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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.24 no.1 Belo Horizonte Jan./Apr. 2018

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p324-336 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p324-336

 

Foucault e a luta antimanicomial brasileira: uma intensa presença

 

Foucault and the brazilian anti-asylum struggle: an intense presence

 

Foucault y la lucha antimanicomial brasileña: una intensa presencia

 

 

Ana Marta Lobosque*

 

 


Resumo

No livro intitulado História da loucura na Idade Clássica, Michel Foucault mostra como o nascimento do asilo, assim como o da disciplina psiquiátrica ali constituída, insere-se em toda uma constelação do castigo e da culpa, tal como veio a configurar-se no fim do século XVIII, a partir de certos rearranjos e mutações das configurações de poder. Sustentando que a análise de Foucault se inspira na perspectiva genealógica nietzschiana, a autora recapitula e comenta algumas das principais teses apresentadas por ele nesse livro. A importância da contribuição do autor na origem e no desenvolvimento da luta antimanicomial brasileira é destacada e interrogadas algumas de suas ressonâncias no cenário da saúde mental e da conjuntura político-institucional no Brasil de hoje.

Palavras-chave: Luta antimanicomial. Psiquiatria. Loucura. Culpa. Castigo.


Abstract

In the book, History of madness in the Classical Age, Michel Foucault shows how the birth of the asylum, as well as that of the psychiatric discipline thereto constituted, is embedded in a constellation of punishment and guilt, as it came to be at the end of the 18th century, from certain rearrangements and mutations of power configurations. Arguing that Foucault’s analysis is inspired by the Nietzschean genealogical perspective, the author recapitulates and comments on some of the main theses that he introduces in the book in question. The author highlights the importance of Foucault’s contribution to the origin and development of the Brazilian anti-asylum movement, and questions some of its repercussions in the scenario of mental health and the political-institutional situation in Brazil today.

Keywords: Anti-asylum movement. Psychiatry. Madness. Guilt. Punishment.


Resumen

En el libro titulado Historia de la locura en la época clásica, Michel Foucault muestra cómo el nacimiento del asilo, así como el de la disciplina psiquiátrica allí constituida, se inserta en toda una constelación del castigo y de la culpa, tal como se configuró al final del siglo XVIII, a partir de ciertos reajustes y mutaciones de las configuraciones de poder. Sosteniendo que el análisis de Foucault se inspira en la perspectiva genealógica nietzscheana, la autora recapitula y comenta algunas de las tesis principales que éste presenta en el libro en cuestión. Se destaca la importancia de la contribución del autor en el origen y en el desarrollo de la lucha antimanicomial brasileña, y se indagan algunas de sus resonancias en el escenario de la salud mental y de la coyuntura político-institucional del Brasil de hoy.

Palabras clave: Lucha antimanicomial. Psiquiatría. Locura. Culpa. Castigo.


 

 

1 INTRODUÇÃO

No início da década de 1970, como foi lembrado neste seminário, Foucault esteve no Brasil, inclusive em Belo Horizonte. Nos 45 anos que se passaram desde então, houve uma grande mudança no modelo de atenção à saúde mental do País, para a qual a importância de suas ideias já foi bastante destacada neste evento. Destacou-se bem menos algo que não podemos esquecer: essa mudança, para a qual foi tão valiosa a contribuição de Foucault, esteve estreitamente ligada ao final da ditadura militar, à redemocratização, à consolidação das forças em prol de uma política de emancipação. Ora, nós retomamos Foucault, hoje, num momento de impasse da atuação dessas forças; num momento, portanto, em que devemos inventar novas formas de resistência, novos modos de enfrentamento.

O próprio Foucault, não o apreendíamos exatamente como uma pessoa […] Quando entrava num aposento, era mais como uma mudança de atmosfera, uma espécie de acontecimento, um campo elétrico e magnético […] Isso não exclui a suavidade ou o bemestar […] Aborrecia-o […] provocar esse efeito. Mas toda sua obra também se alimentava disso (Deleuze, 1992, p. 143).

Não encontrei Foucault em carne e osso; conheci esse efeito por meio de seus textos. Não me queixo; já foi intenso o bastante. Tive um convívio tão visceral com a História da Loucura (Foucault, 1978) que o meu exemplar, de tão lido e relido, grifado, anotado, manuseado, literalmente se desintegrou: depois de muitos anos vivendo tão próxima desse livro, tantas vezes dentro dele, tive de jogá-lo fora.

Essa intensidade de efeitos Foucault, de ressonâncias Foucault, portanto, operou em mim e através de mim como já operava em volta de mim. Ao longo de uma intensa militância antimanicomial, aproveitou-me muito a força de seu pensamento. Devo dizer, a propósito, que meu contato com Foucault nunca se deu por uma leitura sistemática, acadêmica, que na época desconhecia e pela qual não me interessava. Mais tarde, sim: levada por Foucault a Nietzsche, convidei-me a fazer esse tipo de leitura a propósito da obra nietzschiana, fazendo meu doutorado em Filosofia. Com Foucault, portanto, um prestigioso autor acadêmico, meu contato foi totalmente informal; foi Nietzsche, que deixou a universidade para uma solitária aventura intelectual, quem me levou para dentro dela.

Foi uma breve passagem. Logo retornei aos serviços de saúde mental onde se exerce o cuidado em liberdade, e como sempre, prossigo na militância em prol desse cuidado. Mais velha, certamente (mais sóbria, talvez?) já não devoro meus livros até acabar com eles, mas sou, como antes, como sempre, uma leitora amorosa de Foucault. Assim, retorno às páginas da História da Loucura, neste primeiro ano de Brasil pós-golpe, quando as questões de Nietzsche e de Foucault sobre a verdade e seus jogos tornam-se tão presentes para mim.

2 AS TESES DA HISTÓRIA DA LOUCURA: UMA SÍNTESE

Partirei de Nietzsche para situar a contribuição de Foucault. "De há muito se acreditava perceber, na utilidade de uma coisa – de um órgão fisiológico, de uma instituição, de um costume social, de uma forma artística – a razão de sua gênese: o olho teria sido feito para ver, a mão, para pegar" (Nietzsche, 1998, p. 66).

A essa crença opõe outra concepção de História: a gênese de uma coisa e a sua utilidade final diferem inteiramente. O desenvolvimento de uma coisa, seja uma forma de vida, seja uma instituição, não é, de forma alguma, o seu progresso em direção a uma meta, mas sim "a sucessão de processos de subjugamentos que nela ocorrem, e as resistências que a cada vez encontram". Algo que chega a existir é sempre reinterpretado para novos fins por um poder que se assenhoreia dele; quando, mais uma vez, outra articulação do poder se impõe, surge uma nova interpretação, na qual o sentido e as finalidades anteriores são obscurecidos (Nietzsche, 1988).

Esse trecho da Genealogia da moral me parece ilustrar com felicidade a história da loucura tal como Foucault a empreende. Nietzsche buscava fazer a história dessa instituição social que é o castigo. Foucault nos mostra que o nascimento do asilo e da disciplina psiquiátrica ali constituída se insere em toda uma constelação do castigo e da culpa, tal como veio a configurar-se no fim do século XVIII, a partir de certos rearranjos e mutações das configurações do poder.1

Foucault procura demonstrar isso inspirado pela proposta genealógica de Nietzsche. Não, o olho não foi feito para ver, o direito não foi feito para fazer reinar a justiça (e o hospital e o saber psiquiátricos não foram feitos para curar). Medicina e loucura não têm um encontro essencial anunciado desde os albores da ciência médica e desenvolvido lenta, mas seguramente pelo seu avanço, até culminar no conhecimento objetivo enfim obtido sobre a loucura com o advento da psiquiatria. As subjugações e os assenhoreamentos destacados por Nietzsche marcam toda a história das relações entre razão e loucura, e o curioso modo de participação que aí teve a Medicina: as diferentes figuras se superpõem, apagamse umas às outras, reconfiguram-se conforme se estabelecem novas correlações de força nos jogos do poder.

Recordemos as ideias apresentadas na História da Loucura. Segundo Foucault, na Renascença ainda falava alto uma experiência trágica da loucura, que se mesclava então às seduções e aos perigos do mundo e do conhecimento. Ora, da Renascença à Idade Clássica, ocorre todo um processo de domesticação, de dominação da loucura, que vai culminar no nascimento do asilo de alienados.

A História da loucura destaca a prática do grande internamento, no século XVII, quando instituições do tipo casas de força, casas de correção, casas de trabalho proliferam velozmente em toda a Europa. Por uma política de controle daqueles que não têm lugar no mundo do trabalho, ao lado dos mendigos, dos libertinos, dos feiticeiros, o louco será conduzido pela polícia ao enclausuramento, cuja perspectiva é correcional, não terapêutica, e do qual a Medicina se encontra inteiramente ausente.

Não é que a Medicina não prossiga, em outros espaços, suas relações já antigas com a loucura. O reconhecimento jurídico da loucura esteve ligado a seu diagnóstico pela Medicina desde o direito romano. A partir do século VII, originados no mundo árabe, já existiam hospitais destinados apenas aos loucos. E então, no século XVII, os médicos vão formular algumas classificações, concepções e terapêuticas da loucura. Contudo (e isto é muito curioso, é uma novidade muito interessante trazida por Foucault), esse trabalho médico é feito inteiramente à parte do mundo do internamento, onde se encontra de fato a maioria dos loucos.

Fora de lá, os médicos inauguram um modo de classificação das doenças que segue o modelo da botânica, nele incluindo os males do espírito. Conceberão essas doenças segundo as especulativas teorias médicas dos humores, das fibras, dos espíritos animais, de Galeno a Descartes: a loucura é uma espécie de movimento irracional posto em ação pela paixão, que afeta igualmente e, ao mesmo tempo, o corpo e a alma. Na mania, por exemplo, os espíritos animais se movimentam com violência, penetrando novas vias do cérebro que não deviam ser percorridas: daí um curso de ideias estranho e gestos agitados. O tratamento, em afinidade com essa concepção, consiste em corrigir o desarranjo desse movimento, de forma devolvê-lo à ordem natural dos movimentos do mundo; para isso servem desde as suaves viagens de barco, onde o balanço regular das ondas ordena o movimento desordenado da loucura para torná-lo conforme às leis da natureza, até as violentas duchas de água fria.

Ora, curiosamente, essas concepções do século XVII não deixaram vestígio algum nas atuais classificações dos transtornos mentais, que se iniciam, como se sabe, a partir de Pinel. O que permanecerá de tudo isso, e permanecerá com grande força, é a prática da internação do louco, mas justificada por outros raciocínios e razões. Como diria Nietzsche, obliterações, reinterpretações na constituição dos saberes, e não o seu progresso linear em direção à verdade.

Esses dois domínios, o institucional (do internamento) e o médico (fora do internamento e alheio a ele), jamais chegam a se tocar. No entanto ambos têm um núcleo comum: baseiam-se em razões morais. No internamento, onde o louco é colocado ao lado de personagens moralmente comprometidos (sodomitas, feiticeiros, filhos desobedientes, etc.), a loucura começa a avizinharse do pecado. Essa aproximação reflete uma reestruturação ética característica da Idade Clássica, em que a luta do bem e do mal se reduplica na oposição razão versus desrazão. Num outro espaço, o da experiência médica, distinto, repito, daquele do internamento, a classificação das formas de loucura procura seguir o critério objetivo da botânica, mas acaba chegando a bizarras categorias, como aquela que inclui 16 variedades de loucura (a loucura ciumenta, a loucura avara, a loucura arrogante, a loucura irascível, e assim por diante), cada uma delas correspondendo a uma falha moral! Nessa perspectiva, a loucura, tanto no mundo do internamento como na abordagem médica, é uma das figuras da desrazão: é erro, cegueira, obnubilação da relação do homem com a verdade do mundo.

No entanto, no seio de mutações importantes do poder político e das relações econômicas (a industrialização, a ascensão da burguesia, a reestruturação política e jurídica da Revolução Francesa), certas reconfigurações e rearranjos exteriores reunirão esses dois domínios até então afastados: o da reclusão correcional da loucura num espaço institucional e o da experiência médica da loucura. Não atendendo mais às novas demandas sociais, a estrutura do grande internamento se desfaz, deixa de existir. Entretanto, entre todos os personagens outrora mantidos naquele espaço, os loucos (e apenas os loucos) permanecerão. Mais um obscurecimento, portanto; mais um apagamento da finalidade anterior, mais uma reinterpretação (que ocorre, ainda, inteiramente fora do campo da ciência médica).

Ora, essa nova reconfiguração (loucos, e apenas loucos permanecem internados) requer também uma nova concepção da loucura. Sua cegueira agora é vista como o efeito psicológico de uma falha moral; não consiste apenas em um erro na relação do homem com a verdade do mundo, mas erro na relação com a sua própria verdade. Eis algo de novo que surge: psicologização, interiorização.

A Medicina psiquiátrica, no século XIX irá vangloriar-se de ter distinguido os loucos dos seus viciosos companheiros do grande internamento, afirmando a inocência dos primeiros, sua condição de doentes, sua necessidade de tratamento e não de punição. No entanto é apenas depois que os loucos já estão sozinhos nas instituições de enclausuramento é que ela vai se introduzir nesse espaço. Só então nasce do asilo (e a Medicina, enfim, apropria-se da loucura).

O médico não só passa a determinar quem deve ou não se internar, quem é ou não louco, mas se torna o grande gestor desse mundo fechado. Curiosamente, no entanto, é chamado ali não porque detenha um conhecimento médico das doenças do espírito, mas sim pelo prestígio e autoridade de sua figura. Pois, longe de questionar a antiga vizinhança entre loucura e falta moral, ele parte dela: a loucura, sendo castigo natural por um mal moral, como tal deverá ser tratada. Do ponto de vista psicológico, o louco já perdeu sua liberdade, por ter enlouquecido; ora, a internação se impõe, porquanto, quando a razão é atingida, a liberdade pode e deve ser coagida. O internamento do louco será legítimo uma vez que traduz juridicamente essa perda já ocorrida da liberdade espiritual, e, junto com ela, da consciência moral. E, mais do que legítima, a internação torna-se condição para o tratamento, é tida como terapêutica ela própria. Manter o louco no asilo à sua revelia será a forma de devolver-lhe a razão, e (junto com ela, apenas junto com ela!) a liberdade.

Curar o louco consiste, pois, em reconstruir a sua consciência moral; o que se faz por sua inserção em todo um sistema de punições e recompensas. No asilo, certas antigas curas outrora utilizadas fora do internamento são mantidas, mas agora com outra finalidade: a ducha de água fria, por exemplo, que antes sustaria o movimento desordenado da mente e do corpo, agora é usada com o objetivo explícito de punir a mente através do corpo. O asilo se torna um microcosmo judiciário sob as ordens do médico: sempre que o doente fizer algo errado, será advertido e castigado, e a punição deverá ser repetida até que o louco interiorize a culpa. Quando o fizer, quando sentir arrependimento e remorso, estará curado […] e novamente livre. Mais uma vez, psicologização, interiorização.

Paradoxalmente, observa Foucault, a prática médica asilar atua dessa forma, partindo claramente da consideração moral da loucura, justo no momento em que o conhecimento médico começa a buscar as regras positivistas de cientificidade. No século seguinte, o XIX, o alienista, confuso com sua própria atuação, passa a procurar obstinadamente as causas orgânicas, hereditárias, etc., da loucura, numa perspectiva que o aproxime desse novo modelo. Mas a psiquiatria tentará movimentar-se nessa direção sem abrir mão da autoridade e da imposição de valores morais que existiam no mundo antes dela, do qual foi herdeira, e através dos quais veio a tornar-se o saber dominante sobre a loucura.

Novas subjugações surgirão, novas interpretações, que procurarão apagar essas marcas que insistem, sem que o conhecimento psiquiátrico da loucura chegue a romper (como se espera que uma ciência o faça) com as ordenações morais. A própria psicanálise seria mais uma figura dessa nova forma de normatização inaugurada com o nascimento do asilo.

3 ALGUNS COMENTÁRIOS

A História da loucura é um livro difícil de ler. Não somente porque Foucault seja um autor difícil (sim, ele o é, como todo bom autor, aliás). Mas o empreendimento que busca realizar ali é que é difícil: audacioso, ambicioso demais e, sob certos aspectos, chega a parecer quase impossível.

Na História da loucura pode encontrar-se, a meu ver, uma aplicação concreta da atividade genealógica inaugurada por Nietzsche: a história dos saberes, dos conhecimentos, das instituições, narrada não na perspectiva teleológica do progresso, de um lento caminhar rumo a uma verdade imóvel que ali aguarda desde sempre, mas num embate, num conflito, onde há vitórias e derrotas das forças envolvidas, que reestruturam os saberes, obliteram seus restos, introduzem outras coisas, fazem prevalecer a cada momento essas e não aquelas interpretações. Mais tarde, num momento posterior de sua obra, na década de 1970, Foucault avançará na formulação daquilo que busca em suas pesquisas: não uma história da verdade interna à ciência, na qual a verdade se corrige segundo seus próprios princípios de regulação; e sim uma história em que, nas práticas pedagógicas, sanitárias, psiquiátricas, jurídicas, etc., certas regras dos jogos da verdade são definidas. O conhecimento é o produto histórico de condições que não são da ordem do conhecimento: é sempre polêmico, estratégico, efeito de lutas e batalhas.

Começar pela psiquiatria e pela loucura para experimentar sua concepção histórica, genealógica, do conhecimento, é uma estratégia de Foucault. Até mesmo a Medicina, dirá, um saber de estrutura bastante sólida, está enraizada profundamente nas instituições sociais. Contudo esse enraizamento pode ser mostrado muito mais facilmente no caso de uma ciência "duvidosa" como a psiquiatria: por isso optou por começar com esse tema o seu empreendimento (Foucault, 1979).

E, ainda assim, o problema não é simples. Foucault, podemos supor, prevê os muitos riscos do ponto de vista da recepção de sua obra: sabe que sua tese será muito malvista pelos saberes psi, que vão alegar, como de fato aconteceu, que ele não está autorizado a falar sobre loucura porque não sabe nada sobre clínica, psicopatologia, não entende de loucos, etc. No entanto, o que ele se propõe é justamente fazer uma história da loucura não sob o ponto de vista do conhecimento psi, mas de uma perspectiva realmente exterior. Quer mostrar que o conhecimento, no caso o conhecimento clínico, é o produto histórico de condições que lhe são exteriores. E essa virada radical é a grande novidade da História da loucura. Experimentem olhar por essa ótica, considerem essa outra perspectiva, olhem coisas antes impensadas que se pode pensar a partir daí. Isso nos interessa, muito: alguém "de fora" tem o que dizer, tem o que indagar, o que pesquisar a respeito da loucura. É uma alteridade atrevida, desconhecida para os psiquiatras e, particularmente, pelos psiquiatras da universidade. Foucault sabe que tudo isso vai provocar um certo escândalo; e sabe também que a instituição universitária (que é o lugar onde ele atua, de cujo respaldo necessita) não gosta de escândalos e prefere manter as disputas no âmbito inócuo de sua própria interioridade. Ora, ele quer também provocar, por outro lado, a instituição universitária ela mesma, as suas regras de validação de verdade, como o fará claramente depois, em suas críticas às teorias envolventes e globais (Foucault, 1999b). Mas não pode fazê-lo como professor da universidade sem conhecer muito bem essas regras e provar que as conhece. Portanto não é coisa pouca o desafio que ele, então um jovem filósofo que começa a desenvolver seu pensamento, terá de enfrentar.

Embora o recorte feito por Foucault na História da loucura seja curto (abrange os séculos XVII e XVIII), o que o livro nos leva a percorrer é uma espécie de selva barroca onde há tantas e tão heterogêneas paisagens: os quadros de Bosch e a nau dos loucos, os humanistas, os filósofos, os médicos, os juristas; as classificações e as terapêuticas; os minuciosos arquivos do grande internamento, e aqueles da Revolução Francesa; e tantas outras. Assim, ao mesmo tempo em que exibe uma prodigiosa erudição, ele também tem de lidar com as dificuldades de articular todos esses planos, de densidades desiguais, de importância desigual, a respeito dos quais, naturalmente, o seu conhecimento é desigual também. Isso resulta num texto onde passagens magníficas se alternam com trechos obscuros, eventualmente confusos, cuja travessia não é fácil para o leitor.

Essa travessia será impossível, não somente para o leitor comum, mas também para o erudito, se Foucault, apesar de tudo, não nos conduzir segundo o fio a que se propôs; se não o recuperar depois de parecer tê-lo perdido, se não voltara um caminho de direção precisa após ter se enveredado por inúmeras estradas laterais. E ele consegue: consegue encantar, marcar o seu leitor; e consegue também êxito na questão, digamos, acadêmica, do livro; cuja composição, nada ortodoxa, é brilhante e rigorosa o bastante para impor-se aos cânones institucionais, eventualmente driblá-los, e até mesmo subvertê-los, se for o caso. Nesse caminho, ao longo dos anos, Foucault, sustentando sua posição como um autor acadêmico reconhecido, serve-se dessa posição, audaciosamente, para criticar duramente aquelas teorias envolventes e globais que contam com o apoio das instâncias de validação, regulação e difusão de verdades (dentre as quais a própria instituição universitária).

Portanto, desde a História da loucura, e em toda a sua obra, Foucault exerce uma poderosa política do pensamento; pensa sempre politicamente, sempre verificando as relações de força em causa, sempre identificando aquilo a que deseja opor-se, aquilo que pretende transformar; sempre ensaiando, criando estratégias de resistência ao poder capilarizado, difuso, implacável - esse poder que não nos proíbe de pensar; longe disso, pelo contrário, aliás! - mas nos prescreve pensar de determinadas maneiras, perceber apenas determinados aspectos das coisas, negar certas evidências, inventar outras que as mascarem.

Sim, eis o que aprendemos com Foucault, esse exímio jogador dos jogos de produção de verdade que quebra a banca e vira a partida: a não negar o que vimos em Barbacena e em todos os hospícios, quer se chamem asilos, hospitais psiquiátricos ou comunidades terapêuticas; o que vemos nas favelas, nos guetos, nas guerras; o que vemos de grotesco e intolerável: a miséria, a covardia, a brutalidade. No nosso caso, nós, da luta antimanicomial, pudemos compreender que a violência de uma Barbacena na década de 1970 não é um desvirtuamento do saber psiquiátrico, não é um desvio de rota no seu caminho justo rumo ao verdadeiro; é esse saber mesmo levado às suas últimas consequências, é a prova do inexorável autoritarismo de que se investiu a psiquiatria a partir dessa origem moral que ela nega, mas a autoriza a prender e a calar, a determinar o que foi, o que é e o que deve ser.

4 E HOJE?

Muito brevemente, apontarei algumas ressonâncias muito atuais do pensamento de Foucault e algumas frentes em que é preciso desenvolvê-las.

No campo da saúde mental, parece-me fundamental não perdermos de vista a questão que Foucault foi o primeiro a colocar: o enclausuramento dos loucos mantém-se como o único aspecto inalterável das políticas sociais para a loucura, desde a Idade Clássica, nas instituições do grande internamento, passando ao asilo de alienados criado no final do século XVIII, até os hospitais psiquiátricos contemporâneos e as novas formas que assumem. A psiquiatria parece não abrir mão desse dispositivo de controle que consiste em manter em regime fechado aqueles que sofrem de problemas mentais: a reabertura de hospitais psiquiátricos é a principal reivindicação da Associação Brasileira de Psiquiatria, cuja posição é contrária a todas as conquistas da Reforma Psiquiátrica. Numa outra frente, sob certo aspecto aliada dessa primeira, será a religião, e não a ciência, a promover o enclausuramento das pessoas que usam álcool e outras drogas nas chamadas comunidades terapêuticas. Ora, a prática do cuidado em liberdade ao longo das últimas décadas (especialmente em Belo Horizonte, onde se instaurou uma forte e consistente rede de atenção psicossocial) mostra-nos que nada justifica a existência dessas estruturas carcerárias, disfarçadas com roupagem médica e, ou, religiosa; pelo contrário, sua ação se revela sempre nefasta, nela se mostram sempre os vestígios da autoridade, da tutela, enfim da constelação culpa-castigo que marca toda a história da loucura desde o século XVII. Portanto o mito do "bom hospital psiquiátrico" ou da "comunidade terapêutica exemplar" tem de ser combatido. Necessitam ser combatidas, igualmente, todas as formas e instâncias de controle e normalização das pessoas, desde as apresentações de enfermos até a prescrição de eletrochoques, entre outras; práticas dessa índole continuam impedindo que as pessoas em sofrimento mental façam uso da própria voz e tomem as suas próprias decisões nas questões que lhes dizem respeito.

É importante, também, manter o diálogo entre o aporte foucaultiano e alguns saberes como a psicofarmacologia, a psicopatologia, a psicanálise. São saberes clínicos, dos quais necessitamos para o cuidado em liberdade. No entanto, para que sejam propícios a esse cuidado, há que relativizá-los, sempre; há que ter sempre em vista a historicidade que os constitui, sua genealogia, as forças que os organizam, os interesses aos quais servem. Para isso, Foucault continua sendo um imprescindível interlocutor.

No entanto a importância do pensamento de Foucault não se restringe, é claro, à nossa ação como trabalhadores do cuidado em saúde mental. Como pode esse pensamento nos ajudar a abordar certas novas figuras dos jogos de produção/ocultamento de verdades que Foucault não conheceu?

Essas novas figuras e formas guardam relação, certamente, com as mutações tecnológicas representadas pela informática. Veja-se as redes sociais, com sua prodigiosa capacidade de divulgar rapidamente tanto as notícias verdadeiras como as falsas: a eleição de um Trump teria sido possível sem elas? Como lidar com isso? Um controle autoritário da divulgação de notícias seria apenas um retorno a formas de regulamentação do verdadeiro que não são desejáveis. Um desafio importante encontra-se aí.

Mas talvez nos caiba pensar em formas mais próximas dessas novas figuras dos jogos de produção da verdade a propósito do que a se passa conosco no Brasil. Para efetuar o impeachment que afastou uma presidente eleita sob o frágil pretexto das pedaladas fiscais, foi preciso impingir à opinião pública a mais inverossímil das versões: a extraordinária corrupção de um determinado partido do espectro da esquerda, apresentada praticamente como uma exclusividade sua, nunca vista na história brasileira, combatida pela midiática Operação Lava-Jato. Esse conto da carochinha já sofreu o mais cabal desmentido: estão no poder ou dele se beneficiam todos aqueles que ganharam com o afastamento da presidente, todos os Temers e Aécios, todos os Sarneys e Geddels; hoje fartamente denunciados como participantes habituais de propinas e toda espécie de ganhos ilícitos, todas as formas de corrupção, às voltas com malas e esconderijos de dinheiro, surpreendidos em gravações de conversas obscenas, etc. Exaspera-nos constatar que esses desmentidos claros e cabais não produzam todavia nenhum efeito. As pessoas que clamaram pela deposição da presidente continuam acreditando na versão que propiciou o golpe? Ou nunca ninguém acreditou realmente nela? No momento, não há manifestantes nas ruas, a não ser aqueles que dizem ver um incentivo à pedofilia na presença de nus em exposições de arte, sob a égide da religião e da moral; e ninguém parece reparar na recente portaria que torna ainda mais cega que de costume a fiscalização da velha prática brasileira do trabalho escravo.

Ninguém acredita mais em nada? Mas, ao mesmo tempo, todo mundo acredita em qualquer coisa: a incredulidade cansada tem como seu reverso a credulidade estúpida. Muda-se de crença com facilidade, como se nada nos comprometesse com aquilo em que acreditamos na véspera ou no mês passado. Os powerpoints dos Dardagnolls se fazem passar como procedimentos de prova do verdadeiro; o mais recente ministro do Supremo Tribunal Federal sofreu uma séria acusação de plágio; o instituto de direito público de um outro ministro recebia doações do grupo J&F.

Desmoralizou-se de vez o velho sonho ocidental apontado por Foucault; aquele que, nascido na República de Platão, visa a dar poder ao discurso da verdade numa cidade justa (Foucault, 2010)? O filósofo que nos ajudou a despertar desse sonho há algumas décadas, o que nos diria hoje, quando estamos concretamente às voltas com estes seus estranhos desdobramentos?

Foucault não nos dirá mais nada. Entretanto, para além desta ou daquela ideia que nos trouxe, aprendemos com ele um novo estilo, um novo jeito de pensar; esse pensamento corajoso e astuto, esse pensamento de gente que guerreia e inventa a cada momento novas formas de resistência, novas estratégias de enfrentamento.

Por isso prosseguimos, com Foucault, e ele continua conosco na luta antimanicomial. Nas passeatas da Escola de Samba Liberdade Ainda que Tam- Tam, comemorando o 18 de maio, lá está sua presença intensa e inquieta, lá se ergue sua bela cabeça altiva, lá ressoa seu poderoso megafone vindo de outras lutas e ruas; lá corremos juntos os mesmos e belos perigos.

REFERÊNCIAS

Deleuze, G. (1992). Conversações. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Foucault, M. (1978). História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

Foucault, M. (1999a). A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau.         [ Links ]

Foucault, M. (1999b). Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Foucault, M. (2010). Os anormais. São Paulo: WMF Martins Fontes.         [ Links ]

Nietzsche, F. (1998). Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

*Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), militante do Movimento da Luta Antimanicomial, psiquiatra. Endereço: Avenida do Contorno, 2250, ap. 1501 - Bairro Floresta, Belo Horizonte-MG, Brasil. CEP: 30110-017.E-mail: anamarta.lo@oi.com.br.
1 A propósito da inspiração nietzschiana, Foucault (1999a) dirá, em A verdade e as formas jurídicas: "[…] a obra de Nietzsche […] me parece ser, entre os modelos de que podemos lançar mão para as pesquisas que proponho, o melhor, o mais eficaz e o mais atual" (p. 13).

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