-chave: Foucault. Normalização. Resistência.


Abstract

This article aims to investigate the mechanisms of normalization and the contemporary anti-identity struggles starting from the analysis of power undertaken by Michel Foucault. First of all, the criticism developed in the first half of the 1970’s towards the traditional political philosophy and legal discourse of power is brought into analysis, at the time when the focus of their analysis was directed towards other disciplinary and biopolitical mechanisms. Secondly, the study focus on how Foucault saw contemporary struggles, taken as forms of resistance against the mechanisms of normalization, understood in his final years as an art of not being governed in a certain way. Finally, the study will address the ongoing social war in Brazil, taking it as another example of normalizing attack that makes it even more appropriate to remember Foucault, especially his attitude of resistance.

Keywords: Foucault. Normalization. Resistance.


Resumen

El artículo pretende, a partir del análisis del poder emprendido por Michel Foucault, reflexionar sobre los mecanismos de normalización y las luchas contemporáneas anti-identitarias. En primer lugar, se analiza la crítica desarrollada en la primera mitad de los años 1970 a la filosofía política tradicional y al discurso jurídico del poder, cuando entonces el foco de sus análisis se dirigió hacia otros mecanismos de naturaleza disciplinaria o biopolítica. En segundo lugar, el estudio se dirige a la manera como Foucault veía las luchas contemporáneas, tomadas como formas de resistencia a los mecanismos de normalización, entendidas en sus últimos años de vida como un arte de no ser gobernado de determinada manera. Por último, el trabajo abordará la guerra social en curso hoy en Brasil, entendida como un ejemplo más de ataque normalizador que hace aún más oportuno recordar Foucault, en especial su postura de resistencia.

Palabras clave: Foucault. Normalización. Resistencia.

1. INTRODUÇÃO

Neste ano de 2017, no último dia 15 de outubro, Dia do Professor, Foucault completaria 91 anos. Embora a aids não tenha permitido que ele estivesse aqui de carne e osso, suas ideias ou "caixas de ferramentas" certamente sobreviveram ao tempo e estão cada vez mais vivas e operantes entre nós. Com grande acerto, a PUC Minas e a Fhemig organizaram um evento comemorativo desta data, com o instigante título de O belo perigo, fazendo referência a uma expressão empregada por Foucault em uma conversa que teve em 1968 com o crítico literário Caude Bonnefoy, texto que foi recentemente publicado no Brasil (Foucault, 2016). Este artigo nasceu de uma apresentação feita nessa ocasião, em uma mesa intitulada Desafiando a norma, tendo por pretensão relembrar algumas problematizações de Foucault com relação aos mecanismos de normalização, assim como apontar para a pertinência dessas reflexões para os dias atuais, especialmente no Brasil.

Não creio haver melhor maneira de comemorar a presença de Foucault em nossas vidas do que desafiando a norma. Apesar de suas múltiplas faces e de seu desejo expresso de que não lhe impusessem a "moral do registro civil", creio que podemos vê-lo, acima de tudo, como alguém que desafiou permanentemente a norma. Suas experiências de pensamento revelam uma permanente inquietude com relação às nossas maneiras de ser, de pensar e de agir, uma postura crítica quanto àquilo que tomamos por normal, natural ou necessário. Foucault ensinou, com palavras e com gestos, a resistir e a lutar pela liberdade de virmos a ser outros em relação ao que somos hoje, pela possibilidade de nos transformarmos radicalmente.

Neste texto, gostaria de refletir sobre o tipo de desafio que Foucault lançou sobre as normas, tratando de temas como as lutas contemporâneas (não identitárias) e os conflituosos mecanismos de normalização e exclusão. Em primeiro lugar, o foco do trabalho será a analítica do poder desenvolvida por Foucault na década de 1970, que visava a romper com o tradicional discurso jurídico e procurava direcionar nosso olhar para outros mecanismos de poder, de natureza disciplinar ou biopolítica. Nesse momento, desejo ressaltar ainda a defesa feita por Foucault da elaboração de novas estratégias de luta, para além da afirmação dos direitos. Na sequência, pretendo analisar a maneira como Foucault via as lutas contemporâneas, tomadas como formas de resistência aos mecanismos de normalização. Por fim, gostaria de concluir este trabalho abordando a guerra social hoje existente no Brasil, tomando-a como mais um exemplo de investida normalizadora que torna ainda mais oportuno lembrar Foucault, em especial sua postura de resistência.

2 DESAFIANDO A NORMA: A RESISTÊNCIA PARA ALÉM DO DIREITO

Na primeira metade da década de 1970, Foucault desenvolveu uma analítica das relações de poder no seio do chamado projeto genealógico, dirigindo, então, um olhar bem crítico à filosofia política tradicional. Essas reflexões encontraram uma forma bem-acabada em Vigiar e punir (1975), no primeiro volume da História da sexualidade (1976), assim como no curso ministrado em 1976 no Collège de France, intitulado Em defesa da sociedade (Foucault, 1988; 1999; 2005a).

Em suma, a filosofia política tradicional é vista como uma série de teorias do poder fundadas no discurso jurídico, que teria por eixo básico a ficção contratualista, a negatividade da lei e a questão da soberania e do Estado. Segundo Foucault, seria preciso libertar-se da representação jurídica do poder para que as formas tipicamente modernas de dominação pudessem ser adequadamente percebidas. Isso porque, na leitura então empreendida, o poder, na Modernidade, operaria não mais por meio do mecanismo legal, mas, sobretudo, por meio de outros mecanismos eminentemente disciplinares ou biopolíticos.

Na aula de 14 de janeiro de 1976, no seio do curso Em defesa da sociedade, Foucault afirmou, nesse sentido, que o discurso jurídico tinha por função essencial dissolver ou mascarar o fato da dominação, fazendo aparecer, em seu lugar, os direitos legítimos da soberania e o dever de obediência (Foucault, 2005a, p. 31). No primeiro volume da História da sexualidade: a vontade de saber (1976), Foucault encontrou a explicação dessa curiosa hegemonia do modelo jurídico justamente pela sua capacidade de ocultação, uma vez que o poder é tanto mais tolerável e eficiente quanto mais mascarado for o seu funcionamento (Foucault, 1988, p. 83).

E mais do que um simples instrumento de ocultação e um operador de legitimação, o direito teria funcionado ainda como uma linguagem da vida real do poder. Ou seja, o discurso jurídico teria estabelecido o vocabulário da filosofia política, a linguagem obrigatória para a formulação de qualquer crítica aos mecanismos de poder, que deveria ser sempre formulada nos termos de um "direito a algo". A analítica do poder desenvolvida por Foucault na década de 1970 pode ser vista justamente como uma tentativa de contraposição a isso, um esforço de investigação que parte das múltiplas formas de dominação e sujeição, deixando de lado a tradicional questão da legitimidade do poder soberano.

Nesse esforço analítico empreendido na década de 1970, a noção de normalização desempenhou um papel fundamental. Na leitura feita por Foucault, vemos emergir, nos séculos XVIII e XIX, uma sociedade de normalização, na qual o funcionamento do poder prescinde geralmente do direito soberano, da forma da lei, para se basear essencialmente nas normas disciplinares ou biopolíticas. No curso Em defesa da sociedade (1976), Foucault sustenta claramente a tese de que o poder disciplinar teria avançado sobre o poder soberano, ou seja, as normas teriam invadido e tomado o lugar do direito. Em razão justamente dessa colonização da lei pelos procedimentos de normalização é que Foucault chega a afirmar que uma nova sociedade estaria sendo construída: uma sociedade de normalização (Foucault, 2005a, p. 45-46).

Nesse mesmo sentido, em Vigiar e punir (1975), Foucault afirmou, no capítulo dedicado ao panoptismo, que a generalização dos dispositivos disciplinares seria o lado mais sombrio das luzes e do processo de instalação de um direito burguês codificado. Em suma, Foucault afirma que a forma jurídica, com seu sistema de garantias individuais e de proteção a direitos fundamentais, teria servido basicamente para ocultar os mecanismos miúdos, cotidianos e físicos das disciplinas, que operariam de modo essencialmente desigual e assimétrico. Como podemos ler em Vigiar e punir: "As disciplinas reais e corporais constituíram o subsolo das liberdades formais e jurídicas" (Foucault, 1999, p. 209).

Mais do que um prolongamento do direito ou um "infradireito", os mecanismos disciplinares são aqui descritos como um "contradireito", ou seja, um modo de funcionamento do poder incompatível com a imagem dos sujeitos livres e iguais, que realiza uma suspensão das leis e opera essencialmente ao arrepio do direito, instaurando uma espécie de exceção permanente (Foucault, 1999, p. 209-210). Ou seja, Foucault vai além da mera afirmação de que os dispositivos disciplinares, em razão do caráter abrangente e exaustivo deles, atingiriam domínios aos quais o direito mostrar-se-ia incapaz de chegar. Mais do que isso, o que se afirma é que a disciplina nega o direito, ela tem uma natureza eminentemente antijurídica, fazendo funcionar por debaixo das leis um mecanismo de sujeição e de dominação que a análise tradicional da filosofia política, voltada para questão da legitimação do poder soberano e da afirmação de direitos e garantias, não percebe e, por consequência, mostra-se incapaz de criticar e de dar forma a uma contraposição eficaz.

Em uma sociedade de normalização desse tipo, Foucault deixa claro que a resistência precisa assumir novas formas, para além da luta pelo poder estatal, invocando o velho direito burguês e a legitimidade soberana. Em Vigiar e punir, logo após observar o caráter antijurídico dos mecanismos disciplinares, Foucault enfrenta essa questão, afirmando que "as disciplinas ínfimas, os panoptismos de todos os dias podem muito bem estar abaixo do nível de emergência dos grandes aparelhos e das grandes lutas políticas" (Foucault, 1999, p. 210). Ou seja, desafiar a norma impõe outras estratégias para além da luta pelo direito e pelo poder do Estado.

No fim da aula de 14 de janeiro de 1976, no curso Em defesa da sociedade, Foucault é ainda mais explícito nesse sentido. Ele afirma então que "não é recorrendo à soberania contra a disciplina que poderemos limitar os próprios efeitos do poder disciplinar" (Foucault, 2005a, p. 47). E ele conclui esse ponto, deixando claro que, para lutar contra o poder disciplinar, "não é na direção do antigo direito da soberania que se deveria ir" (Foucault, 2005a, p. 47).

Convém lembrar, contudo, que Foucault adotou, alguns anos depois, uma postura sensivelmente diferente quanto à relação entre os diferentes mecanismos de poder. No curso Segurança, território, população, ministrado, em 1978, no Collège de France, após um ano de licença sabática, logo na primeira aula, no dia 11 de janeiro de 1978, Foucault rechaça a ideia de que haveria uma linha histórica entre os diversos mecanismos de poder. Marcando claramente seu distanciamento em relação às análises anteriormente empreendidas, Foucault deixa claro que as novas formas já estavam, em certa medida, presentes nas antigas, que permanecem também nas novas. Em sentido contrário à tese do recuo do jurídico, Foucault enfatiza então a correlação entre os mecanismos jurídico-legais, disciplinares e de segurança, chegando inclusive a afirmar que houve uma "inflação legal" na era da disciplina e da segurança (Foucault, 2008, p. 10-13).

Ainda nesse curso de 1978, na aula de 25 de janeiro, Foucault revê também a noção de normalização, oferecendo um refinamento maior ao termo. Ele começa fazendo referência à teoria da norma de Hans Kelsen, lembrando que, embora todo imperativo estabeleça um dever, a normatividade intrínseca à lei não se confunde com os procedimentos, processos e técnicas de normalização. Mas Foucault dá um passo além nessa distinção entre lei e norma, já fixada anteriormente, uma vez que ele aponta para uma diferença dentro do domínio da norma, especificando melhor a natureza própria à normalização. Nesse momento, Foucault defende que a disciplina envolve mais propriamente uma estratégia de normação, visto que ela tem como ponto de partida uma norma ou um modelo prévio, estabelecendo, a partir daí, as sequências ou as coordenações ótimas, os procedimentos de adestramento progressivo e de controle permanente. Somente então a demarcação entre os normais (aptos) e os anormais (inaptos) é traçada. Por outro lado, Foucault ressalta, nessa aula, que os dispositivos de segurança partem, eles sim, do normal, de modo que podem ser mais corretamente associados a uma estratégia de normalização. Dado o normal, a média efetivamente verificada, somente então as normas são deduzidas e fixadas, vindo, desse modo, a desempenhar seu papel operatório no governo das populações (Foucault, 2008, p. 73-87).

Apesar dessas mudanças, enfatizadas pelo próprio Foucault, fica mantido o elemento mais importante para a análise empreendida aqui, qual seja, o fato de que as lutas de resistência precisam olhar para além do direito. Não se trata mais de criticar a legitimidade do poder soberano ou de simplesmente afirmar direitos ou consagrar legalmente novas garantias. Sem o empenho na análise dos modos de funcionamento do poder e sem o esforço de reinvenção das estratégias por parte dos movimentos de resistência, fica claro o perigo de empregarmos armas ineficientes para derrotar os inimigos que temos em mira, ou ainda o risco de se errar o alvo. Em suma, mesmo admitindo a presença e a articulação entre os diferentes modos de funcionamento do poder, sem que um necessariamente exclua o outro, assim como a distinção entre normação e normalização, permanece válida a necessidade de superarmos o discurso jurídico do poder para levarmos a cabo uma luta antinormalizadora e evitarmos que essa resistência use armas inúteis ou atire na direção errada.

3 AS LUTAS CONTRA A NORMALIZAÇÃO

Se não é em direção ao velho direito que devemos olhar, se não é da questão da legitimação do poder soberano que se trata, como então deve ser conduzida a luta contra a normalização? Gostaria de direcionar a terceira parte deste texto para esse ponto, apontando especialmente para a questão das lutas anti-identitárias ou contra o "governo da individualização".

No primeiro volume da História da sexualidade: a vontade de saber (1976), Foucault afirma claramente que a guerra não mais se realiza em defesa da soberania, contra inimigos externos, mas sim internamente, em defesa da vida e da raça, segundo uma estratégia não mais jurídica, mas sim biopolítica (Foucault, 1988, p. 129). O biológico reflete-se no político, e os fenômenos próprios à vida caem no campo de controle do saber e de intervenção do poder. Podemos ver aqui uma espécie de "politização da vida", ou seja, um processo no qual nossa vida, tomada individual ou coletivamente, passa a entrar no domínio dos cálculos explícitos, sendo controlada e modificada de maneira contínua e meticulosa.

Embora Foucault fale em uma "fase de regressão do jurídico", ele deixa claro que as leis não deixam de existir, mas se submetem agora às normas, tornando aceitável um poder essencialmente normalizador. Em suma, cito Foucault novamente:

Não quero dizer que a lei se apague ou que as instituições de justiça tendam a desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos, etc.) cujas funções são sobretudo reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida (Foucault, 1988, p. 135).

Diante desse diagnóstico, Foucault afirma que as novas lutas políticas são cada vez menos uma luta por direitos e cada vez mais lutas pela vida. É nesse cenário que o sexo se torna foco de disputa política, tanto no registro de uma disciplina do corpo como também de uma regulação da população. O sexo se torna uma espécie de chave da individualidade, tema de múltiplas intervenções e de campanhas ideológicas de moralização. É esse processo que permite a Foucault explicar por que o sexo foi, no século XIX, esmiuçado em seus mínimos detalhes, perseguido nos sonhos e buscado por trás das mínimas loucuras (Foucault, 1988, p. 136-137).

Sobre esse ponto, é interessante perceber como Foucault relaciona a questão da normalização com o "modo de ser" gay. Em uma entrevista de 1982, publicada aqui no Brasil com o título de Um diálogo sobre os prazeres do sexo, Foucault chega a dizer que acredita que "o que mais perturba quem não é gay é a forma de vida gay, e não os atos sexuais" (Foucault, 2000, p. 39). O temor em relação ao movimento gay teria mais a ver com o medo de que novas formas de constituição de si e de prazeres possam vir a emergir, as quais fugiriam de nossa "normalidade", contrariando aquilo que entendemos normalmente por “família”, naquilo que ela teria de supostamente "natural". Dessa mesma entrevista cito outro trecho revelador nesse sentido: "O que muitas pessoas são incapazes de tolerar é a possibilidade de que os gays sejam capazes de criar tipos de relações não previstas até agora" (Foucault, 2000, p. 40).

Em outro texto desse mesmo ano de 1982, intitulado O sujeito e o poder, Foucault abordou, de uma maneira mais detalhada, a questão das lutas antiautoritárias contemporâneas, destacando algumas de suas características. Em sua leitura, estaríamos diante de lutas transversais (não circunscritas a um país ou a um governo particular), dirigidas de maneira anárquica contra vários "inimigos imediatos" (não mais uma grande luta contra um "inimigo-mor", na esperança de uma revolução libertadora) e que seriam voltadas contra os "efeitos de poder", questionando um "regime de saber" e lutando contra os privilégios do saber. Além disso, e é essa característica que gostaria de destacar no fim deste texto, essas seriam lutas eminentemente anti-identitárias, que girariam em torno da seguinte questão: quem somos nós? Nesse sentido, cito as palavras de Foucault sobre essas novas estratégias de luta e resistência:

São lutas que questionam o estatuto do indivíduo: por um lado afirmam o direito de ser diferente e enfatizam tudo aquilo que torna os indivíduos verdadeiramente individuais. […] Estas lutas não são exatamente nem a favor nem contra o "indivíduo"; mais do que isso, são batalhas contra o "governo da individualização" (Foucault, 1995, p. 234).

Trabalhando com a noção de "governo", entendido como a ordenação do campo da ação possível dos outros, uma espécie de "condução de condutas", Foucault, em seus últimos anos, passa a conceber as lutas contemporâneas contra a normalização em novos termos. Não se trata de descobrir o que somos, mas de recusar o que querem que sejamos. Ou seja, o que está em jogo é uma nova forma de resistência, contra a individualidade que nos foi imposta há séculos (Foucault, 1995, p. 239).

A resistência ganha, assim, uma nova forma, entendida como uma "arte de não ser governado". Isso não significa travar uma luta ingênua contra toda e qualquer forma de governo de nós mesmos, mas sim uma ação de resistência dirigida contra um tipo específico de governo. Trata-se de não ser governado de determinada maneira. Um exercício que Foucault aproximará a partir de 1978, nas leituras que fez de Kant, da Aufklärung e da atitude crítica da Modernidade, à ideia de uma "inservidão voluntária" ou "indocilidade refletida" (Foucault, 1990, p. 38-39). Mais do que uma simples reflexão sobre os limites e uma rejeição daquilo que somos, trata-se de uma atitude crítica positiva, que mostra o caráter contingente e arbitrário daquilo que é apresentado como universal e necessário, ao mesmo tempo em que aponta para as ultrapassagens possíveis: não uma revolução ou uma libertação plena, mas um vir a ser outro, uma "ultrapassagem" (franchissement) (Foucault, 2005b, p. 347). A resistência assume, assim, a forma de um "trabalho sobre nossos limites", uma tarefa árdua e incessante, que Foucault descreve no fim de seu texto intitulado O que são as Luzes, publicado em seu último ano de vida, como "um trabalho paciente que dá forma à impaciência da liberdade" (Foucault, 2005b, p. 351).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: A GUERRA SOCIAL NO BRASIL HOJE

Gostaria de concluir este texto apontando para a importância das palavras e, sobretudo, da atitude de Foucault para os tempos nos quais vivemos. Mais do que uma crise meramente institucional ou política, o que vemos crescer no Brasil é uma guerra cada vez mais explícita em termos de normalização. Há um componente mais propriamente social ou cultural articulado com a motivação política, que reside na postura bélica assumida por parte da sociedade brasileira de enfrentamento daqueles que passaram a ser identificados como "inimigos sociais". A retirada dos "petralhas" do poder pode ser vista, acima de tudo, como uma reação diante de um suposto perigo, uma ameaça difusa que pode ser associada às feministas, aos gays, etc. Em suma, trata-se de uma guerra social, que opôs a "família" e os assim chamados "cidadãos de bem" àqueles que são tomados por desviantes e degenerados. Mais do que uma mera disputa política, trata-se de uma cruzada moral. Acredita-se que a solução do Brasil passa por uma espécie de limpeza, capaz de eliminar toda sujeira e permitir que os "verdadeiros valores" e os "bons costumes" voltem a imperar.

Agindo no domínio da norma, em defesa da vida e da sociedade, vemos constituir-se aquilo que Foucault chamou por vezes de "racismo de Estado", no sentido de uma purificação interna permanente, por meio de uma instituição que funciona como princípio de eliminação, de segregação e de normalização da sociedade. Nesse momento, sirvo-me mais uma vez das palavras de Foucault no Em defesa da sociedade. Embora esse curso tenha sido ministrado no Collège de France em 1976, portanto há mais de 40 anos, é impressionante como se mostra ainda atual. Segundo Foucault: "A temática racista não vai mais parecer ser o instrumento de luta de um grupo social contra um outro, mas vai servir à estratégia global dos conservadorismos sociais" (Foucault, 2005a, p. 73).

Em suma, a sociedade estabelece sua norma, as "pessoas de bem", e age sistematicamente em sua defesa, em geral não no nível das leis, mas dos mecanismos disciplinares e biopolíticos. Assim, investe-se contra os "outros", contra a ameaça representada pelos refugiados ou invasores, pelos pervertidos ou degenerados, pelas feministas, pelos vagabundos, pelos gays, pelos maconheiros, etc. Insere-se nesse contexto a "cura gay", a condenação da "ideologia de gênero" e os projetos do estatuto da família e da escola sem partido, entre outras iniciativas.

Contra tais investidas, é preciso uma estratégia de luta que vá além do discurso jurídico e da tomada do poder estatal. Trata-se de resistir a um poder normalizador, capilarizado em diversas instituições e relações, com múltiplos "inimigos imediatos". Trata-se de resistir a um "governo da individualidade". Trata-se de lutar pela possibilidade de sermos "outros" em relação ao que é tomado por "normal". Trata-se de se voltar contra a utopia fascista da purificação permanente. Em suma, desafiar a norma é lutar pela liberdade. O belo perigo de deixarmos de ser o que somos

REFERENCIAS

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*Doutor e mestre e em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), graduado em Direito e em Filosofia pela UFMG, professor adjunto de Teoria e Filosofia do Direito e do Estado na Faculdade de Direito da UFMG. Foi pesquisador bolsista de pós-doutorado (PNPD/CAPES) no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFMG entre 2014 e 2017. Endereço: Rua Pitangui, 1972, ap. 302 - Sagrada Família, Belo Horizonte-MG, Brasil. CEP: 31030-204.E-mail: marcofilosofia@yahoo.com.br.

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