SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24 número1Foucault e a luta antimanicomial brasileira: uma intensa presençaA vacinação do HPV e o sintoma: aproximações entre Foucault e a psicanálise índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.24 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2018

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p337-342 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2018v24n1p337-342

 

Na companhia de Foucault

 

With Foucault

 

Con Foucault

 

 

José de Anchieta Corrêa*

 

 

Em maio de 1973, Michel Foucault veio, pela primeira vez, a Belo Horizonte. Seus primeiros compromisso e encontro de trabalho ocorreram no Hospital Espírita André Luiz, onde uma multidão o esperava, ocupando todos os espaços dos jardins e da sala onde estava previsto que pronunciaria uma conferência versando sobre temas contidos em seu livro A história da loucura.

Sala cheia, pessoas assentadas no chão e nas janelas, um enorme e inquieto burburinho. Na entrada, jornalistas o interpelavam, chamando-o de "Mikel" Foucault, na suposição de tratar-se de um intelectual americano, segundo informação veiculada na imprensa. Foucault, impaciente, repetia a todos os repórteres, que pouco ou nada entendiam da língua francesa, “pas de micro”, "pas de conférence de presse", concluindo "Aqui estou para um seminário de trabalho".

Toda essa efervescente e tumultuada recepção, em grande parte, era devida tanto às ressonâncias do próprio tema do seminário "a loucura" quanto ao momento vivido pela sociedade brasileira, subjugada no mais absoluto império da desrazão, imposto pelo arbítrio da ditadura militar. O hospital psiquiátrico, lugar da ocorrência, condensava e deslocava, como em um sonho, imaginação e realidade. A simples possibilidade de se reunirem grupos para discutir ideias, naquelas circunstâncias, era algo inusitado, suspeito e incompatível com a ordem vigente. Mais ainda, reunir-se em torno de um pensador revolucionário era um acontecimento extraordinário.

Curiosidade, alegria, ensaios de rebeldia, traduzidos em tímidos excessos de comportamento em presença de tal ilustre pessoa, emprestavam colorido e davam corpo àquela cena. Foucault, ainda sem saber a que se ater em semelhante situação, visivelmente contrariado, mãos cobrindo a cabeça, gesto que lhe era peculiar, chegou a pedir algo que lhe aumentasse as energias (um remontant), lhe desse forças suplementares diante do imprevisto da situação. Concepções preconceituosas poderiam atribuir semelhante comportamento a uma personalidade pouco equilibrada ou a um homem de modos pouco educados. Tal como a ele se referiria mais tarde uma senhora da sociedade mineira, que lhe oferecera uma recepção social, onde preferiu conversar com os companheiros de trabalho a dissolver-se na frivolidade das conversações de salão e quando, sem mais demoras, deixou apressadamente o recinto, após a chegada de seu amigo particular vindo de viagem. Comportamento, considerado deselegante pela sociedade mineira ali presente, seria devidamente registrado e publicado pelo cronista social do jornal "Estado de Minas".

Deter-se em semelhantes juízos difamatórios acerca do comportamento social de Michel Foucault era perder a oportunidade de conhecer um mestre do pensamento e de vida, um homem em constante construção de sua verdade, sem hipócritas divisões entre o pensar moral e o agir ético. Seu biógrafo Didier Eribon relata, três anos antes de sua morte, a seguinte afirmação de Foucault: "Toda vez que eu tentei fazer um trabalho teórico foi sempre a partir de elementos de minha própria experiência, sempre em relação aos processos que eu via desenvolver ao redor de mim; é porque eu acreditava aí reconhecer algum fragmento autobiográfico".

Na recepção de trabalho no hospital bem como na recepção social, estava presente um homem, um intelectual que, com coragem, autonomia criativa, muito trabalho, entre dores e alegrias, construía a verdade de seu ser e de seu dizer.

Voltemos à recepção no Hospital Psiquiátrico André Luiz. Lá também, o professor Célio Garcia e eu o acompanhávamos. Passados alguns momentos, postura recomposta, senhor de si, com seu penetrante olhar inquisidor, Foucault se dirigiu ao auditório, recusou-se a assumir o lugar que lhe fora destinado à mesa diretora dos trabalhos. Foi sentar-se como muitos outros no chão do recinto. Em vez de proferir uma conferência, convidou a todos a formular perguntas ou a comunicar suas experiências, dado que muitos que ali estavam eram terapeutas, gente que, em seu dia a dia, em seu trabalho, deparava-se com a experiência da loucura pelos relatos e queixas dos portadores de sofrimento mental.

Surgiram as primeiras perguntas, todas versando sobre algo tratado em seu texto A história da loucura. Foucault replicou, começando por avançar um “não”, menos de desagrado pelo teor da questão, mas efeito de uma estratégia, um dispositivo para colocar em marcha a produção do conhecimento, o trabalho que aqui viera desenvolver. Não queria discorrer acerca do que já se encontrava escrito em seu livro. Melhor seria, em outro momento, ocupar-se de sua leitura. Queria, como propusera, escutar, conhecer e pôr na roda as experiências dos presentes: psiquiatras, psicólogos, professores, universitários e os demais que ali foram ávidos de conhecimento e movidos pela curiosidade.

Seguiu-se um silêncio. Depois apareceram relatos-pergunta meio tímidos. As respostas e os comentários de Foucault eram curtos, cortantes, deslocando a perspectiva colocada pela questão, denunciando modos de pensar que lhe pareciam equivocados, apontando sempre para outros modos de agir, em busca de outras práticas na leitura e no cuidado com a loucura. Sobre a situação política, em público, como visitante estrangeiro, somente indiretamente abriu caminho para a reflexão. Todavia apenas a presença daquele intrigante e instigador homem de ciência e mestre de vida e pensamento, portador de um discurso literário, crítico, sem censura, já contribuía para o apressamento da marcha a favor das mudanças políticas que necessariamente haveriam, cedo ou tarde, de acontecer em nosso País.

Em outro compromisso de trabalho, Foucault foi à Universidade, ou melhor, à Fafich da rua Carangola. Lá encontrou um ambiente onde filósofos, ao lado do culto ao ensino do legado grego e medieval, um significativo grupo cultivava o idealismo e tomava conhecimento de Hegel, Husserl, Heidegger, e onde já se ouvia falar de Merleau-Ponty. Na plateia, além dos professores do Departamento de Filosofia, notava-se a presença de professores dos Departamentos de Ciências Políticas, Sociologia, História e Psicologia. Neste último, uma inconciliável batalha era travada entre behavioristas e adeptos da Psicologia Social e, ou, psicanalistas freudo-lacanianos. Todavia o que se ouviria era um "outro discurso", travar-se-ia conhecimento com uma outra prática na produção do saber. Num primeiro lance, aquele discurso soava como a destruição de antigos caminhos: não mais a busca das diversas formas do sentido das diferentes manifestações do ser e dos modos de perceber e comportar, mas a "paixão do conceito" e daquilo que passava a ser denominado o "sistema", isto é, "um conjunto de relações que se mantém, se transformam, independente das coisas que essas relações religam".

A eloquência da fala estava longe de ser animada por um desgastado humanismo abstrato e mentiroso. Ao modo de Sade e Nietzsche, o que se ouvia parecia mais falar “mal dos homens”. A ideia de homem, como “um rosto inscrito na areia da praia”, parecia ali se desfazer. Contudo, por essa via, uma verdadeira paixão pela vida, pela produção da verdade era o ponto forte da lição.

Enganosamente, para muitos, tratava-se, naquela época, apenas de uma nova moda (o discurso estruturalista), discurso em que escandalosamente se desfazia não somente da noção de sujeito e, em consequência, da noção de "autor". Certo, com rigor, denunciavam-se os enganos da fenomenologia em voga, sobretudo aquela animada por um idealismo preso, encerrado no dualismo do exercício da consciência, ocupada indefinidamente na apreensão do pensável e sua conversão no pensado. Tal crítica desnorteava os fenomenólogos, que se punham em atitude de defesa ou reserva.

Eu, que, naquele tempo, em minhas aulas, ocupava-me de transmitir os ensinamentos de Merleau-Ponty, nomeadamente fenomenólogo, estava diante do auditório emprestando minha voz, por ser um dos tradutores da fala de Foucault. Sentia-me, então, em particular, questionado. Tranquilizava-me relembrar que Merleau-Ponty, já em seus primeiros textos, afastava-se dos caminhos pavimentados, pelo idealismo, afirmando que se falava de "essências era para colocá-las na existência", e assim fazendo, preparava seu fecundo encontro com Freud, Marx e Nietzsche.

Mas diante de meus alunos, um mal-estar se formava. Podia-se notar a presença de um olhar ou uma interrogação irônica, vendo-me, professor da disciplina fenomenologia, repetir aquelas agudas críticas do conferencista. Foi então que, em particular, perguntei a Foucault o que pensava Merleau-Ponty de quem fora aluno. Sua resposta veio concisa e redonda: "Merleau-Ponty é um poço do qual tiro muito de minhas águas". Somente tempos depois compreendi a grandeza desse testemunho e dessa lição do mestre de vida e pensamento que era, foi e permanece sendo Foucault. Ele não se esclerosava, como muitos, reduzindose ou encerrando-se na postura de um especialista, apenas a um instrumento da razão, bebendo apenas de uma fonte do saber. Ele perseguia o trabalho de continuar a desbravar os caminhos da razão, tomando os antigos mestres na justa posição de depositários de uma tradição, de um legado, não para ser conservado, mas para ser consumido. Sua negação abria-se em novas perguntas capazes de conversão aos desafios dos novos tempos e novos espaços.

Malditos os filósofos que, ao se tornarem especialistas em determinada corrente ou autor, congelam a indagação filosófica, essa pergunta que jamais se cala, convertendo-se nos maiores traidores da aventura da razão humana. Muitos se prestam grande favor ao estudante iniciante, acabam contribuindo para converter a força de um modo de pensar em uma vulgata danosa e estéril. Mas Foucault, como ele bem o disse, assumindo a cadeira que pertencera a Jean Hyppolite no Collège de France, aprendera de seu professor e predecessor, um dos maiores especialistas em Hegel, que mesmo o sistema do mestre de Yena devia ser, no fim de sua longa e penosa aprendizagem, ocasião propícia para ser tomado como "lugar de uma experiência, de um enfrentamento em que não se tinha nunca a certeza de que a filosofia sairia vitoriosa". Hypollite não se servia do sistema hegeliano como de um universo tranquilizador; via, ali, o risco extremo assumido pela filosofia. “Para ele, a filosofia era um horizonte infinito, uma tarefa sem término" […] condenada sempre a recomeçar. Um ir e vir, um voltar e se afastar novamente de seu ponto de origem, possibilitando ao discípulo ser "levado bem além de todo começo possível". Esse aprendizado marcaria o caminho de Michel Foucault e faria parte de seu fecundo legado, como ele mesmo declararia em seu discurso de posse como sucessor do mestre Hypollite.

Voltemos à presença de Michel Foucault em Belo Horizonte. Relembremos também sua ida ao Hospital Psiquiátrico Santa Clara, onde fora convidado para pronunciar uma conferência. Um dos diretores do Hospital teve a imprudente ideia de convidar Foucault para conhecer o hospital e suas diversas enfermarias. Dessa visita, Foucault voltou visivelmente transtornado com a visão de pacientes trancados, dopados, imobilizados em camisa de força. Tendo o próprio corpo violentado pelo insulto daquela visão, Foucault se recusou a falar. Todos nós, o adido cultural da França ali presente, Célio Garcia e eu insistíamos que ele falasse, denunciasse o intolerável. Em vão. Convidados para compor a mesa, o professor Célio Garcia, o médico psiquiatra César Rodrigues Campos, tão querido e já falecido, e eu, professor da UFMG, lá ficamos um bom tempo, em compasso de espera, falando da importância da obra de Foucault e da importância de sua visita, até que Foucault se decidisse vir se juntar à mesa e pronunciar seu discurso. Passado um bom tempo, Foucault se refez e, de improviso, pronunciou uma das mais belas e comoventes leituras acerca desse "outro espaço", dessa "outra fala", a loucura. Nela, a meu ver, se antecipava muito do que depois, em 1964, seria publicado em "A loucura, a ausência da obra". Era, então, o mesmo mestre que não separava sensibilidade e razão, que filosofava não apenas nos limites da mente, imerso no misterioso universo do corpo-vivo à escuta das vibrações da carne.

Se julguei bom relatar esses fatos, relembrando a primeira visita de Foucault a Belo Horizonte, é porque eles testemunham, modesta, mas fortemente, a grandeza particular do mestre do pensamento e da ação, do homem marcado por um espaço-tempo singular que foi Foucault. Um homem à escuta da história, atento a práticas e valores, aos preconceitos e injustiças sociais do caminho trilhado pela história das sociedades humanas. Um homem liberto da obsessão de se apoiar em um centro dado, desapegado da necessidade de uma segurança fruto de algo sancionado ou preso a uma fixidez enganosa. Sabedor de que se há sentido é porque nós o somos. E sendo história e liberdade, somos sempre possibilidade de existir e construir um outro lugar, um outro tempo e uma outra cena. Tal como nos relembra a palavra de René Char escrita na contracapa de um de seus últimos escritos publicados em vida, O uso dos prazeres, "A história dos homens é a longa sucessão de sinônimos de um mesmo vocábulo. Instalar aí a contradição é um dever". Nada, pois, de incoerência de Foucault no caminho que vai de As palavras e as coisas aos temas de O cuidado de si, na História da sexualidade. Nenhuma surpresa nos cortes no caminho entre a "estrutura", a morte do sujeito, e o retorno ao "cuidado de si". Trata-se do testemunho da inteireza de um homem que trabalhava construindo seu saber, atravessado por inteiro, pela experiência e pelas vibrações de sua humanidade, a escuta e engajado nas experiências, práticas e valores sociais da sociedade de seu tempo. Mais que relembrar Foucault é afirmar o desmentido mais cabal de sua morte, como apagamento de um acontecimento, é aplaudir a reflexão e retomada dos temas de sua obra, testemunhando que ela continuará sempre dando a pensar. Retomada, não a partir de um começo, uma datação no livro dos vivos, mas envolvida e alimentada pelos seus ditos e escritos, e, através deles, levados bem além na descoberta e invenção de outros topos, de outros horizontes.

 

 

Conferência proferida no dia 20 de outubro de 2017. Mesa Desafiando a norma.<

*Doutor em Filosofia pela Universidade de Louvain, Bélgica. Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) de 1974 a 1976 e de 1980 a 1982, pró-reitor de Pós-Graduação da UFMG de 1985 a 1986. Professor titular de Ética Médica da Faculdade de Ciências Médicas. Professor emérito das Faculdades de Ciências Médicas de Minas Gerais, 2005. Escritor e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).E-mail: anchietabh@ terra.com.br.

Creative Commons License