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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.24 no.3 Belo Horizonte Sept./Dec. 2018

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2018v24n3p744-760 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2018v24n3p744-760

 

Transformando um mundo selvagem: ajudando crianças e famílias ante a negligência na província de Quebec, Canadá1

 

Reshaping a wild world: helping children and families facing negligence in the province of Quebec, Canada

 

Transformando un mundo salvaje: ayudando niños y familias ante la negligencia en la provincia de Quebec, Canadá

 

 

Carl Lacharité*

 

 


Resumo

A negligência é um problema social complexo, com graves consequências para o cumprimento das necessidades de uma criança, pelos adultos que compõem a família da criança e da rede social; não somente pais, mas outros adultos que entram em contato com a criança (incluindo profissionais). Pela complexidade das relações sociais envolvidas, os sistemas de proteção da criança têm dificuldade de identificar e criar programas de atendimento. Na verdade, eles apresentam uma tendência a concentrar-se sobre as deficiências dos pais em relação à sua responsabilidade para com os seus filhos. Este artigo descreve a fundamentação teórica de um modelo ecossistêmico e de desenvolvimento que tem como base os serviços integrados de negligência infantil em Québec, no Canadá. Também descreve os componentes e atividades que visam a operacionalizar esse modelo ecossistêmico e o modelo de desenvolvimento de negligência infantil.

Palavras-chave: Maus-tratos infantis. Desenvolvimento da criança. Relações pais-filhos. Negligência infantil.


Abstract

Child neglect is a complex social problem with serious consequences to the fulfillment of a child’s needs, provided by adults who are the members of the child’s family, and the social network; not only parents, but other adults who interrelate with the child (including professionals). Due to the complexity of the social relations involved, it is hard for child protection systems to design and develop assistance programs. In fact, they have a tendency to concentrate on parents’ deficiencies concerning their responsibility for their children. This article describes the theoretical foundation of an ecosystemic and developmental model which is based on the integrated services dealing with child neglect in Quebec, Canada. It also describes the components and activities that aim to operationalize this ecosystemic and developmental model approaching child neglect.

Keywords: Child abuse. Child development. Parent-child relationships. Child neglect.


Resumen

La negligencia es un problema social complejo con graves consecuencias para el cumplimiento de las necesidades de un niño por parte de los adultos en la familia inmediata del niño y de la red social - no sólo padres, sino también otros adultos que están en contacto con el niño (incluyendo los profesionales). Por la complejidad de las relaciones sociales implicadas, los sistemas de protección de los niños tienen dificultades para identificar y crear programas de atención. De hecho, tienen una tendencia a concentrarse en las deficiencias de los padres con respecto a su responsabilidad con sus hijos. En este artículo se describe el fundamento teórico de un modelo ecosistémico y de desarrollo que constituye la base de los servicios integrados de negligencia infantil en Quebec, Canadá. También se describen los componentes y actividades que tienen como objetivo poner en práctica este modelo ecosistémico y el modelo de desarrollo de negligencia infantil..

Palabras clave: Abuso infantil. Desarrollo infantil. Las relaciones entre padres e hijos. La negligencia infantil.

1 INTRODUÇÃO

A negligência infantil constitui "um mundo selvagem onde é difícil passar apenas com um sorriso" do coro de Wild World, de Cat Stevens (1970). É um problema social complexo, com consequências significativas não somente em termos de respostas dos pais para as necessidades das crianças, mas também para outros que entram em contato com eles (incluindo setor educacional, de saúde e profissionais de serviços sociais). No entanto os sistemas de proteção da criança têm dificuldade para identificar e criar programas, tendo em conta a natureza social e da complexidade relacional dessa questão, e, por vezes, tendem a se concentrar em casos de falhas dos pais para cumprir as suas responsabilidades para com os filhos (Gilbert, Parton & Skivenes, 2011).

Zuravin (1999) argumenta que uma das desvantagens no desenvolvimento de programas destinados a prevenir ou reduzir a negligência infantil das crianças é a falta de atenção às questões conceituais em relação a esse problema social. Ele também recomenda que os programas realizados não devem limitar-se a apenas alguns parágrafos sobre a teoria da negligência e a teoria da intervenção em trabalhos empíricos ou manuais de programa.

Em vez disso, eles devem apresentar, de forma mais completa, a estrutura conceitual de seu trabalho. Seguindo a recomendação de Zuravin, o objetivo deste artigo é dar uma visão geral de um modelo de intervenção na formação de uma estrutura de integração da negligência infantil nos serviços em Québec, Canadá. Como tal, tem como objetivo descrever dois aspectos do trabalho que foi feito por meio do desenvolvimento de um modelo: a fundamentação teórica e a operacionalização em componentes e atividades específicas propostas para as famílias.

A descrição dos desafios da implementação do programa e os dados sobre os resultados sobre a eficácia desse modelo já foram publicados e podem ser disponibilizados em contato com o autor. Eles, portanto, não serão apresentados em detalhes aqui. No entanto algumas informações básicas sobre o programa são brevemente resumidas. No geral, os resultados indicam que, nas famílias afetadas por negligência, esse tipo de intervenção melhora o bem-estar e o desenvolvimento das crianças, melhora a adaptação pessoal dos pais, o apoio social, as habilidades e atitudes relacionadas com as responsabilidades parentais, "desenvolvimento" da vida familiar, a colaboração entre pais, profissionais e parceria entre organizações de serviços. Em outras palavras, essa abordagem promove transformação do “mundo selvagem” no qual a negligência mergulha as crianças, pais e profissionais.

2 UM MODELO DE NEGLIGÊNCIA INFANTIL ECOSSISTÊMICA E DESENVOLVIMENTAL

Normalmente, nas sociedades ocidentais, as necessidades imediatas das crianças são adequadamente cumpridas por sua família e rede social próxima. Aqui, “rede familiar e social próxima”, obviamente, não se refere apenas às figuras parentais, mas também a qualquer outro adulto que está envolvido em suas atividades diárias para garantir condições ideais de bem-estar e desenvolvimento para uma criança. A superficialidade dessa observação, no entanto, mascara a grande complexidade da organização social necessária para produzir os resultados desejados. Ela promove a ilusão reduzida de que o bem-estar de uma criança é, quase exclusivamente, dependente da qualidade da parentalidade que recebe (particularmente de sua mãe) e que essa qualidade depende principalmente das características pessoais dos pais. Essa ilusão é sutilmente reforçada por pesquisas científicas e políticas públicas, apesar do aumento de concepções alternativas por um lado, que convidam a uma reavaliação e uma compreensão global maior dos mecanismos sociopsicológicos subjacentes ao bem-estar e desenvolvimento das crianças, por outro lado, deposita as responsabilidades para os pais (Bédard, 2002). Essa reavaliação sugere que a criança negligenciada é um triste exemplo eloquente do colapso dessas organizações sociais. Além disso, indica que as crianças que são vítimas de negligência eram crianças "com necessidades" antes de se tornarem crianças "a serem protegidas". Na verdade, ela não é útil para definir negligência, principalmente em termos dos comportamentos parentais (Daniel, Taylor, Scott, Derbyshire & Nielson, 2011; Dubowitz et al., 2005; Lacharité, Éthier & Nolin, 2006).

Ao sugerir que a configuração da negligência infantil não são apenas os comportamentos parentais, mas também a organização social que afeta tanto o desenvolvimento e o bem-estar da criança, assim como a parentalidade positiva e responsável, eu me refiro a Smith (2005) na definição de organização social. Em sua análise, as pessoas são vistas constantemente coordenando suas ações com as dos outros (em nível local ou externo). Essa coordenação de ações concretas constitui a base das relações sociais. As organizações sociais são conjuntos ou complexos de relações sociais com objetivos específicos com o bom desenvolvimento e bemestar de criança, assim como paternidade positiva e responsável. Essas metas recaem sobre os conjuntos de relações sociais entre filhos/pais e muitas outras pessoas no seu ambiente, algumas das quais estão em contato com eles e outras que sequer são conhecidas por eles, no entanto influenciam indiretamente as circunstâncias de suas vidas diárias. Esse conceito de organização social tem sido aplicado para o desenvolvimento da criança (Bronfenbrenner, 2005) e para a questão da negligência infantil (Garbarino & Collins, 1999). Então, quando é sugerido que a negligência infantil deveria ser entendida como um colapso da organização social em torno das crianças e dos pais, estou apontando décadas de descobertas empíricas que mostram que um conjunto complexo de fatores envolve essas situações pessoais, relacionais e sociais.

Também se deve notar que a negligência está diretamente relacionada com as necessidades fundamentais das crianças e as respostas sociais (mediante as relações sociais) que permitem que estas sejam cumpridas diariamente (Hearn, 2011; Taylor & Daniel, 2005). Além disso, no caso da negligência, o primeiro locus de danos é o desenvolvimento global da criança, e a finalidade máxima das intervenções deve ser a recuperação desses danos no desenvolvimento (Lacharité & Goupil, 2013).

Mas o que é exatamente negligência infantil? Definir negligência é um problema tão antigo quanto a própria questão (Dubowitz & Bennet, 2007). Em todo o mundo, as ações de proteção da criança definem negligência infantil em termos de falha dos pais para atender às necessidades básicas de seu filho e também em termos de hábitos de vida dos pais que podem interferir no bem-estar e desenvolvimento de seu filho (por exemplo, uso de drogas, violência doméstica). Esses critérios não devem ser considerados como definições da negligência infantil, mas utilizados para o conjunto de condições e fatores que caracterizam negligência. Esses critérios têm sido relativamente bem-sucedidos em detectar situações onde as crianças e os pais enfrentam problemas graves e são necessários vários tipos de ajuda, essa eficácia pode ser corroborada pela alta incidência de casos de crianças negligenciadas na maioria dos sistemas de proteção da criança (Horwath, 2007). Mas há uma desvantagem para essa eficácia. Esses critérios tendem a levar os sistemas de proteção da criança a se concentrar nas decisões e comportamentos dos pais (na verdade, na maioria das vezes, das mães), sem ter em conta as relações operacionais no contexto mais amplo de suas vidas. Eles também tendem a promover uma compreensão de desenvolvimento da criança principalmente centrada sobre o funcionamento do relacionamento pais-filho (Gilbert et al., 2011).

A análise de casos de crianças negligenciadas revela que esse conjunto complexo pessoal, relacional e de fatores sociais que caracterizam a organização social e que afetam as respostas às necessidades das crianças é muito comum nas crianças acompanhadas pelos sistemas de proteção à criança. Lavergne e Tourigny (2000), a Public Health Agency of Canada (2010) e a Association des Centres Jeunesse du Québec" (2010) relatam que, no Canadá e em Québec, os casos de negligência infantil representam 35-75 por cento dos eventos; variações nas taxas de prevalência são explicadas principalmente pela idade das crianças, sendo a negligência mais comum em crianças pequenas. Além disso, esse colapso da organização social em torno das crianças e dos pais não ocorre de forma aleatória, e deve-se notar que algumas crianças estão em maior risco de serem expostas a esse tipo de adversidade durante seu desenvolvimento (Slack et al., 2011). Mas quem são essas crianças?

Em resposta a essa questão, vários estudos (Mersky, Berger, Reynolds & Gromoske, 2009; Schumaker, Slep & Heyman, 2001; Slack et al., 2011) relataram que as crianças que são vítimas de negligência, em sua maior parte, convivem com figuras parentais que lidam com grandes obstáculos em suas próprias vidas. Esses obstáculos podem surgir de suas histórias pessoais ou sociais (por exemplo, uma história de abuso infantil, pertencer a um grupo étnico marginalizado) ou de circunstâncias de sua vida atual (por exemplo, desvantagem socioeconômica, violência doméstica). Além disso, esses obstáculos de desenvolvimento e de contexto têm dois efeitos adversos. Em uma primeira dimensão, eles comprometem o bem-estar pessoal dos pais, por exemplo, pelo desenvolvimento de problemas de saúde mental ou dependência de substâncias. Em segundo lugar, eles dificultam o cumprimento do conjunto das responsabilidades sociais e emocionais necessárias para a manutenção das relações interpessoais íntimas, por exemplo, devido ao desenvolvimento de conflitos interpessoais, ou o isolamento emocional dentro do relacionamento íntimo ou com membros de sua rede social primária (família, amigos), ou relacionamentos significativamente problemáticos entre pais-filhos.

Infelizmente, os desafios de desenvolvimento enfrentados por crianças que têm sido vítimas de negligência não são limitados ao círculo interno de sua família. O colapso da organização social, permitindo respostas concretas às necessidades das crianças, interfere não somente com o cumprimento direto da responsabilidade parental e da natureza da relação pai-filho, mas é também particularmente corrosivo para a relação entre a família e sua comunidade (Mikton & Butchart, 2009). Assim, nos casos de negligência crônica, o sistema informal de apoio social da comunidade, bem como atividades e serviço formal/ institucional têm dificuldade em fornecer apoio relevante e oportuno para os pais que, algumas vezes, tendem a se sentir como sendo analisados, controlados e culpados (Tanner & Turney, 2003; Turney & Tanner, 2001). Além disso, essa relação familiar interrompida na comunidade leva a uma redução significativa de oportunidades da criança para o desenvolvimento normativo, suas estratégias para lidar com a adversidade que está experimentando dentro de seu círculo familiar (Mersky, et al., 2009).

Muito já foi dito anteriormente sobre a natureza ecossistêmica da negligência infantil. E sobre o aspecto de desenvolvimento dessa questão? O que pode ser considerado "desenvolvimental" sobre o modelo que proponho aqui? Uma resposta a essas perguntas recai, obviamente, sobre as conclusões empíricas dos múltiplos desafios de desenvolvimento que enfrentam os filhos que crescem em famílias e contextos sociais negligentes (Milot, Éthier, St-Laurent & Provost, 2010; Tyler, Allison & Winsler, 2006). Esses resultados empíricos sobre o objetivo de desenvolvimento do "sofrimento" de crianças negligenciadas levam a uma segunda dimensão de resposta de forma conceitual, ou seja, que a negligência infantil não pode ser entendida sem se referir às necessidades de desenvolvimento das crianças. Assim, o conceito de desenvolvimento precisa estar no centro de qualquer afirmação teórica ou clínica de que os profissionais fazem sobre essas situações.

Uma terceira dimensão que informa a perspectiva de desenvolvimento da negligência infantil recai sobre o entendimento de parentalidade positiva e responsável como uma conquista do desenvolvimento por parte dos adultos. Nessa perspectiva, a criação dos filhos não é somente uma questão de conhecimento dos pais, habilidades e atitudes; é também uma questão de desenvolvimento pessoal de vários níveis (emocional, conceptual, ético, etc.). Assim, o modelo aqui apresentado é de desenvolvimento, porque ele não destaca apenas as práticas parentais, mas também a experiência subjetiva e relacional de cuidar de crianças em circunstâncias adversas.

Nessas três dimensões, as principais consequências desenvolvimentais da negligência para as crianças, a compreensão da negligência como uma questão centrada nas suas necessidades de desenvolvimento e a necessidade de considerar um desafio parental de desenvolvimento dos adultos estão ligados a outros aspectos que devem ser levados em conta. O modelo conceitual de negligência aqui proposto é de desenvolvimento, porque ele também considera o fato de que as necessidades de desenvolvimento das crianças não são ideias abstratas. Essas necessidades devem ser concebidas e conceituadas por pessoas reais, com as quais as crianças entram em contato. As representações mentais da criança em desenvolvimento mantidas por seus pais e outros adultos, e a partilha e coordenação dessas representações constituem um elemento essencial do desenvolvimento e bem-estar da criança. Esse processo sociopsicológico de representar mentalmente uma criança como um ser em desenvolvimento também é profundamente afetado em situações de negligência infantil.

A última dimensão que é relevante para uma perspectiva de desenvolvimento da criança negligenciada diz respeito aos discursos socioculturais e aparato institucional que as sociedades ocidentais têm construído em torno de ideais, tais como o desenvolvimento, o bem-estar e a segurança da criança, as responsabilidades dos pais, os papéis distintos da família e do Estado, etc. Assim, situações de negligência infantil sempre envolvem uma “política de desenvolvimento da criança”, isto é, um conjunto complexo de relações sociais determinando quem tem o poder de dizer a "verdade" sobre uma criança. Nesse contexto, não é surpreendente que a negligência infantil é mais facilmente compreendida por profissionais e pesquisadores como uma ruptura da relação pais-filhos na necessidade de intensas intervenções voltadas para os pais. Além disso, não é de estranhar que as pessoas têm algumas dificuldades para entender a negligência infantil como um rompimento do relacionamento entre famíliacomunidade.

Essa ideia de que as famílias e as comunidades desenvolvem formas complexas de coordenação em relação à segurança e bem-estar das crianças e que a negligência infantil se refere ao enfraquecimento desse aspecto tanto quanto diz respeito às relações pai-filho tem recebido muito menos atenção na literatura acadêmica e foi vagamente operacionalizado por meio de processos formais institucionais de assistência social. O difícil equilíbrio desse aspecto tanto quanto entre assistência social e controle social em situações de negligência infantil é, provavelmente, em parte, uma consequência direta do desequilíbrio entre o foco no relacionamento pais-filhos e o foco no relacionamento familiar na comunidade. Esse desequilíbrio cuidado/controle também é, provavelmente em parte, consequência das dificuldades que as organizações ou serviços têm quando se consideram a perspectiva parental (Lacharité, 2011).

3 INTEGRAÇÃO DOS SERVIÇOS DE NEGLIGÊNCIA INFA,NTIL EM QUÉBEC

O Departamento de Saúde e Serviços Sociais de Québec tem defendido o desenvolvimento e implantação, em toda a Província, de serviços integrados para famílias que apresentam negligência infantil (Québec, 2009). Os primeiros destinados para esse plano de serviço são as autoridades locais sob a responsabilidade direta do departamento bem como centros de recursos da família. 2 Os clientes secundários incluem serviços de creches, escolas e instituições que atuam nos domínios do emprego, da habitação e da violência contra as mulheres.

O Programa de Intervenção Ecossistêmica e Desenvolvimental para Crianças e Famílias (EDIP-CF²) (Lacharité, 2014) tem sido sugerido como um quadro de serviços integrados. A figura 1 ilustra a lógica subjacente a esse programa.

 

 

 

 

 

 

3.1 Objetivos do programa

Com base na fundamentação teórica descrita anteriormente, o EDIP-CF² destina-se a transformar a organização social em torno das crianças e pais. A expressão "mundo da negligência" capta essa visão da (do colapso da) organização social que caracteriza as situações de negligência infantil. Isso é realizado de duas maneiras. Primeiro, ele tenta garantir que as crianças são cercadas por adultos (incluindo figuras parentais, adultos do ensino primário, da família, rede sociais e profissionais diretamente em contato com a família), que sejam atentos e sensíveis às suas necessidades. Em segundo lugar, ele tenta possibilitar que os adultos possam construir uma visão compartilhada das necessidades de desenvolvimento da criança, capacidade dos pais de satisfazer às necessidades da criança, os recursos e obstáculos no ambiente na criança. Espera-se que essa visão leve à concordância sobre a partilha de responsabilidades e colaborações relacionadas com as crianças, no sentido de garantir à criança o bem-estar e desenvolvimento ideal.

3.2 População-alvo

O EDIP-CF² é particularmente apropriado para famílias nas quais ocorre ou há potencial para ocorrer negligência infantil crônica ou grave o suficiente para justificar intensiva ou prolongada intervenção, caracterizada pelos serviços integrados. Dois fatores-chave devem ser considerados na identificação das famílias. O primeiro é o grau de deterioração do ambiente familiar, em termos de sua capacidade de responder às necessidades de desenvolvimento da criança e para garantir o bem-estar dos pais. O segundo fator é a resposta das crianças e dos pais para os serviços correntes (creche, escola, saúde, serviços sociais): se a situação da família e da qualidade da relação entre os provedores da família e de serviços se deterioraram em longo prazo ou é necessária a retirada definitiva da criança da família de origem, o EDIP-CF² é contraindicado.

3.3 Atividades do programa

A estrutura das práticas sociais que o EDIP-CF² estabelece dentro do plano de serviço da família é baseada em quatro princípios. O primeiro é que a negligência infantil é um "colapso local", isto é, a dificuldade que apresentam os adultos em compreender e ter condições de satisfazer as necessidades diárias da criança.

Esse colapso mostra que as figuras parentais, além de exercerem inadequadamente as suas funções, também submetem seus filhos a condições de desenvolvimento precárias, imprevisíveis e hostis. Ele também pode referir aos profissionais envolvidos na "negligência" no ambiente social mais amplo, no qual os pais têm de exercer suas responsabilidades (o que, em caso de negligência, é muitas vezes árido, perigoso e inóspito) ou subestimar a natureza dos desafios relacionados com uma situação simples em situações complexas.

A natureza do "mundo da negligência" no qual a criança e os pais vivem, os profissionais e as outras figuras de apoio que tentam fornecer ajuda tornam particularmente difícil ser um "bom o suficiente" pai e um "bom o suficiente" profissional. Assim, as respostas à negligência infantil devem ser fundadas em estabelecer e manter relações funcionais com a criança e pais, compreender melhor suas experiências e manter cada pessoa envolvida informada.

O segundo princípio é que os pais (e filhos, se eles tiverem idade suficiente) devem ser participantes na análise da sua situação, e o planejamento da ação deve fluir a partir dessa análise. Muitas vezes, em casos de negligência, a reflexão sobre o desenvolvimento da criança, necessidades e bem-estar é essencialmente controlada por profissionais em contato com a família (Lacharité, 2009, 2011). O processo sistêmico parece estar em jogo aqui: quanto menos os pais são vistos como participantes ativos e espontâneos no pensamento coletivo sobre as necessidades desenvolvimentais da criança, mais os profissionais apropriam-se unilateralmente dessa função reflexiva. Revela-se que, nessas circunstâncias, os profissionais utilizam práticas colonizadoras cada vez mais invasivas, e os pais se sentem cada vez mais "desempoderados", que, por sua vez, leva a sentimentos de impotência, vergonha e injustiça (Lacharité, 2011). Assim, a construção de uma visão de constatação das necessidades da criança e as respostas mais oportunas para essas necessidades depende da criação de condições para que os pais e as crianças possam expressar ativamente seus pontos de vista e estabelecer um diálogo com os profissionais sobre estas questões.

Um terceiro princípio é que os pais devem estar conscientes de seu papel no desenvolvimento de seus filhos. Intervir na vida das figuras parentais nos casos de negligência não é primariamente uma questão de incutir competências parentais, mas sim de fornecer suporte conceitual e ético para o desenvolvimento de um relacionamento com a criança. Esse trabalho clínico com os pais recai principalmente na criação de espaços de diálogo (tanto com os profissionais como com outros pais), particularmente na realização de uma orquestração reflexiva e acoplada para apoiar o desenvolvimento da criança. A aquisição de novas competências e atitudes dos pais é parte desse trabalho de enriquecer a experiência parental.

O último princípio é que as crianças precisam de muito mais do que a sua família para desenvolver-se da melhor maneira. Como diz o provérbio africano, "É preciso uma aldeia para educar uma criança". As crianças que foram vítimas de negligência têm sido, muitas vezes, privadas de experiências positivas de desenvolvimento, não somente dentro de suas famílias, mas também em outras esferas (creches, escolas, etc.). Intervenções sociais, educacionais e clínicas com essas crianças são, portanto, inevitáveis. No entanto não se pode esquecer de que os pais devem ser estreitamente associados com o planejamento e implantação de tais ações.

A figura 1 apresenta as atividades específicas da EDIP-CF² que operacionalizam estes quatro princípios:

a) uma análise participativa das necessidades da criança a partir de um ecossistema e perspectivas de desenvolvimento;
b) planejamento participativo da ação necessária;
c) suporte profissional individualizado para a família, por um responsável pivô;
d) trabalho direto com as crianças;
e) grupos de pais;
f) trabalho individual com os pais relacionado com as suas necessidades pessoais;
g) treinamento pelos agentes comunitários em casa, a partir da comunidade local da família;
h) atividades coletivas para a família.

Essas atividades são organizadas hierarquicamente, de modo a maximizar a flexibilidade com que podem ser aplicadas. Assim, as primeiras quatro atividades são comuns a todas as famílias no programa, enquanto as quatro restantes fornecem intervenção mais intensiva nas famílias com maiores necessidades. São as análises das necessidades da criança e da situação atual da família que determinam as atividades pertinentes neste segundo nível para cada família. Assim, a intensidade da participação ao programa, isto é, o número de atividades em que as famílias fazem e a duração da participação no programa podem ser modulados conforme as necessidades verificadas na avaliação inicial e a evolução da situação da família. Em geral, as famílias participam no programa entre 18 e 24 meses.

3.4 O programa em ação

As famílias visadas pela EDIP-CF² estão geralmente em contato com um grande número de trabalhadores da linha de frente de vários tipos de serviços e formação profissional. Esse fato é um dos principais motivos por que a integração de serviços pode desenvolver uma prática melhor com essas famílias. Assim, o EDIP-CF² baseia-se na coordenação local de serviços que envolvem, no mínimo, profissionais de:

a) serviços de proteção à criança;
b) prevenção social e serviços de saúde; e
c) comunidade/centros de recursos familiares privados.

Os profissionais envolvidos principalmente no EDIP-CF² são assistentes sociais, educadores especializados e agentes comunitários.

Cada família encaminhada para o programa é destinada a um profissional capacitado (geralmente um assistente social ou um educador especializado) dos serviços da proteção à criança (quando uma criança está envolvida em programas como "Youth Protection Act 2007") (Québec, 2006) ou na saúde preventiva e serviços sociais. O profissional pivô é responsável pela execução dos quatro elementos descritos no centro do modelo lógico do programa (nível 1: intervenção básica, ver a figura 1). Se a liderança profissional e a família considerarem que outras necessidades devem ser abordadas e que o momento e as condições são bons para atender a essas necessidades, eles podem recorrer a uma série de atividades descritas no nível 2 (a intensificação da intervenção, ver a figura 1). Esses serviços ou recursos adicionais são fornecidos por outros profissionais (ou trabalhadores leigos). Esses novos trabalhadores e o profissional destinado são obrigados a coordenar suas ações com as famílias. Essa mudança para o nível 2 do modelo não é apenas um ato de encaminhar os filhos ou os pais a outros trabalhadores ou organizações formais de serviços. É, antes, um "convite" para esses profissionais trabalharem com o pivô responsável e a família. Os serviços integrados recaem sobre o convite de uma abordagem de parcerias interinstitucionais.

Em cada território, um comitê local tem a função de coordenar a implantação do programa e as parcerias interinstitucionais ao redor das famílias. Essa comissão é composta por trabalhadores e gestores diretamente envolvidos com as famíliasalvo.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, foram apresentados os fundamentos teóricos dos serviços de integração destinados à negligência infantil em Québec. Foi argumentado que a nossa compreensão de negligência deve ser expandida para incluir não apenas a observação das dificuldades nas relações entre pais e filhos, mas também as relações sociais entre crianças/pais e todas as outras pessoas em seu ambiente que influenciam direta ou indiretamente as circunstâncias de suas vidas. Esse modelo propõe que a negligência das crianças não é um problema que pode ser capturado de forma adequada com expressões como "incapaz", "incompetente" ou "maus pais". O modelo também propõe que as intervenções nessas situações precisam atuar não apenas no desenvolvimento/restauração de habilidades e conhecimentos dos pais, mas também na coordenação de ações de família com os de várias outras pessoas, da comunidade local (incluindo a rede informal da família e do profissional/redes institucionais em que as crianças e os pais são participantes ativos).

Além disso, o modelo destaca o fato de que, em situações de negligência infantil, existem várias restrições que impedem relações pai-filho e relações de família na comunidade. Essas restrições devem ser abordadas e reveladas pelas famílias e as pessoas que são encaminhadas para ajudá-las.

O artigo também descreve brevemente os principais elementos de um programa que tem como objetivo abordar os desafios ecossistêmicos e de desenvolvimento que estão presentes na negligência infantil. A execução do modelo de intervenção descrito neste artigo coloca desafios significativos pontuais aos sistemas de proteção da criança. Não menos importante é a transformação da visão dos profissionais para as crianças e pais que enfrentam negligência e a natureza da relação que eles constroem com eles; mas isso é outra história.

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Texto recebido em 30 de junho de 2015 e aprovado para publicação em 15 de setembro de 2016.

 

 

*Professor doutor do Département de Psychologie, Université du Québec à Trois-Rivières, Trois-Rivières, Québec, Canadá.
1 O artigo original em inglês foi publicado na revista Child Abuse Review, jornal da associação Britânica para o Estudo e Prevenção do Abuso e Negligência de Crianças, ano de 2014. Esta versão foi traduzida por Mara Silvia Pasian, pós-doutoranda do grupo de pesquisa do autor.E-mail: marasilvia123@yahoo.com.br.
2 No Canadá, a prestação de serviços está sob a jurisdição das províncias e não do governo federal. Assim, a Província de Québec tem um departamento que supervisiona a saúde física e mental, e serviços sociais (incluindo os serviços de proteção à criança, serviços para jovens infratores, abuso de substâncias, serviços de reabilitação e contra a violência de mulheres), um departamento da família, que supervisiona serviços de cuidados diários e serviços comunitários para as famílias, um departamento de educação, que supervisiona as escolas, e um departamento do emprego e da solidariedade social, cujas responsabilidades incluem o apoio à renda. A Província de Québec está dividida em 93 autoridades locais.

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