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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.24 no.3 Belo Horizonte set./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2018v24n3p686-704 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2018v24n3p686-704

 

Dominar, submeter-se, libertar-se: Jessica Benjamin e os laços de amor

 

Domination, submission, freedom: the bonds of love by Jessica Benjamin

 

Dominar, someterse, liberarse: Jessica Benjamin y los vínculos de amor

 

 

Elisa Maria de Ulhoa Cintra*

 

 


Resumo

Inspirando-se no livro The bonds of love: psychoanalysis, feminism, and the problem of domination, de Jessica Benjamin, este trabalho traz uma análise dos mecanismos de domínio e submissão nos relacionamentos sociais: como se formam e como operam desde os primeiros laços de amor, na relação mãe-filho. A autora discute a necessidade de reconhecimento narcísico, de um lado, e, do outro lado, da necessidade de se autoafirmar e de se libertar da dependência de ser constantemente aprovado pelo olhar alheio. Trata-se de polos opostos que precisam equilibrar-se para não dar origem a relações de domínio e submissão. Um dos instrumentos teóricos básicos da autora é a noção de intersubjetividade, para designar a capacidade e a disponibilidade de uma pessoa para as relações sociais.

Palavras-chave: Psicanálise. Reconhecimento. Jessica Benjamin.Dominação. Submissão.


Abstract

This article is a reflection on the problem of domination and submission in relationships: how it may appear and develop in the first love bond between mother and infant. It was inspired by Jessica Benjamin and her book The Bonds of Love: Psychoanalysis, Feminism, and the Problem of Domination. The author writes about the paradox between two different needs: the need for recognition on one hand, and on the other hand, the need for self-affirmation and the wish to become free from the dependency on the other’s approval. The two needs are opposite poles that have to be balanced so that the problem of domination and submission does not become predominant. One of the author’s basic theoretical instrument is the concept of intersubjectivity, in order to designate the capacity and the availability of a person for social relationships.

Keywords: Psychoanalysis. Recognition. Jessica Benjamin. Domination.Submission.


Resumen

Este trabajo es una reflexión sobre los mecanismos de dominio y sumisión: cómo se forman y operan desde los primeros vínculos de amor, en la relación entre madre e hijo. Y se basó en el libro de Jessica Benjamin The Bonds of Love: Psychoanalysis, Feminism, and the Problem of Domination. La autora hace un análisis de la necesidad de reconocimiento narcisista, por un lado, y por otro, de autoafirmación y del deseo de liberarse de la dependencia de ser contantemente aprobado por la mirada del otro. Las dos necesidades son polos opuestos que necesitan ser equilibrados para que no se originen relaciones de dominio y subyugación. Uno de los instrumentos teóricos básicos de la autora es la noción de intersubjetividad, para designar la capacidad y la disponibilidad de una persona para las relaciones sociales.

Palabras clave: Psicoanálisis. Reconocimiento. Jessica Benjamin. Dominación. Sumisión.

1 DOMINAR, SUBMETER-SE, LIBERTAR-SE: JESSICA BENJAMIN E OS LAÇOS DE AMOR

O homem não é uma criatura branda, ávida de amor e que, no máximo, pode se defender quando atacado, mas sim que ele deve incluir em seus dotes instintuais também um forte quinhão de agressividade. Em consequência disso, para ele, o "próximo" não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem compensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra a sua vontade, para usurpar o seu patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo. Homo hominii lupus (O homem é o lobo do homem); quem, depois de tudo o que aprendeu com a vida e a história, tem coragem de discutir essa frase? (Freud, 1930/2010, pp. 76-77)1.

As relações de poder e as tendências complementares a dominar e a submeterse surgem no tecido das relações sociais e são atravessadas e constituídas pelos sistemas de organização político-social em cada momento histórico. Neste trabalho, contudo, vou concentrar-me nas contribuições do pensamento psicanalítico a essa questão, por meio do pensamento de Jessica Benjamin. Na conclusão, faço novas observações a respeito desse entrelaçamento inevitável entre as determinações socioculturais e a construção individual e familiar dos vínculos de amor, sempre infiltrados por laços de poder e de violência.

2 JESSICA BENJAMIN, UMA BREVE APRESENTAÇÃO

Psicanalista americana nascida em 1946, Jessica Benjamin tem se preocupado em discernir de que maneira a psicanálise pode contribuir para elucidar como operam, desde os primeiros momentos de constituição do sujeito psíquico no âmbito familiar, os mecanismos de "domínio" e "submissão" na vida social. Ao realizar esse projeto, a autora vem se dedicando a esclarecer as diferenças entre distintas abordagens psicanalíticas: a psicanálise clássica freudiana, as teorias de relações de objeto, a psicologia do ego, as teorias da intersubjetividade e a psicologia do self. Um de seus instrumentos teóricos básicos é a noção de "intersubjetividade", inspirada na teoria social de Habermas (1970): "a intersubjetividade do entendimento mútuo", para designar a capacidade e a disponibilidade de uma pessoa para as relações sociais.

Na verdade, Jessica Benjamin parte da noção de intersubjetividade para fazer a crítica a uma concepção que pensa o sujeito psicanalítico exclusivamente em termos de seu funcionamento intrapsíquico. Considera que a teoria psicanalítica que prioriza a dimensão "intrapsíquica" é a que permite conhecer o funcionamento inconsciente do sujeito, imprescindível e que deve ser mantida ao lado da abordagem "intersubjetiva", que permite conhecer a representação de si e do outro em suas múltiplas inter-relações, sem perder de vista as determinações socioculturais na constituição do sujeito psíquico.

Jessica Benjamin escreveu vários livros2 e, além de exercer a prática clínica, é docente na Universidade de Nova Iorque, onde trabalha em um programa de pós-doutorado em psicoterapia e psicanálise. Em seu primeiro livro, The bonds of love: psychoanalysis, feminism and the problem of domination (Benjamin, 1988),3 ela elabora os meandros emocionais e a presença do prazer e desprazer que se infiltram nas relações de dominação e submissão, desde muito cedo.

3 O PENSAMENTO DE JESSICA BENJAMIN

Interessei-me, neste trabalho, em apresentar algumas das ideias da autora, quando trata dos primeiros laços de amor entre mãe e filho, apontando a importância do "reconhecimento" do outro para a constituição do sujeito psíquico. É com base nisso que ela discernirá os primeiros impasses e aporias de onde podem surgir os mecanismos de domínio e submissão. De que modo o frágil equilíbrio que se constitui pelos primeiros laços de amor conduz, na vida adulta, a vínculos de dominação entre os pares? Na verdade, esse é o tema principal de seu trabalho: discernir e elucidar como se formam e como operam os mecanismos de dominação e de submissão entre os pares de todos os vínculos amorosos, em todas as idades.

3.1 O conflito entre as necessidades de ser reconhecido e de autoafirmação

A necessidade humana de ser reconhecido pelo outro, meu nebenmensh, levanos diretamente à questão do narcisismo. Desde o texto Introdução ao narcisismo, escrito por Freud (1976) há um século, há uma quantidade imensa de reflexões e teorias a respeito das primeiras necessidades de receber uma resposta especular, de reconhecimento, por parte da mãe. Na citação a seguir, Benjamin enfatiza que, ao lado da necessidade de reconhecimento do bebê, existe a necessidade que a mãe sente de ser, ela própria, reconhecida por seu filho:

À medida que embala seu bebê recém-nascido e olha dentro de seus olhos, pela primeira vez, a mãe diz: "Eu acredito que você me conhece. Você sabe quem sou, não é? Sim, você sabe [. . .]" Para a mãe, aquele momento tranquilo depois da mamada [. . .] é, de fato, um momento de reconhecimento. Ela diz a seu bebê: "Ei, estrangeiro, será que você é, de fato, aquele que eu carreguei dentro de mim? Você sabe quem sou?". De forma diferente do observador, ela não ficaria surpresa em descobrir que experimentos rigorosos mostram que seu bebê já pode distingui-la de outras pessoas, que os recémnascidos já preferem a visão, o som e o cheiro de suas mães (Benjamin, 1988, p. 13).

Pouco tempo transcorre, entretanto, até que surja o conflito entre a "necessidade de ser reconhecido" pelo outro e a necessidade, também significativa, de separarse dele, de "autoafirmação". Surge o desejo de não ter de sempre agradar o outro, o que pode levar, aos poucos, a ser capaz de dizer a ele um verdadeiro "não". Esse conflito entre o intenso desejo de ser reconhecido e o desejo de sair de uma excessiva dependência e submissão já havia sido pensado filosoficamente por Hegel e psicanaliticamente por Lacan (1949/1977) e Winnicott (1989b). Vejamos o que Jessica Benjamin entende por reconhecimento:

Reconhecimento é aquela resposta do outro que torna significativos os sentimentos, as intenções e as ações de alguém. Permite que o sujeito psíquico venha a desenvolver a sua capacidade de autonomia e de autoria, de uma forma tangível [. . .] Essa luta para ser reconhecido por um outro, e assim sermos confirmados, foi considerada por Hegel como o núcleo das relações de dominação. Mas o que Hegel formulou ao nível da abstração filosófica também pode ser discutido em termos daquilo que agora conhecemos a respeito da constituição psíquica do infans (Benjamin, 1988, p. 12).

O início do reconhecimento entre mãe e filho é atravessado pela imensa desigualdade entre ambos, em termos de constituição psíquica e pela estranheza vivida pelos dois, que se instala depois do parto, depois dos meses de homeostase e união da gravidez. Normalmente, fala-se da necessidade de reconhecimento do neonato, mas o desejo da mãe de ser reconhecida pelo filho é tão importante quanto o primeiro. Pensa-se que o neonato mal é capaz de distinguir e perceber a sua mãe, não tendo uma existência psíquica separada dela. Entretanto há um número crescente de pesquisas que, desde a década de 1950, apontam, cada vez mais, para a presença de alguma forma de reconhecimento da mãe, por parte de bebês recém-nascidos.4

Nesse momento inicial do reconhecimento, é fácil perceber que já se insinua um paradoxo, uma vez que o contato e os cuidados de um recém-nascido têm momentos de grande intimidade e familiaridade, alternando-se com angústia, estranheza, cansaço e desamparo dos dois lados. Do lado da mãe, acontece uma paradoxal mistura de alteridade e familiaridade: "Você pertence a mim e, entretanto, não faz (mais) parte de mim. A alegria que sinto por sua existência precisa incluir tanto a minha ligação com você quanto a sua existência independente - eu reconheço que você é real" (Benjamin, 1988, p. 15).

O reconhecimento mútuo entre os sujeitos é tão vital para a existência humana que, às vezes, chega a passar despercebido. Os múltiplos sentidos que se encontram pressupostos no ato de reconhecer são: "afirmar, validar, considerar, conhecer, aceitar, compreender, sentir empatia, levar em conta, tolerar, apreciar, enxergar, identificar-se com, descobrir como algo familiar [. . .] amar" (Benjamin, 1988, pp. 15-16).

3.2 Passividade, atividade e separação

Na primeira metade do século XX, prevalecia a noção de que os recémnascidos eram muito imaturos. Com o tempo, a ideia de bebês que começavam a vida em um estado de grande passividade foi se modificando por meio de muitas pesquisas. Entre elas, as de Piaget (1954) revelaram uma criança desde muito cedo curiosa, interessada em estímulos e construindo ativamente seu ambiente. As competências que foram sendo percebidas nos bebês, mesmo nos muito jovens, inspiraram uma onda de pesquisas de psicanalistas como as de Bowlby (1951, 1958) e dos teóricos britânicos do attachment, que começaram a colocar em questão a "passividade" da criança.

A importância das pesquisas de observação de crianças que tinham sido separadas dos pais e que sofriam de privação de contato com outros adultos foi constatar, de maneira mais rigorosa, que o seu desenvolvimento emocional e social tinha sido profundamente comprometido por esses traumas precoces. Tais descobertas, que hoje nos parecem fazer parte de um "senso comum", foram gradualmente contestando a ideia de um narcisismo primário completamente fechado sobre si mesmo ou a ideia de Mahler (1975), de uma simbiose original quase autística, de onde depois nasceria o sujeito psíquico.

Embora não utilizassem o método psicanalítico stricto sensu, as pesquisas de observadores de bebê conduzidas por psicanalistas fortaleceram a ideia de que há, na criança, desde o princípio, em estado incipiente, uma necessidade de contato afetivo com o mundo, de uma busca por esse contato: o bebê é mais ativo do que se pensava na época de Freud e é capaz de participar, com mais prazer e de modo mais autônomo, da troca emocional com os seus cuidadores.

Um exemplo disso é uma das ideias defendida por Mahler (1975), na década de 1960, que foi sendo gradualmente transformada por novas pesquisas. Ela propunha a ideia de um nascimento psíquico mediante uma gradual separação da criança do estado de unidade simbiótica com a mãe. A sua teoria leva à ideia de que, se o início da vida se dava em um estado de unidade "a dois", o desenvolvimento seria desprender-se da matriz e chegar a um estado singular, a uma individualidade. Teríamos então uma sequência cronológica entre simbiose e separação. Mahler dava muita ênfase ao processo de separação, mas novas observações mostraram que persiste o desejo de ser reconhecido, mesmo depois de conquistado algum nível de separação.

Outra ideia interessante que modifica a noção de uma simbiose fechada é a noção de preconcepção de Bion (1962), que seria a expectativa ou intuição da existência de algo que poderia resolver um estado de insatisfação. Na situação de fome, o bebê teria a preconcepção de algo, de um objeto que ainda não foi encontrado, mas pode ser buscado e que poderia resolver o desconforto da fome. O termo usado por Bion (preconcepção) refere-se a uma qualidade que Kant descreve como se fosse um pensamento vazio, no sentido de que pode ser intuído, mas não pensado. E quando, por fim, o bebê com fome se encontra com o seio, com base em sua preconcepção do seio, pode formar-se uma nova concepção.

3.3 Alternâncias

Contrariando, portanto, a ideia de um narcisismo absoluto e do psiquismo original como um sistema fechado, penso que é mais interessante considerar que o nascimento psíquico acontece tanto na direção de desprender-se da matriz quanto na direção de voltar a ela e de aprender a ligar-se de novas maneiras. Aprender a separar-se é tão importante quanto suportar o desamparo decorrente de estabelecer novos laços significativos. Jessica Benjamin mostra que a teoria de Mahler, da separação/individuação, coloca ênfase no movimento de separarse da díade originária e na elaboração da angústia de separação, mas deixa de considerar a necessidade de ligar-se, de apreciar os outros em sua diferença e descobrir o prazer de estar com eles. Uma criança de dez meses tem prazer em engatinhar para longe da mãe e explorar o mundo. Esse prazer precisa ser sustentado por dois elementos: a presença materna disponível a reabastecer a criança quando ela se aventura para longe por conta própria e a capacidade da mãe de estimular as incursões para fora do ninho, em vez de ficar ansiosa com a independência da criança. Mahler enfatiza a segurança que a criança precisa sentir para poder separar-se. Porém o bebê que se afasta da mãe e olha para trás, procurando ver se ela ainda está lá, à sua espera, não está apenas tentando se reabastecer de segurança, mas

Está se perguntando se a mãe está partilhando de sua aventura – o medo, a excitação, e aquele sentimento ambíguo e maravilhoso de ansiedade e de frio na barriga. A sensação de partilhar o sentimento relativo ao novo empreendimento não é apenas a busca de segurança, mas, é em si mesma, a fonte de uma conexão agradável (Benjamin, 1988, p. 31).

Isso seria uma expansão das descobertas de Mahler, realizada pela teoria intersubjetiva (Modell, 1984; Stern, 1985): a afinidade emocional passa a ser central, reintroduzindo a noção de prazer que, em uma parte dos pesquisadores da psicologia do ego, havia ficado na penumbra. Aqui se trata mais do prazer de estar com o outro significativo, em um jogo de mútuo reconhecimento e afinidades emocionais.

3.4 A mutualidade entre mãe e criança e as teorias intersubjetivas

O pensamento psicanalítico dominante na década de 1960 colocava a ênfase no objetivo de ganhar autonomia dos primeiros objetos de amor, deixando numa relativa obscuridade a questão de novos encontros significativos entre a criança e sua mãe, ou com os novos sujeitos. Durante as décadas de 1970 e 1980, desenvolveram-se pesquisas que enfatizaram a reciprocidade e a mutualidade, mais do que a gratificação pulsional ou a questão da separação; são as teorias intersubjetivas 5 que mostram que, desde cedo, a criança, em seus contatos, se diverte e aprecia uma dimensão de alteridade e diferença. Ela não está em busca de um simples espelhamento de si mesma, mas já demonstra reconhecer o outro em sua diferença. Desde a precoce idade de quatro meses, uma criança pode convidar a mãe a uma primeira forma de jogo que transforma uma simples troca de fraldas em um momento intenso de experiências emocionais compartilhadas. Essas trocas combinam ressonâncias mútuas e diferenças que dão início a um tipo de reconhecimento baseado em um jogo de mutualidade.

Um jogo mecânico que leve uma criança a ter sempre algum tipo de resposta (por exemplo, puxar um fio preso a um brinquedo, que então "responde" sempre com o mesmo movimento) pode dar um prazer que advém do fato de dominar um mecanismo e de se sentir "reconhecido" pelo brinquedo, por meio da resposta que emite ao ser acionado. Entretanto as respostas maternas que têm algo de inesperado e variável começam a ser mais prazerosas: elas iniciam os jogos de mutualidade e de um reconhecimento que suscita um prazer muito maior, ligado à mutualidade, às respostas inesperadas e às diferenças, embora, em seu bojo, tragam também novas tensões.

A ação materna que envolve a voz, os movimentos faciais e os gestos e mímicas entram em comunicação com os gestos da criança, gerando uma dança de sons e movimentos que serão fundamentais para os sentimentos de união que vão reaparecer, mais tarde, em atividades de dança e música em grupo. As gratificações que surgem da mutualidade e desse tipo de afinidade emocional não estão enraizadas no prazer que classicamente associamos ao momento de ser alimentado, ou carregado no colo, mas surgem predominantemente desse brincar mútuo e responsivo.

Logo de início, torna-se claro que o reconhecimento só terá valor se puder vir de um outro sujeito merecedor de nosso reconhecimento, alguém que adquire valor a nossos olhos por ter uma existência própria, em seu próprio direito e cuja existência ultrapassa a sua função de nos dar reconhecimento. Para ter valor, ele deve afirmar-se e distinguir-se de nós, uma operação que envolve alguma forma de negação. E, da mesma forma, do nosso lado, quem deve nos reconhecer acaba entrando no paradoxo entre o desejo de ser reconhecido e a necessidade de se autoafirmar. A "afirmação de si mesmo" é, em muitos sentidos, um processo de negação da "necessidade de ser reconhecido". Essas necessidades contraditórias geram, entre si, um frágil equilíbrio dinâmico, difícil de ser sustentado. Por isso a mutualidade pode ser quebrada em momentos em que a criança está muito cansada e birrenta ou quando a mãe está ansiosa, deprimida ou entediada. “Vemos então não apenas a ausência do brincar, mas um tipo de antibrincar, no qual a frustração da busca de reconhecimento fica dolorosamente aparente” (Benjamin, 1988, p. 28).

O ciclo de mutualidade bem-sucedida pode dar lugar a um ciclo de desencontros dolorosos. Podemos observar, então, não apenas o sofrimento das duas partes, mas acompanhamos uma situação de conflito entre estas, quando a busca por reconhecimento parece virar uma briga, uma verdadeira luta de poder que resulta no desejo de livrar-se do outro, de fazê-lo desaparecer e cortar a brincadeira; ou, por outro lado, agarrar-se a ele sem poder soltá-lo, um correr atrás do outro, ou querer agredi-lo, em razão do desencontro entre expectativas e respostas.

O fracasso dessas interações de mutualidade gera uma dificuldade de sentir prazer que essas crianças passarão a levar para a vida futura, seja na companhia de outras pessoas, seja em sua incapacidade de viver com prazer a própria solidão, em decorrência desses primeiros desencontros. A criança não quer perder de vista o outro, mas não aprende a apreciar a companhia dele e os seus momentos prazerosos de solidão.

As consequências traumáticas dos primeiros desencontros na época da mutualidade foram percebidas na prática analítica de Winnicott, nas décadas de 1950 a 1960. Ao escutar em análise alguns pacientes, percebeu uma angústia muito grande, ligada ao sentimento de vazio e de falta de vitalidade: eram pessoas que não conseguiam dar sentido a suas vidas. O autor passou a se perguntar quais eram os fatores que impediam a construção de uma subjetividade capaz de sentir prazer e dor, alguém que conseguisse se sensibilizar com o outro (concern) e se tornasse capaz de se relacionar, sem avidez excessiva e sem desejo de controlar e dominar. Sua hipótese é de que os primeiros desencontros da mutualidade são o pano de fundo dessas perturbações do contato com o outro. Forma-se uma tensão entre submeter-se ao outro e libertar-se dele, entre buscar o seu olhar de reconhecimento e instalar-se confortavelmente em contato consigo mesmo, afirmando a sua própria subjetividade e conquistando autonomia. Quando o equilíbrio se quebra, surgem os sentimentos de exclusão, de abandono, de rejeição, que fazem com que os dois interlocutores do par (a mãe e o bebê, ou os pares de adultos em seus relacionamentos) percam a sua soberania pessoal, sintam-se inferiores ou superiores um ao outro, e percam o prazer da afinidade afetiva que pode ser construída nos jogos de mutualidade. A hipótese é que os colapsos das primeiras relações de mutualidade causam as perturbações do campo narcísico identitário, gerando o sofrimento patológico que começou a tornar-se mais nítido no consultório de Winnicott e dos analistas a partir da década de 1950.

O que Winnicott e a teoria da intersubjetividade trazem de novo é uma ênfase na sintonia emocional entre os pares e no prazer de estar na companhia do outro, que envolve um novo estágio de consciência da separação dele.6 Entretanto, desde muito cedo, por volta de um ano, a criança pode começar a viver o conflito entre realizar o seu próprio desejo e fazer algo proibido, e, de outro lado, seguir o desejo dos pais, ficar de acordo com eles. Esse conflito pode levar a uma inibição de sua curiosidade, da sua iniciativa de explorar o mundo, e do processo de diferenciação que estava começando. A criança se deixa levar a um estado de maior submissão e obediência aos desejos do outro, movida pelo desejo de manter o estado de sintonia com os pais, o que terá efeitos sobre as suas capacidades cognitiva, metafórica, criativa e intuitiva.

Mahler fala de uma fase em que o bebê, entre 10 e 13 meses, fica deslumbrado com o mundo e com suas novas descobertas, desconhecendo os perigos dos quais está sendo salvo pelos adultos, quando se atira em qualquer direção. É uma fase de euforia, autoafirmação, e de um narcisismo de grandiosas aspirações. Muito rapidamente, isto é, por volta dos 14 meses, acontece a saída do paraíso e começam os conflitos entre suas aspirações a ser e poder tudo, e os limites da realidade e a condição de dependência. É uma fase em que as demandas de reconhecimento chegam a um paroxismo: as crianças exigem que os pais participem de todas as suas conquistas e pede a aprovação deles para seus movimentos de independência e para suas novas descobertas. Elas se tornam tirânicas e exigem que tudo se passe de acordo com o seu desejo, que o mundo se adapte a elas, o que seria uma prova de amor; caso contrário, surge um sentimento terrível de abandono e rejeição. Se, em um primeiro momento, entre 10 e 13 meses, a criança estava mais eufórica e audaciosa, nesse segundo momento, ela percebe melhor as desvantagens da separação e sente com mais nitidez que a mãe também pode se afastar dela e pode contrariar suas vontades. Disso nasce um desejo terrivelmente forte de controlar a mãe.

Em termos hegelianos, da disputa entre o senhor e o escravo, a criança é agora o senhor, e seus pais, os escravos, cuja liberdade e autonomia são negadas e recusadas. "Sua Majestade, o Bebê" exige todo o reconhecimento e não se dispõe a dar nenhum, afirmando, de forma absoluta, a sua superioridade e onipotência. Sempre que predomina de forma muito intensa um dos polos (reconhecimento ou autonomia), a mutualidade e a sintonia são quebradas.

Para Hegel, a mutualidade e a sintonia de um mútuo reconhecimento estão destinadas a quebrar-se, em razão do conflito insolúvel entre as necessidades contrárias. Ele considera que a tensão entre os opostos carrega em si a semente da própria destruição e a transcendência (aufhebung) para uma nova forma. Ele afirma que esse é o inevitável movimento da vida, e sem essa contradição e sem o esforço de ultrapassá-la, não haveria nenhum movimento ou mudança nem existiria a própria história.

A teoria hegeliana da quebra da mutualidade encontra ressonâncias nas cenas familiares mais cotidianas. Na descrição acima, quando aumentou na criança o desejo de mandar e controlar, os pais se ressentem ao perder aquela criança que até então estava em um idílio de amor com eles e ficam muito desamparados diante da onipotência dos filhos. Os surtos de raiva e demandas tirânicas levam a diferentes reações; fazem surgir desejos de dizer não a todas as demandas da criança, de se vingar, ou, por outro lado, vem a tentação de ceder a tudo, como forma de evitar o confronto. Aparece também o medo de perder o amor dos filhos e o próprio amor a eles, a raiva e o sentimento de estar fracassando em sua função parental. Há uma confluência de emoções contraditórias, entre elas a dor de não poder oferecer um mundo perfeito e o desejo de compensar a criança das inevitáveis frustrações que a vida impõe. Se os pais não conseguem colocar limites aos filhos e a seus próprios desejos megalômanos e narcísicos, a criança se sente atraída a ficar em um estado de simbiose com pais superpoderosos. Algo da sua iniciativa e da capacidade de fazer suas próprias conquistas se perde quando recebe tudo já pronto e de "mão beijada". Ela se rebela contra essa situação, fazendo demandas cada vez mais grandiosas e passando a sentir que só ela existe; o valor dos outros é imaginariamente aniquilado, e os pais são meros escravos que devem obedecer e servir. Conta-se que, diante de um paciente adulto extremamente perturbado, Bion teria dito "É muito triste que o senhor tenha se reduzido à sua onipotência". A criança sente que fez desaparecer o valor dos outros e sente o vazio da falta de conexão e da falta de pessoas interessantes que possam dar algo de real a ela, o que a levará inevitavelmente a também sentirse irreal. "O resultado doloroso na batalha por onipotência é que vencer é não vencer nada: o resultado é negação, vazio, isolamento" (Benjamin, 1988, p. 35).

3.5 A descoberta da alteridade do mundo e dos outros

Como sair dessa luta de poder que parece destinada a repetir-se infinitamente, para decidir quem manda e quem obedece, enquanto houver disputa entre o superior e o inferior, e um universo onde parece haver lugar apenas para um, o vencedor?

A resposta de Winnicott está em seu texto "O uso de um objeto" (Winnicott, 1989a) e corresponde ao processo de descobrir o outro e a sua alteridade, não como um castigo e como uma negação de si, mas a alteridade e a diferença como fontes de nutrição. Quando ajo sobre o outro, é vital que ele possa ser afetado, de modo que eu perceba que existo e, ao mesmo tempo, é preciso que ele não seja completamente destruído, de forma que eu também possa descobrir que ele existe. Desde cedo, Winnicott preocupou-se com seus pacientes que se sentiam incapazes de alguma satisfação ou alegria e que estavam desvitalizados e empobrecidos em suas experiências emocionais. E deu-se conta de que entrar em contato com outras mentes e reconhecer uma realidade que não fosse mera projeção do psiquismo era o movimento mais importante para vitalizar-se e para romper o ciclo vicioso acima descrito.

Antes de conquistar o estágio em que seja possível entrar em contato com outras mentes, reconhecer sua alteridade, regozijar-se, "usar o objeto", dele tirando proveito e prazer, Winnicott (1989a) afirma que todos nós passamos por um modo "de relação com os outros", que os transforma em extensões de nós mesmos. Freud daria a isso o nome de relações de objeto narcísicas: é quando "inventamos" a outra pessoa e ela não é mais que um feixe de nossas projeções, não sendo experimentada como real e independente, mas se encontrando ainda submetida a nossos desejos de controle onipotente.

Então, diz Winnicott (1989a), para ir adiante, esse objeto que inventamos precisa ser destruído em fantasia, de forma que se descubra que, lá fora, ele ainda sobreviveu, não se deixando aniquilar por nossa agressividade e nem se formatar completamente por nossas demandas e desejos; ao contrário, manteve a sua independência, a sua (digamos assim) dignidade e a sua "soberania". Pois, dessa forma, agora podemos reconhecê-lo como alguém que não ficou submetido a nosso controle, manteve a sua autonomia e adquiriu assim um enorme valor. Ganhamos perspectiva e podemos agora estimar melhor o seu valor, a sua "novidade", e, visto de fora de nosso controle, ele se torna muito mais atraente e instigante.

Entretanto, para chegar a descobrir isso, antes é preciso tentar exercer o controle, tentar negar a independência do objeto, e é isso que Winnicott chama de "destruir o objeto" imaginariamente. Trata-se de um teste da "realidade" do outro e de mim mesmo.

Esta relação de destruição e sobrevivência é uma reformulação e uma solução do paradoxo de Hegel: durante a luta por reconhecimento, cada sujeito precisa colocar limites em sua vida, precisa lutar para negar o outro - e deveria ficar infeliz caso fosse bem-sucedido. Pois, se eu negar completamente o outro, ele não mais existirá; e se ele não sobreviver, ele não estará mais lá para me reconhecer [. . .] Para descobrir que ele existe, eu preciso desejar ser o único, absoluto e completamente solitário, e então, abrindo os meus olhos, eu preciso descobrir que ele ainda está lá (Benjamin, 1988, p. 38).

Essa destruição de que fala Winnicott é, na verdade, um esforço para se diferenciar, para constituir a externalidade do mundo e dos outros. É essa mesma necessidade de "destruir e recuperar" que está presente na brincadeira de esconde-esconde e no jogo do carretel, o fort-da, do neto de Freud. Jogar o carretel para longe e ter o fio em mãos, para recuperar aquele, não se deixou aniquilar pelo meu desejo de fazê-lo desaparecer e volta para mim. Serão necessárias muitas brincadeiras como essas, um ambiente suficientemente bom e um bom tempo de elaboração da presença-ausência, para que uma criança venha a aceitar a independência do outro, o fato de não ter controle sobre o modo de se portar dele, sobre a sua presença ou ausência; porém o processo de aceitação da independência do outro convive com estados de onipotência e de desejo de controlar, em um frágil equilíbrio.

Se a mãe não colocar limites à criança e não se autorizar a ter uma vida fora da função materna, ela acabará se tornando um joguete nas mãos do filho e perderá o seu valor para ele. Se ela se vingar, acreditando que atender a qualquer vontade levará a criança a ficar mimada, ela transmitirá a visão de que nunca há lugar para conciliação de vontades. Nesse caso, a criança é obrigada a renunciar a seus desejos, mas logo começa a preparar-se para se vingar, com raiva, e afastando-se dos relacionamentos futuros que vão ser sempre pensados como um convite a submeter-se ao outro.

Winnicott aconselha aos pais:

É uma coisa saudável para um bebê vir a conhecer toda a dimensão de sua raiva [. . .] Se ele se concentrar nisso, ele pode segurar a respiração e ficar azul, e até ter um surto de raiva. Durante alguns minutos, ele realmente pretende destruir ou, pelo menos, estragar todos e tudo, e não se importa nem um pouco se por acaso ele se destruir no mesmo processo. Naturalmente você vai fazer o que puder para tirar a criança desse estado. Podemos dizer, entretanto, que, se um bebê grita em um estado de raiva e sente que ele destruiu todos e tudo, e se, ainda assim, as pessoas ao seu redor permanecem calmas e não feridas, essa experiência fortalece muito a habilidade dele de verificar que o que ele sente como verdadeiro não é necessariamente real (Winnicott, 1964, p. 62).

Essa calma, acompanhada da sobrevivência, é a única coisa que permite superar a entrada no círculo vicioso de vingança e submissão. Por meio disso, pode ser restaurada a dimensão de reconhecimento mútuo. O menino que brincava com o carretel, no relato de Freud (1920/1976), às vezes, atirava para longe os brinquedos, afirmando, com raiva, "Vá para a guerra", ou seja, expulsando a figura paterna, que de fato tinha ido à guerra. E fazia isso em um movimento vingativo, de expulsão. "Antes me senti abandonado por você, mas agora sou eu que desejo que você desapareça." De forma semelhante, ao brincar de faz de conta e fazer o papel da mãe que foi embora, de início, as crianças podem revelar todo o seu sadismo e o impulso vingativo de abandonar as mães, de fazer a elas o que sentem que elas fizeram contra si. Entretanto a brincadeira pode evoluir para um reconhecimento de que a mãe deseja ter vida própria, assim como ele, o filho, também quer ter mais independência. E podem recuperar a confiança de que a mãe voltará e também sente a falta deles. Esse é um movimento importante, em que se resgata a sintonia amorosa e pode-se abrir mão do desejo de controlar, trocando-o por um novo sentimento de ligação ao outro, mais profundo e mais livre. Trata-se de aceitar a imperfeição do vínculo com a mãe e lidar melhor com as frustrações que as suas faltas impõem. Essa conquista se dá através do meio maleável da brincadeira e da negociação das vontades, pois não é possível entrar no reconhecimento mútuo pela obediência forçada, o castigo, a repressão ou o jogo de poder.

A ideia de "meio maleável" é uma criação de Milner (1991a), com base em sua autoanálise e em pacientes como Susan e Simon (Milner, 1991a), que utilizaram brinquedos, o papel para desenho e a massinha para modelar no sentido de "meios maleáveis" que, sendo exteriores a eles, exerceram um papel receptivo, comparável à função especular e ao olhar de reconhecimento materno. Por esses meios, que se deixaram moldar pelo gesto criativo, eles puderam inscrever no mundo a "marca de sua criatividade", de seu mundo subjetivo, saindo de uma posição de submissão e inferioridade. Simon, que iniciava as sessões em um tom de voz autoritário e despótico,

Assim que começava a usar os brinquedos, à guisa de um meio flexível, externo a si mesmo, mas que não insistia em sua existência objetiva separada, podia, em consequência tratar-me amistosamente e com consideração, e até mesmo aceitar uma frustração real advinda de mim (Milner, 1991a, p. 97).

Em geral esse paciente dirigia-se a Milner de forma arrogante e lidava com ela como se ela fosse sua posse: ela devia estar à sua disposição, mesmo quando ele chegava muito antes de sua hora. Nesse caso, a própria analista teve de se transformar em "meio maleável".

O menino, de vez em quando, me dizia que era um gás ou que ele iria me dissolver ou me evaporar até que eu também me tornasse um gás. Assim parecia que ele havia se tornado capaz de usar tanto a mim quanto ao equipamento da sala de ludoterapia como sua substância plástica sobre a qual podia fazer intervenções; ele havia se tornado capaz de utilizar a mim e à sala do mesmo modo que Caudwell diz que o poeta faz com as palavras, quando as utiliza para dar ao corpo um apetite pela realidade externa; quando ele faz com que a terra se torne impregnada de colorido afetivo e brilhe com um estranho fogo emocional (Milner, 1991a, p. 104).

Enfim, o caso de Simon ilustra muito bem as necessidades opostas de autoafirmação, independência e autonomia de um lado; e, de outro, o desejo de ser reconhecido, de estabelecer vínculos de dependência e de abrir mão de parte de sua autonomia para entrar em sintonia com os outros (tudo isso precisava ser integrado e constantemente reequilibrado). Quando isso não ocorre, há uma quebra do equilíbrio e do paradoxo, surgindo, de novo, uma busca compulsiva e ingovernável de controlar o outro e voltando a predominar a onipotência e a hostilidade. Nesse momento, os opostos não podem ser integrados, um dos protagonistas da dupla vai ocupar um lugar desvalorizado, e o outro é, ao mesmo tempo, injustamente idealizado.

4 CONCLUSÃO E APRECIAÇÃO CRÍTICA DAS IDEIAS DE JESSICA BENJAMIN

O interesse por essa autora advém de seu forte envolvimento com o problema da dominação e da submissão, além de sua recusa a qualquer posição fundamentalista. Revela-nos, assim, um modo muito particular de pensar a contribuição da psicanálise por meio de um profundo conhecimento que atravessa as diferentes escolas, buscando encontrar em cada ponto de vista uma nova elucidação para esses fenômenos. A sua maior contribuição é a capacidade de se manter no único lugar, que pode ajudar a sair de antigos impasses insolúveis, ou seja, trata-se de sustentar a visão binocular, focalizando simultaneamente o "intrapsíquico e o intersubjetivo".

Benjamin afirma o valor de tudo que é possível captar quando se coloca a ênfase no "intrapsíquico": segue então de bem perto o que se pôde aprender desde 1900, a partir dessa perspectiva que eu chamaria de "psicanálise clássica". Ao mesmo tempo, ela envereda pelas teorias que enfatizam o aporte do ambiente, as correntes da intersubjetividade, as pesquisas de Winnicott e de todos os herdeiros da linha de Ferenczi e de Klein, que dirigiram o olhar para a importância e o papel do "objeto" na constituição do sujeito psíquico. O seu mérito está em manter sua atenção simultaneamente no "intrapsíquico" e no "intersubjetivo", articulando estas diferentes dimensões e sustentando a tensão criada por este olhar em duas direções.

Minha opinião é de que as teorias servem, acima de tudo, para "desalojar" certezas absolutas. Teorias que pretendem ser o único acesso à verdade e sustentam crenças, valores e convicções absolutas têm sempre uma potencialidade "sanguinária". Em The bonds of love (Benjamim, 1988), é visível a busca de um caminho para libertar-se das amarras e das ilusões do imaginário presente na aspiração a um conhecimento absoluto e totalmente abrangente.

Um critério para aproximar-se do real, emancipando-se da captura imaginária, é afirmar que o real é sempre contraditório e paradoxal. Isso obriga a pensar os paradoxos, a lidar com diferentes pontos de vista e a sustentar a margem de novas dúvidas e inquietações que cercam qualquer resposta. Ao sustentar a ideia de que o real é sempre contraditório e que nenhuma teoria ou ideologia pode dar a solução final à questão da dominação, o imaginário onipotente tende a ceder e se deixa dissolver, pelo menos em parte. Ler Jessica Benjamin ajuda a compreender as teorias psicanalíticas e a prática analítica em sua infinita complexidade e inacabamento.

Na obra The bonds of love (Benjamim, 1988), a autora sustenta o paradoxo entre os desejos opostos de reconhecimento e de autoafirmação em sua recorrente aparição nas várias formas de amor. As teorias psicanalíticas são confrontadas entre si e com a experiência clínica, sendo que a marcha de seu pensamento manifesta uma forma interessante de usar uma teoria para relativizar a outra. O movimento do pensamento e a prática clínica são colocados a serviço de desalojar e desconstruir as certezas absolutas. Nisso reside a sua maior contribuição.

No primeiro capítulo, dedicado aos primeiros anos de vida, Jessica Benjamin analisa os momentos em que a experiência do paradoxo entre necessidades opostas se torna muito dolorosa, quase intolerável, estabelecendo as bases para as primeiras situações de domínio e de submissão, na relação entre pais e filhos. Nos capítulos seguintes, ela vai demonstrar de que modo é justamente a impossibilidade de sustentar o paradoxo que vai dar origem às outras formas de dominação, na vida erótica adulta e em outros relacionamentos.

Na vida dos casais, essa luta entre reconhecer/ser reconhecido e a aspiração a ser livre, a fazer só o que se deseja e a submeter o outro a seu poder, são responsáveis pela maior parte dos conflitos e separações. Quem poderia dizer que detém a fórmula de equilíbrio ideal entre o desejo de pertencer e a necessidade de estar só e descompromissado? Observam-se, no dia a dia da clínica e do cotidiano, soluções que nunca chegam a ser completamente satisfatórias e que repetem os mesmos erros do passado. Essas fórmulas precisariam ser feitas e refeitas, aperfeiçoadas e transformadas para cada casal e para cada momento, sem a esperança de uma solução ideal.

Jessica Benjamin ajuda a refletir sobre essas aporias e impasses, ampliando a compreensão da violência que nasce junto a todo laço de amor. A saída do impasse não se dá, entretanto, por meio de estados de separação ou simbiose cada vez mais radicais, mas pela sustentação do impasse entre reconhecimento e autoafirmação, e por uma forma de entrega mais profunda ao outro, diferente de mim.

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Texto recebido em 5 de junho de 2015 e aprovado para publicação em 19 setembro de 2016.

 

 

* Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora na Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da PUC-SP e no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, autora de Melanie Klein: estilo e pensamento, psicanalista.E-mail: elcintra01@gmail.com.
1 A primeira data indica o ano de publicação original da obra e a segunda data indica a edição consultada pelo autor; que só será pontuada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes será registrada apenas a data de publicação original.
2 Em seu segundo livro Like subjects, love objects: essays on recognition and sexual difference (Benjamim, 1995), a autora examina a teoria psicanalítica da intersubjetividade, articulando-a com a teoria do complexo de Édipo de Freud. O terceiro livro, Shadow of the other: intersubjectivity and gender in psychoanalysis (Benjamin, 1997), é uma ampliação de seu trabalho sobre intersubjetividade, amor e agressão.
3 O livro não foi traduzido para o português, o seu título, em tradução livre, seria: Laços de amor: psicanálise, feminismo e o problema da dominação.
4 Brazelton (1980): preferência pelo rosto e pela voz da mãe na primeira semana de vida; MacFarlane (1975): preferência olfativa pelo leite materno; Carpenter (1974): preferência pelo rosto da mãe; Casper e Fifer (1980): preferência pela voz materna.
5 As teorias intersubjetivas focalizaram a questão da reciprocidade e de que forma o brincar pode ser considerado um primeiro modelo de interação entre sujeitos psíquicos. Pesquisas, por exemplo, sobre as origens da reciprocidade (Brazelton, Koslowski & Main, 1974); sobre as interações face a face comunicativas (Tronick, Als & Adamson, 1980); sobre a mutualidade na interação mãe-criança (Tronick, Als & Brazelton, 1977); sobre o objetivo e a estrutura dos jogos mãe-criança (Stern, 1974). Por outro lado, a experiência da mutualidade é tema de Winnicott (1969), em The mother-infant experience of mutuality, e de Milner (1991a), O papel da ilusão na formação simbólica (1952/1991a).
6 Roussillon (2010) fala em "prazer compartilhado".

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