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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.25 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2019

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2019v25n1p176-198 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2019v25n1p176-198

 

Educação e ascensão social: produção de sentidos nos discursos de egressos de um programa social da iniciativa privada

 

Education and social ascension: production of meanings in the discourses of graduates from a social program sponsored by private companies

 

La educación y la ascensión social: la producción de significados en los discursos de los egresados de un programa de iniciativa privada

 

 

Eliane Cristina da Silva*; Luciana Albanese Valore**

 

 


Resumo

Esta pesquisa objetivou verificar as relações que se produzem entre educação e ascensão social no discurso de egressos de um programa, sobre suas trajetórias acadêmico-profissional e experiência neste. Esses egressos fizeram parte de um programa social da iniciativa privada, realizado numa capital da região Sul do País, cujo público consistia em estudantes de escolas públicas, de baixa renda e com bom desempenho acadêmico. A investigação foi feita com o método da análise institucional do discurso e se deu em duas etapas: quantitativa, por meio de questionário sobre informações educacionais e profissionais; e qualitativa, com a realização de entrevistas semiestruturadas com parte desse público. Como resultados principais, verificou-se, mediante índices como escolaridade, inserção profissional e ampliação do acesso a recursos, a ascensão socioeconômica dos participantes. Concluiu-se que as transformações decorrentes das oportunidades educacionais atingiram mais o âmbito individual e familiar dos egressos, encontrando, porém, desafios para a transformação social.

Palavras-chave: Programas sociais. Trajetória profissional. Análise de discurso.


Abstract

This research aimed to see the relations produced in the interconnection of education and social ascension in the discourse of former participants of a program about their academic and professional careers, as well as their experience in it. They were participants of a social program funded by the private sector, held in a state capital in the southern part of the country. They were low-income students from public schools with good academic performance. The investigation followed the Institutional Discourse Analysis method and took place in two steps: quantitative, through a questionnaire about educational and professional information; and qualitative, with the completion of semi-structured interviews with part of that public. Within the main results, based on indices such as education, employability and increasing access to resources, there was the participants' socioeconomic improvement. As a conclusion, it was detected that changes based on the educational opportunities reached more individual and family context of the out-coming participants although meeting challenges for social transformation.

Keywords: Social programs. Professional career. Discourse.


Resumen

Esta investigación tuvo por objetivo verificar las relaciones que se producen entre educación y ascensión social en los discursos de los egresados de un programa acerca de sus trayectorias académica y profesional, y también sus experiencias en referencia al mismo. Esos egresados hicieron parte de un programa social de iniciativa privada, realizado en una capital de la región sur del país, cuyo el público consistía en estudiantes de bajos recursos y con excelente rendimiento académico. La investigación utilizó la metodología del "Análisis del Discurso Institucional" y ocurrió en dos etapas: cuantitativa, suministrando a los participantes cuestionarios auto respondidos referidos a su educación y profesión; y cualitativa, a través de entrevistas semiestructuradas con algunos alumnos. Como principales resultados, se verificó el aumento socioeconómico de los participantes a través de índices como: educación, inserción laboral y crecimiento de acceso a recursos. Se concluyó que las transformaciones resultantes de oportunidades de educación tuvieron éxito en contexto individual y familiar de los egresados, pero enfrentan desafíos para la transformación social.

Palabras clave: Programas sociales. Carrera profesional. Discurso.

1 INTRODUÇÃO

Desenvolvimento social é um dos principais desafios de sociedades tão desiguais como a do Brasil, em que há uma diferença socioeconômica colossal entre os mais ricos e os mais pobres, onde condições econômicas têm efeitos perceptíveis sobre os modos de vida da população de baixa renda. Um dos caminhos apontados para amenizar essas disparidades e promover o desenvolvimento social é o investimento em educação, chancelado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em meados dos anos 2000, com o estabelecimento dos oito objetivos de desenvolvimento do milênio. Os ODM, como são conhecidos, têm o apoio de 191 nações e apresentam como uma das principais metas a "Educação básica de qualidade para todos" (ODM Brasil, 2019). Nesse pacto pela educação, ao longo desses anos, o País demonstrou alguns avanços no que diz respeito ao acesso e rendimento escolar de crianças e jovens, sendo que, até 2009, por exemplo, 75% dos jovens que atingiram a maioridade conseguiram concluir o ensino fundamental, de acordo com dados dos ODM. Apesar do avanço, reconhece-se que ainda há muito a ser feito nessa área, pois o acesso à escolarização foi somente o primeiro passo. Tal dado, inclusive, demonstra o quanto, no Brasil, historicamente a educação tem estado ao alcance somente de uma parcela da população e confirma sua universalização como algo bastante recente.

Um dos fatores que contribuíram para esse entendimento, de que era necessário ampliar o acesso da população à educação, foi a relação que se construiu entre educação, trabalho e desenvolvimento social, principalmente a partir do processo de industrialização do País. Essa concepção é defendida pela teoria econômica da educação, ou teoria do capital humano, que, de acordo com Freitag (1986), é o processo por meio do qual se incrementa a quantidade de pessoas cuja posse de educação, habilidades e experiência, adequadas ao desenvolvimento industrial, torna-se indispensável para o desenvolvimento político e econômico de um país. Para os estudiosos da economia da educação, existe uma "taxa de retorno social e individual", uma vez que os investimentos do Estado na educação, em nome de um desenvolvimento nacional, produzem um crescimento que beneficiaria tanto a nação quanto o indivíduo, e dividido de maneira justa entre este e o Estado (Freitag, 1986, p. 28).

A partir dessa associação entre educação e desenvolvimento social, e da necessidade de incremento do capital, vários esforços foram empreendidos no sentido de ampliar o acesso da população à escolarização, melhorar a qualidade do ensino e, seguindo essa lógica, contribuir com o desenvolvimento do País. Além das políticas governamentais, a partir da década de 1990, várias organizações não governamentais e instituições privadas iniciaram algumas ações, as quais foram estruturadas e nomeadas de projetos e, ou, programas sociais.3 Estes, de modo geral, assumiram a intenção de romper o ciclo da pobreza, garantindo aos indivíduos o acesso a direitos e a oportunidades.

Para além do clichê de romper o ciclo da pobreza, esses projetos sociais se constituem na prática por vários discursos. Eles abordam e instituem modelos de vida considerados aceitáveis socialmente, qual seja uma trajetória construída pelo esforço individual, sustentada por uma boa base educacional e uma força produtiva direcionada para um trabalho que contribua com o bom funcionamento e bem-estar da sociedade. Partem de um entendimento do fenômeno social pobreza como um mal a ser sanado com ações educativas e moralizadoras, e validam e reproduzem um modo de vida único, aquele que mantém a estrutura de funcionamento atual de nossa sociedade. Desconsideram a discussão sobre os aspectos dessa mesma estrutura que justamente produzem a pobreza. Pretendem quebrar o ciclo, mas não questionam o mecanismo que o produz e o mantém em funcionamento.

Importante dizer que esses discursos são produzidos para uma parcela específica da população, ou seja, os cidadãos de baixa renda e, ou, considerados em vulnerabilidade social. Seriam eles os destinatários dessas ações educativas e moralizadoras, pois parecem representar o atraso no desenvolvimento do País. Se até pouco tempo atrás eles não eram nem considerados aptos a sentar num banco escolar, hoje eles não só podem como devem estar lá, porque agora fazem parte de uma estratégia do sistema econômico, sinalizada anteriormente como a "taxa de retorno individual e social". Para a parcela da população com renda mais elevada, a chamada classe alta, esses discursos não incidem, porque a riqueza já está lá, eles estão no jogo e, mais do que isso, estabelecendo as regras deste.

Tendo em vista tal cenário, esta pesquisa buscou focar a lente num dos maiores públicos atendidos pelos programas sociais: os jovens de baixa renda. A escolha pela juventude pobre decorreu dos índices sociais que preocupam os órgãos governamentais quando se fala em desemprego, violência, uso de drogas, entre outros, assuntos que, de alguma forma, acabam relacionados a essa condição juvenil. Esses temas também são preocupação dos próprios jovens, conforme atesta a pesquisa Juventude brasileira e democracia: participação, esferas e políticas públicas, a qual mostra que os itens de maior atenção são a violência, concebida como sinônimo de criminalidade e falta de segurança; o desemprego e a educação, esta última entendida como uma possibilidade de mudança de status socioeconômico e futuro promissor; além da miséria, pobreza e desigualdade social (Sallas et al., 2008, p. 30). Vale dizer que a condição socioeconômica desse público é o que dá o tom da preocupação dos governos, pois, para os jovens de classe média e alta, ainda que eles também estejam envolvidos com criminalidade ou drogadição, por exemplo, o lugar que esse público ocupa na sociedade é diferente do lugar dos outros jovens. Enquanto os mais pobres são associados aos problemas sociais e ao atraso no desenvolvimento, os mais abastados ocupam o lugar de futuro do País, numa reprodução das estruturas vigentes.

Ao se considerarem essas preocupações, observou-se uma intensa proliferação dessas iniciativas nas comunidades de baixa renda, a ponto de ser criada, inclusive, uma terminologia para descrever seu público: os "jovens de projeto", alcunha que se tornou objeto de reflexão de diversos pesquisadores (Castro, Abramovay, Rua, & Andrade, 2001; Novaes, 2006; Almeida & Eugênio, 2006; Cechetto, 2006; Souza, 2009 apud Silva Sobrinho, 2012) que "retratam realidades presentes na vida de uma parcela bastante significativa de jovens pobres no Brasil, especialmente, os residentes de territórios populares" (Silva Sobrinho, 2012, p. 10). Tais pesquisadores afirmam que a existência desses projetos em zonas de maior vulnerabilidade social faz ampliar o campo de negociação com a realidade, considerando que eles podem contribuir com a diminuição de algumas marcas de exclusão pelo aumento da escolaridade, capacitação profissional, da consciência étnica, de gênero, entre outros.

Os projetos e programas sociais adotam diversas estratégias de atuação, mas muitos deles coincidem na premissa do desenvolvimento social pela educação, sendo este o exemplo da instituição parceira desta pesquisa, cujo programa é destinado a estudantes de baixa renda da cidade de Curitiba e região4 e tem como slogan "Um instrumento de melhoria social". O programa, que doravante será denominado "Programa A", para fins de preservação da identidade da instituição, foi idealizado há mais de 20 anos por dois empresários e hoje é financiado por um conjunto de empresas privadas em diversas cidades brasileiras. Sua metodologia consiste em selecionar estudantes de baixa renda das escolas públicas, oferecer suporte educacional para além dos recursos governamentais disponíveis, priorizando a escolarização formal e o ingresso no mundo do trabalho, e desenvolver o senso de cidadania, para que eles possam ajudar, no mínimo, outros dois estudantes no futuro, da mesma forma como foram auxiliados.

Os requisitos para ingresso dos estudantes envolvem a apresentação de boas notas, mínimo de 7,0 em todas as disciplinas e em todos os anos; frequência escolar de pelo menos 90% residir na cidade onde ocorrem as atividades do Programa, ou nas circunvizinhanças; família comprometida com os estudos; e criança com boa conduta em sala de aula. Somente estudantes do 6º ano do ensino fundamental podem participar. Para proceder à escolha dos candidatos, sistematizaram um processo seletivo composto de cinco etapas: inscrição e entrega de documentos, prova de conhecimentos gerais em Matemática e Língua Portuguesa, dinâmica de grupo, entrevista e visita domiciliar. O Programa afirma buscar talentos nas escolas públicas que, sem o adequado suporte educacional do governo, acabariam não desenvolvendo suas potencialidades.

Após o ingresso, os estudantes são transferidos para escolas privadas, recebem material e uniforme escolar, vale-transporte para a escola e cursos complementares, passam a frequentar reforço das disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática e outras atividades, como curso de Língua Inglesa, oratória e orientação vocacional. Os pais também têm de participar de reuniões periódicas e cursos, bem como apresentar os boletins escolares dos filhos ao término das avaliações, para verificação das notas e frequência. A instituição social mantenedora oferece suporte aos estudantes selecionados até o término da graduação e, em alguns casos, até a pós-graduação. Como requisitos para permanência do estudante no Programa e consequente acesso a essas oportunidades estão a manutenção da média escolar e frequência acima de 90% na escola e nos cursos e atividades ofertadas, bem como a boa conduta e participação da família. Para proceder à sistematização de todas as atividades, conta com uma equipe formada por professores, pedagogos, psicólogos e assistentes sociais, além de uma rede de parceiros institucionais, como as escolas privadas de ensino fundamental e médio, universidades, escolas de idiomas, entre outros.

O "Programa A" já foi objeto de estudos de outros pesquisadores, como Diniz (2007), a qual realizou uma pesquisa para investigar o desempenho de alunos oriundos dos meios populares. Diniz entrevistou estudantes de uma franquia do programa para investigar as razões que levam seus alunos a terem bom desempenho (Diniz, 2007), sendo que uma de suas conclusões refere-se à forma como o Programa é visto por estes: como uma oportunidade de ascensão social. A outra foi realizada em 2001 para avaliação dos níveis de escolarização e profissionalização de 629 jovens de Curitiba e região. O objetivo era verificar o efeito desse programa social pela comparação com um grupo controle de estudantes não participantes do programa, mas com perfil escolar e condições socioeconômicas semelhantes às dos jovens nele inclusos. De maneira sucinta, as pesquisas constataram que os jovens atendidos pelo Programa, em comparação ao grupo controle, estavam com mais anos de estudos e sem interrupção, tendo inclusive um índice de ingresso no ensino superior de 69,5% já os estudantes do outro grupo denotaram descontinuidade nos estudos e menor índice de presença no ensino superior, 27% (Diório & Gomide, 2004).

Dentre os diversos programas sociais existentes na cidade de Curitiba e voltados à formação de jovens, optou-se por este devido a algumas de suas características, como ser uma das iniciativas pioneiras nessa área na cidade; fazer um acompanhamento de longo prazo de seus participantes, do ensino fundamental ao superior; e desenvolver atividades com foco em formação humana e cidadã. O programa atua em Curitiba e região e tem franquias sociais em outros Estados, como Bahia, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Espírito Santo. Para este estudo, foi selecionado o programa realizado em Curitiba e cidades metropolitanas.

O total de atendidos em Curitiba e região até hoje somam 415 estudantes, sendo que destes 209 já obtiveram um diploma universitário. O público-alvo desta pesquisa foram os egressos do Programa, isto é, os jovens que se graduaram no ensino superior. Com método de pesquisa misto, a pergunta norteadora do estudo foi: que relações se produzem no discurso dos egressos entre o Programa e suas trajetórias acadêmica e profissional? Com essa pergunta objetivou-se:

a) analisar os discursos dos jovens egressos do Programa A e, neles, as relações que são produzidas entre sua trajetória acadêmica e profissional e vivência no programa;
b) que efeitos atribuem ao Programa A em relação a seu status atual e de suas famílias de origem; e
c) que sentidos atribuem à trajetória imaginada sem o programa.

Assim, este estudo espera trazer contribuições à Psicologia e aos profissionais que atuam com jovens, educação e programas sociais, ao possibilitar reflexões sobre a trajetória acadêmico-profissional desses egressos bem como a relação que fazem com a experiência no Programa. Pretende-se também que esta pesquisa venha a se somar a outros estudos ao apresentar como diferencial metodológico a análise institucional do discurso (AID), que dá o tom inédito da proposta, assim como ampliar a discussão sobre os efeitos da educação em processos de ascensão social e desvelar a visão de sociedade subjacente nesse processo.

2 MÉTODO

A pesquisa se dividiu em duas etapas: a primeira quantitativa e a segunda qualitativa. Para a primeira fase, foi elaborado um questionário on-line, cujas perguntas eram fechadas e de múltipla escolha. Esse instrumento levantou informações sobre o nível de escolaridade e inserção profissional dos egressos do programa social pesquisado, considerando que essas informações podiam dar pistas sobre o atingimento dos objetivos do Programa A, qual seja "ser um instrumento de melhoria social". O contato entre as pesquisadoras e os egressos foi mediado pela equipe do Programa, via recursos tecnológicos, como e-mail e redes sociais. No contato inicial, foi realizada uma breve apresentação do estudo e, em seguida, disponibilizado o link da pesquisa na plataforma Google Drive para todos os integrantes do grupo. Antes de responder ao questionário, os convidados tinham acesso ao termo de consentimento livre e esclarecido, com todas as informações estabelecidas pelo Comitê de Ética em Pesquisa na primeira página do questionário. Após o consentimento, os egressos respondiam anonimamente às questões.

Os dados coletados foram sistematizados e analisados por meio de estatística descritiva simples e apresentados em números absolutos e percentuais. Cabe registrar que o público-alvo desta pesquisa eram todos os egressos do programa social, um universo de 210 pessoas; contudo, até o momento da aplicação do questionário, sua equipe tinha o contato de 145 egressos. Destes participaram da pesquisa 34 formados, perfazendo uma amostra de 23,4%.

A outra etapa da pesquisa, qualitativa, consistiu na realização de entrevistas semiestruturadas individuais com uma parte dos egressos. Esse grupo foi selecionado de acordo com o critério de estarem formados no ensino superior havia, no mínimo, três anos, por julgar que esse público teria participado de todo o ciclo do Programa e com período de relativo distanciamento dessa vivência. Considerando que o Programa formou sua primeira turma em 2002, foram entrevistados dez egressos que se graduaram até 2011. Com base na listagem fornecida pela instituição, foi feito contato com os egressos via e-mail para apresentação dos objetivos da pesquisa e verificação do interesse e disponibilidade de participação. As entrevistas tiveram a duração aproximada de uma hora, sendo que as perguntas abordavam a trajetória dos egressos desde a entrada no Programa, o processo seletivo, as principais atividades educacionais desenvolvidas, percurso acadêmico e profissional, e como percebiam e avaliavam essa experiência. Essa etapa ocorreu entre os meses de abril e setembro de 2015, desde o contato com os egressos, agendamento, realização da entrevista, transcrição e análise. Todos os participantes tiveram acesso ao termo de consentimento livre e esclarecido. Foram informados sobre a preservação de suas identidades na pesquisa e concordaram com a gravação do áudio. Na sequência, os áudios foram transcritos pela pesquisadora e todo o material analisado utilizando como fundamento metodológico a AID (Guirado, 2000).

A AID, como também é conhecida, foi elaborada pela professora doutora Marlene Guirado, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Os princípios que fundamentam essa abordagem teórico-metodológica são a psicanálise freudiana, a arqueogenealogia de Michel Foucault e a análise do discurso francesa de Dominique Maingueneau. A autora se refere a esse método como uma "estratégia de pensamento" que opera a partir de um "corte que faz pensar", isto é, considera que o delineamento de uma temática, tal qual realiza esse estudo, é um modo de se fazer Psicologia que se ancora nos conceitos "instituição", "discurso" e "sujeito". O primeiro conceito, "instituição", é concebido com base nas ideias do linguista francês Guilhon Albuquerque e entendido como o "conjunto de relações sociais que se repetem e, nessa repetição, legitimam-se" (Guirado, 2010, p. 45), ou seja, para além dos conceitos de instituição como algo constituído juridicamente e, por vezes, concreto, na AID, ela é o que vai se produzindo nas relações e se legitimando por meio de suas repetições, dando um efeito de reconhecimento da naturalidade e de desconhecimento da relatividade das verdades produzidas. Assim, neste estudo, tratou-se de diversas instituições, como o Programa pesquisado, escola, trabalho e reconhecimento social, por exemplo. Necessário dizer que essas instituições têm origem nos discursos, que é outro conceito-base da AID: "Um ato que supõe relação entre posições [. . .] que produz e não apenas reproduz uma realidade exterior" (Guirado & Lerner, 2007, p. 225). Nesse sentido, discurso não é somente uma representação de ideias, de pensamentos ou do inconsciente, ele ultrapassa essa função de mensageiro. Discurso é, pois, uma (form)ação, é verbo, gera efeitos, subverte lugares e expectativas e, portanto, produz subjetividades.

Ressalta-se que esse conceito implica numa mudança de perspectiva, pois, segundo Guirado, "Dizer que o discurso é ato dispositivo é acentuar seu caráter de dizer, em vez de acentuar o dito"; a atenção recai sobre os modos de organização textual e sua articulação com os lugares sociais que são ocupados, que se delineiam enquanto se discursa. E com ele se constitui um outro conceito da AID, o de "sujeito" como "uma organização singular, histórica, de um espetacular entrecruzamento de discursos, enunciações, matriciadas em relações institucionais" (Guirado, 2010, p. 135). Um sujeito que não é dado a priori, mas que se constitui no momento mesmo da enunciação, produzindo-se e reproduzindo nos discursos, um processo contínuo.

Instituição, discurso e sujeito permeiam toda a análise dos resultados dessa pesquisa e se fazem ver mais claramente na apresentação de alguns trechos das entrevistas realizadas. Ressalta-se que o recorte operado nos extratos que seguem foi feito de acordo com os objetivos deste estudo, obedecendo na íntegra a forma como as falas foram ditas, exceto pelo uso de cortes, sinalizados pelos colchetes. Vale registrar que todo o cuidado foi tomado visando a preservar a identidade dos participantes.

3 RESULTADOS

A amostra dos participantes da pesquisa, conforme dito anteriormente, foi de 23,4%, uma adesão baixa e que corroborou a dificuldade que o próprio Programa A encontra em manter contato com os egressos, não tendo os dados de referência da totalidade dos formados. Ao longo da pesquisa, em ambas as fases, verificou-se uma constante entre os respondentes: o sentimento de dívida para com o Programa que, por vezes, apareceu como o desejo de retribuir a oportunidade, o que leva a pensar que participar da pesquisa pode ter sido uma maneira de reparar isso. Devido a essa característica da amostra, sinaliza-se um possível viés a ser considerado no estudo.

Para análise dos dados coletados na fase quantitativa, realizou-se uma categorização de acordo com a natureza das perguntas, sendo que a primeira se refere a informações sociodemográficas, tais como faixa etária, sexo, situação da residência, e escolaridade da mãe e do pai. De um total de 34 respondentes, a amostra se configurou predominantemente feminina (79,4%), algo que é compreensível, considerando que, do total de estudantes atendidos pelo Programa, 76% são mulheres.

Com relação à faixa etária observou-se uma variação entre 22 e 34 anos, sendo que 41% encontravam-se entre 31 e 34 anos; 30%, dos 22 aos 25 anos; e 29%, dos 26 aos 30 anos. Observou-se, por meio desse dado, que houve a participação tanto de recém-graduados como dos veteranos do Programa. Sobre a situação da residência atual, 44,1% afirmaram ter imóvel próprio e, ou, financiado; 29,4% residiam com os pais e, ou, familiares; 23,5% moravam de aluguel; e 2,9%, em imóvel cedido. Interessante compartilhar que alguns dos que moravam com pais e familiares deixaram registrado no questionário que tinham imóvel financiado, mas que, na época da coleta dos dados, não o ocupam.

Outro dado pesquisado foi a escolaridade dos pais, dividindo-se em escolaridade materna e paterna.

 

 

A escolaridade da mãe, em sua maioria (41,2%), encontrava-se no nível de ensino médio completo. Por outro lado, atenta-se para o dado de que 35,8% tinham o ensino fundamental incompleto. O acesso ao ensino superior foi obtido por 8,8% das mães, concluído ou incompleto. Quadro semelhante foi observado na escolaridade paterna, conforme o gráfico a seguir.

 

 

O nível de escolaridade do pai também se mostrou, em sua maioria, localizado entre o ensino médio completo (39,4%) e o ensino fundamental incompleto (21,2#37). O ensino superior, completo ou incompleto, representou 9,1#37 dos pais. Ressalta-se também que 6,1#37 dos respondentes não souberam informar. Esses dados sobre escolaridade dos pais também surgiram espontaneamente nas entrevistas, pois muitos relataram terem sido os primeiros de sua família de origem a ingressar no nível superior, visto que seus pais não tiveram acesso, e esse relato é caracterizado como um ganho que o Programa A proporcionou aos participantes.

Uma outra categorização foi realizada para a investigação sobre a vida acadêmica, com questões sobre em que tipos de instituições cursaram o ensino médio e superior, realização de pós-graduações e vivências internacionais. Atentase para o fato de que os estudantes ingressaram no Programa ainda durante o ensino fundamental, e muitos permaneceram na escola pública até o fim desse ciclo. Depois disso, foram direcionados a escolas particulares conveniadas ao Programa ou prestaram concurso para ingresso em instituições públicas que ofertavam ensino médio.

maior parte dos estudantes (94%) cursou o ensino médio em instituições privadas, as quais eram estabelecidas pelo Programa de acordo com a rede de parceiros disponíveis em cada ano. Apenas 6% o cursaram em instituição pública, escolha essa feita pelos próprios alunos. Nas entrevistas presenciais, alguns relataram ter optado pela instituição pública, pois algumas delas ofertavam ensino profissionalizante concomitante ao ensino médio. Por outro lado, a situação se mostrou um pouco diferente quando questionados sobre a instituição em que cursaram a graduação, pois, apesar de se observar a predominância da escolarização em instituição privada (59%), por meio de instituições parceiras do Programa as quais davam bolsa de estudos integral aos estudantes, 41% dos respondentes ingressaram em universidades públicas.

Com relação à pós-graduação, 67,2% afirmaram que cursam ou já cursaram uma especialização. Sobre o tipo de pós-graduação, verificou-se que 73,9% afirmaram ter especialização/MBA; 8,7% cursaram especialização/MBA e mestrado; 13% assinalaram a opção mestrado; e 4,3%, o doutorado. Com esses dados, verifica-se que muitos deram continuidade à vida acadêmica após a graduação. Além do aspecto acadêmico, questionou-se também quem já teve uma vivência internacional, ao que 53% afirmaram que não e 47% já viajaram a algum outro país. Sobre as razões que levaram estes últimos a viajarem, verificouse que o lazer e o turismo apareceram em primeiro lugar, com 43,5% a opção trabalho, com 30,4% intercâmbio apareceu como opção em 21,%% dos casos; e, para 13%, aperfeiçoamento de língua estrangeira.

Outro dado investigado foi com relação à inserção profissional dos egressos. Verificou-se que 94% dos respondentes estavam empregados no momento da pesquisa, e o vínculo empregatício se distribuiu da seguinte maneira:

 

 

Esse item aponta que 52,9% tinham vínculo empregatício com instituição privada; 29,4%, com instituição pública; e 11,8% seguiram o caminho do empreendedorismo.

Além da pesquisa sobre o status em que se encontravam os egressos no que diz respeito à vida acadêmica e profissional, este estudo contemplou também a fase qualitativa, a qual buscou analisar, entre outros, os efeitos atribuídos ao Programa em relação a seu status atual e de suas famílias de origem; e como seria a trajetória imaginada sem este. A amostragem foi composta por 10 entrevistados, sendo 4 homens e 6 mulheres. A maioria ingressou em meados da década de 1990, período em que o projeto foi criado e iniciou sua divulgação em diversas escolas públicas da cidade de Curitiba e Região Metropolitana.

O primeiro objeto de investigação dizia respeito aos efeitos atribuídos ao Programa A em relação ao status atual. Ao serem levados a essa reflexão, os entrevistados mencionaram palavras como sucesso, ser bem-sucedido e conforto.

"Enxergo como uma trajetória de sucesso. Hoje ajudo a minha família, moro no meu próprio apartamento, tenho reconhecimento no meu trabalho, consigo realizar os meus sonhos pessoais e profissionais. Fui o primeiro a ter ensino superior na minha família [. . .]" (Flávio)5

"Eu acho que eu tive muito sucesso, mas eu tenho potencial pra muito mais" (Emily). "Olha [. . .] Não posso dizer assim que eu sou suuuuper bem-sucedida, 'olha que exemplo de menina', mas eu tô bem confortável assim com [. . .] sabe, com a minha escolha, com o que tô fazendo hoje" (Daniela).

Nos extratos acima, verificou-se que os entrevistados Flávio e Emily relacionaram a seu status atual e trajetória a palavra "sucesso", ainda que esta última acrescentasse a ideia de que tinha "potencial pra muito mais". Já no trecho selecionado de Daniela, ela iniciou a frase com uma negação, dando a entender que isso seria o esperado dela, "super bem-sucedida". Esse recurso de negação indica a presença de outros interlocutores em seu discurso, ou seja, seu modo de delinear o seu lugar num dado discurso recorrente, o de que os egressos são bem-sucedidos, afirmando que ela não compartilhava dessa verdade, mas que se sentia "bem confortável" com suas escolhas. Interessante notar que Daniela colocou sucesso e conforto como conceitos distintos em seu discurso: não se tinha sucesso, mas se tinha conforto.

Outra relação entre o Programa e a trajetória acadêmico-profissional se produziu quando foram questionados sobre como imaginavam que estariam hoje se não tivessem participado do Programa:

"Eu acho que poderia ter sido bom também, mas poderia ter sido mais difícil ou ter levado mais tempo pra eu me colocar no trabalho, pra eu ter uma situação profissional mais estável, pra estudar inglês, idiomas que não é algo barato e, na educação que a gente tem no Brasil, é difícil" (Simone).

"Acredito que, se não existisse o [Programa], eu concluiria também o ensino superior, entretanto talvez com maiores dificuldades [. . .] Com menos qualificação profissional [. . .] Muito provavelmente em uma faculdade pior e hoje estaria em um emprego que pudesse demorar mais a me proporcionar algumas conquistas" (Flávio).

"Não imagino que eu não tivesse conseguido cursar uma faculdade e tal, mas o caminho a trilhar teria sido muito mais tortuoso porque a gente, com o auxílio do [Programa], conseguiu [. . .] é [. . .] se graduar no período normal" (Júlia).

Os entrevistados Simone e Flávio, ao falarem sobre como teria sido se não tivessem participado do Programa, usaram expressões que faziam relação com o tempo, como "demorar mais" e "levar mais tempo", pois, como relatou Julia, haveria um tempo para se graduar, um "período normal", uma naturalização do que seria esperado de idade para terminar o ensino superior. Atenta-se também para a fala de Simone ao mencionar que "teria sido mais difícil" e ao elencar atividades que foram oportunizadas pelo Programa, como curso de idiomas, por exemplo, e ao se referir à educação no país como um fator que pudesse tornar a trajetória difícil também. Nesse extrato, observou-se a reprodução de uma instituição, a "educação no Brasil", e a legitimação do que se pensa a respeito dela, "é difícil".

Dessa maneira, uma imagem que se configurou nos discursos dos entrevistados a respeito do Programa foi a de um normalizador de trajetória, ou ainda, um acelerador de carreiras, conforme se verifica a seguir:

"Então [. . .] Hoje depois de tudo isso acontecer, do [Programa] ter me dado essa oportunidade de estudar, e dado as ferramentas pra eu chegar onde queria [. . .] Ter tido as oportunidades profissionais que eu tive [. . .] é [. . .] E hoje eu vejo onde eu consegui chegar, a sensação é extremamente boa, me gera uma gratidão enorme pelo [Programa], pela minha família, pelos meus pais [. . .] E eu vejo que evoluí muito [. . .] Cheguei muito antes do que eu imaginava onde eu gostaria [. . .]" (Jonas).

"Acho que as coisas poderiam ter sido mais lentas [. . .] Acho que o [Programa] fez as coisas acontecerem mais rápido, né. Então, com 21 anos, eu tava formada na faculdade, com a profissão e no mercado de trabalho" (Ester).

Jonas relacionou sua trajetória e status atual com "as ferramentas" que o Programa lhe deu, pois "Eu vejo que evoluí muito.", e produziu uma relação entre tempo e espaço, "Cheguei muito antes do que eu imaginava onde eu gostaria", a evolução no sentido de deslocamento de lugar na carreira, "oportunidades profissionais". Da mesma forma, enunciou Ester, ao relatar que as coisas aconteceram "mais rápido", fazendo um comparativo com o que ela imaginava que poderia ter sido sem o Programa.

Além da relação com o tempo, alguns entrevistados fizeram menção a alguns elementos que eles imaginavam que teriam em sua vida caso não participassem do Programa:

"Então [. . .] A gente até brinca às vezes [. . .] Ééé meninas, porque, assim, a gente até tem, às vezes, um contato ou vê no [rede social] gente da época, daquela época dos colégios estaduais, e uma galera grávida, uma galera [. . .] [risos]. Ó, a gente podia tá caixa de mercado lá, com três filhos lá [. . .] [risos], e a gente brinca, mas aquela brincadeira meio sarcástica que a gente sabe que pode ser. A realidade é muito ruim, assim, do colégio, sabe, de drogas, de cigarro, de maloqueiro" (Mônica).

"Então eu acho que dificilmente eu teria passado no primeiro, segundo [. . .] [vestibular]. Terminando o ensino médio, eu já ia ter que começar a trabalhar, porque isso era assim, o processo natural na minha família" (Júlia).

A participante Mônica fez comparações com situações que ela observou de algumas pessoas com as quais ela conviveu na época do colégio público, para imaginar como teria sido sua vida sem o Programa. Essas comparações foram classificadas por ela como "brincadeiras meio sarcásticas", denotando um juízo de valor nessas escolhas. Ao produzir a imagem de uma pessoa com filhos e "caixa de supermercado" e atribuir isso a uma "realidade muito ruim do colégio", fez uma relação de causa e efeito, o que, na AID, chama-se de naturalização. Esse conceito inclusive foi relatado por Júlia, algo que ela desenhou como o "processo natural na minha família", isto é, o fato de terminar o ensino médio e ingressar no mercado de trabalho sem cursar o ensino superior. Ambas as entrevistadas reproduziram discursos a respeito da trajetória de jovens pobres, os quais foram relacionados à dificuldade de ingressar na universidade, necessidade de ter renda própria e a constituição de famílias numerosas.

4 DISCUSSÃO

Um dos principais interesses deste estudo foi compreender as relações produzidas entre educação e ascensão social por meio da pesquisa com um público que foi participante de um programa social de cunho privado e, a partir disso, pensarmos nos efeitos de tais relações numa sociedade reconhecidamente desigual como a brasileira. Para tanto, apresentamos dados quantitativos que, nesta seção, estão relacionados aos dados qualitativos coletados nas entrevistas, com o intuito de evidenciar os sentidos atribuídos pelos egressos às suas trajetórias acadêmico-profissionais em relação à participação no Programa A. Antes, porém, faz-se necessário dizer que a escolha por esse público egresso de um programa social da iniciativa privada foi motivada, em grande parte, pelos discursos que sustentam essas instituições, sendo um deles o de promover o desenvolvimento social. Esse discurso é produzido por organizações pertencentes ao Terceiro Setor,6 o qual surgiu na década de 1990:

Como o portador de uma nova e grande promessa: a renovação do espaço público, o resgate da solidariedade e cidadania, a humanização do capitalismo e, na medida do possível, a superação da pobreza. Uma promessa realizada através de atos simples e fórmulas antigas, como o voluntariado e filantropia, revestidas de uma roupagem mais empresarial. Prometenos, implicitamente, um mundo onde são deixados para trás os antagonismos e conflitos entre classe (Falconer, 1999, p. 9).

Como uma instituição do Terceiro Setor, o Programa A compartilha desse discurso, tendo a educação como um caminho que pode viabilizar essas promessas. Com essa intenção de "humanização do capitalismo", conforme coloca Falconer (1999), verifica-se a crença de que é possível que esse mesmo sistema que gera pobreza possa superá-la, pela via da inserção de pessoas em situação de pobreza em práticas educativas e moralizadoras. Reconhece-se a exclusão e principalmente os problemas decorrentes disso para o funcionamento do sistema, e cria-se uma brecha para a inclusão, por meio das mesmas regras do sistema que gerou exclusão, ou seja, mantêm-se e reproduzem-se os dispositivos de hierarquias sociais. E, com isso, vemos a repetição dos mesmos discursos, "fórmulas antigas", que produzem e sustentam as instituições educação, desenvolvimento social, trabalho, capitalismo e pobreza.

Discursos neste estudo têm um sentido diferente do usual, e é por isso que se faz relevante lembrar que o método que elegemos é a AID, a qual pressupõe o discurso como ato que produz sentidos, relações, subverte lugares e expectativas, e de que um dos efeitos discursivos são as "instituições" (ou sua legitimação), tal qual o programa em questão e o bem-estar social. Ao revisitar a literatura, verificou-se, por exemplo, como os programas sociais da iniciativa privada surgiram e se desenvolveram ao longo da história de nosso país, sendo um dos discursos produtores da verdade de que, por meio da educação, o Brasil iria se desenvolver, mote validado pelo governo federal em seu slogan "Brasil, pátria educadora". Dessa forma, percebe-se que essa relação entre educação e desenvolvimento social é uma naturalização que foi produzindo-se ao longo do processo histórico e ganhou ainda mais legitimidade com a teoria econômica da educação, assim como a instituição bem-estar, que mais tem relação com apaziguamento das tensões sociais do que com as mudanças das condições de vida e funcionamento da sociedade (Schultz, 1973).

Nesse contexto observou-se de qual lugar os participantes da pesquisa falavam. Os egressos nasceram entre as décadas de 1980 e 1990, estando na faixa dos 22 aos 35 anos, conforme levantamento quantitativo, ou seja, cresceram numa trama discursiva que legitimava essa "fórmula" de desenvolvimento pessoal e social. Naquela época, era o discurso oficial do País, recém-ingresso numa democracia e aberto ao mercado econômico global e que, naquele período, passou a entender que precisava se tornar mais competitivo, uma relação de poder e resistência diante de outros países. Com a abertura para o mercado internacional, o País começou a entrar também na trama discursiva desses locais, nos jogos de poder produzidos nessas relações econômicas e também culturais. O Brasil, um país jovem, passou a reproduzir esses discursos e a produzir cidadãos subjetivados com essa verdade: estudo leva ao trabalho, que leva à melhoria das condições de vida, que leva ao desenvolvimento do País. E esse é um dos discursos reproduzidos e legitimados pelo Programa pesquisado.

Estudo e trabalho compõem a trajetória dos egressos do Programa A que, de acordo com os entrevistados, pode ser considerado um "sucesso", palavra mencionada por alguns deles e que pode ser entendida como a validação daquela verdade. Por meio de alguns dados levantados pela etapa quantitativa, podemos verificar como essa instituição "sucesso" se constituiu nos discursos dos entrevistados, por exemplo, o aumento da escolarização dos egressos em comparação a seus pais: enquanto 67,2% dos participantes afirmaram que cursavam ou já cursaram uma pós-graduação, 35,8% das mães e 39,4% dos pais tinham como nível de escolaridade o ensino fundamental incompleto. Esses dados corroboraram os resultados do estudo realizado em 2001 sobre a inserção dos participantes do Programa no ensino superior em comparação a um grupo controle (Diório & Gomide, 2004).

Outra informação que integra o discurso de melhoria da condição socioeconômica dos egressos é o alto índice percentual de inserção destes no mercado de trabalho (94%) e a posse da casa própria e, ou, financiada por 44% dos participantes, considerando a faixa etária em que se encontravam, abaixo dos 35 anos. Além disso, o acesso a atividades de lazer e a bens culturais também se mostrou um indicador relevante, pois se verificou que quase metade dos participantes da pesquisa (47%) já realizou alguma viagem internacional e que a maioria deles o fez por motivo de lazer e turismo. Essa atividade inserida na rotina dos participantes ajuda a ilustrar essa ascensão social que tiveram, pois, historicamente, foram construindo-se demarcações de classe social no que diz respeito ao acesso a bens culturais, inclusive com a ideia de que algumas manifestações seria algo exclusivo das elites, que, segundo Castro et al. (2001), "Teria razões históricas, culturais e seria legitimado por uma educação diferenciada quanto a hábitos [. . .] atividades que não fariam parte do horizonte cultural oferecido aos pobres, ou de sua socialização cultural" (p. 20).

Com base nessas considerações, umas das relações que se produziram entre o Programa e a trajetória acadêmica-profissional dos egressos é a de que este proporcionou uma melhora no status social desses participantes, seja por meio da garantia de uma trajetória dentro da "normalização", isto é, pela oferta de oportunidades que fizeram com que esses jovens continuassem os estudos com adequação idade-série; ou pelo que alguns consideraram como "chegar mais rápido", uma aceleração. Nota-se que essa mudança de status social, o discurso de normalização e aceleração, denota os lugares antes ocupados por esses egressos; se então eles faziam parte da norma, era porque antes aquele local não lhes pertencia. Um discurso, uma determinada organização textual que denotou o deslocamento do sujeito e que revelou as relações de poder existentes. Seja por uma relação ou por outra, ambas revelaram o pressuposto de que existe um tempo adequado para que as coisas aconteçam, verdade essa sustentada por pesquisas do Ministério da Educação (MEC) sobre índices de escolaridade de população e distorção idade-série. Ao se considerar a idade de ingresso na escola, automaticamente, calcula-se com qual idade um estudante estará ao terminar o ensino médio e ingressar no ensino superior, caso não haja interrupções nas reprovações no meio do caminho. Não estar em consonância com esse cálculo é estar atrasado ou inadequado.

Em que pesem os diversos avanços obtidos, tais naturalizações, porém, merecem algumas reflexões. Importante pensar, por exemplo, o quanto essas naturalizações reproduzidas, e o desconhecimento da relatividade dessas verdades, ajudam a manter o status quo da sociedade com relação a como se deve ascender socialmente e construir uma trajetória reconhecida. Isto é, ao mesmo tempo em que o Programa A (e também outros programas semelhantes) assume a intenção de promover a transformação social a partir da oferta de oportunidades educacionais a indivíduos em situação socioeconômica precária, em suas práticas, acaba por legitimar um certo modo de produção inerente ao sistema capitalista e, com isso, por deixar de lado o entendimento e discussão sobre os processos sociais que produziram e pobreza e a exclusão. Conforme observou Calegare (2005):

É a contradição inerente às organizações do Terceiro Setor: ao mesmo tempo em que tentam remediar os danos do cenário macroeconômico de políticas; propõe políticas públicas; questionam o Estado assumindo parte de suas funções; e são a favor da democracia, protagonismo e "empoderamento"; não atuam diretamente no cerne da questão da mudança desse sistema que produz pobreza, injustiça e desigualdade (p. 44).

Se, no início, as organizações pertencentes ao Terceiro Setor se apresentaram como "promessas de humanização do sistema capitalista", conforme apontado anteriormente por Falconer (1999), parece que, ao longo do processo histórico, elas foram se deparando com algumas contradições, como as mencionadas por Calegare (2005), e acabando por legitimar os modos de produção do próprio sistema. É louvável, evidentemente, observar os ganhos relatados pelos entrevistados, mesmo porque esse reconhecimento da ascensão social somente é possível ser feito nesse momento a posteriori, e a partir da comparação com um estado inicial, qual seja a condição socioeconômica vivida por esses indivíduos antes de participarem do Programa. Contudo procuramos ampliar a discussão no sentido de pensar em formas de atuação que pudessem promover mudanças na própria lógica do sistema ou, dito de outra maneira, nessa trama discursiva que sustenta a visão neoliberal de indivíduo responsável por sua condição e a do sistema como o único possível, desconhecendo outras formas. Conforme Tommasi (2004) afirmou, "Uma coisa é ter como objetivo o desenvolvimento social, pressupondo avançar no caminho do progresso dentro do quadro da ordem econômica e social estabelecida, outra coisa é visar à transformação social, econômica e política" (p. 8).

Como dito anteriormente, programas sociais, de maneira geral, pretendem romper com o ciclo da pobreza, reposicionando os sujeitos em um outro ciclo, o da ascensão social por meio da educação e do trabalho. Muda-se o ciclo, mas não a ideia de que é um ciclo e a lógica da responsabilização individual por sua condição. Acredita-se que programas sociais, como o que foi pesquisado, desenvolvem um trabalho fundamental e de grande impacto na vida de seus participantes, conforme verificado no levantamento quantitativo, mas que suas ações poderiam ser ampliadas no sentido de quebrar essa lógica ao não reproduzir essas verdades, essa visão de sociedade e de indivíduo, e sim promover ações e discussões com seus participantes sobre como eles poderiam mudar as regras do jogo, e não legitimá-las ao apropriarem-se destas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção deste estudo se deu a partir de várias inquietações e da busca por respostas e "verdades" a respeito de como (e se) a educação pode promover a ascensão social. Em caso afirmativo, qual o custo pessoal para aqueles que, dada a sua apregoada condição de vulnerabilidade, teriam de arcar para alcançar o suposto sucesso? Seria a mobilidade social, conquistada por programas como o que foi selecionado, um efetivo exercício de transformação social? E o que se transforma de fato?

A escolha pelo método da AID produziu uma mudança de expectativas em relação ao objetivo de encontrar verdades passíveis de generalização. Diferente de outros métodos, a AID não pressupõe hipóteses a serem verificadas, tendo em vista que os sentidos são produzidos durante o fazer da investigação, na própria análise dos discursos; ou seja, o que interessa, mais do que circunscrever verdades, é investigar o modo como são construídas, reproduzidas e legitimadas no dizer.

Dessa forma, a verdade sobre programas sociais terem efeitos nas trajetórias de seus participantes foi legitimada nas falas dos entrevistados. É inegável reconhecer as mudanças, ou deslocamentos, que este Programa produziu na trajetória acadêmico-profissional de seus egressos. Dados quantitativos sobre escolaridade e inserção profissional compuseram os argumentos utilizados para sustentar a constatação de trajetória bem-sucedida, assim como os discursos produzidos pelos entrevistados. Ideias sobre como seria uma trajetória sem o Programa foram relacionadas a um caminhar mais lento e a dificuldades, bem como à baixa qualificação profissional. Estudos comparativos auxiliaram a pensar o quanto outros discursos científicos reforçam tal verdade. Acreditamos que este estudo, por meio de seu referencial metodológico, tenha produzido outro olhar, outro discurso sobre essa temática tão amplamente discutida nos meios acadêmicos e em diversas disciplinas, como a Economia, Administração e Sociologia, cujas contribuições se fizeram presentes.

Ao atentar às relações produzidas nos discursos e às verdades neles reiteradas, procuramos desnaturalizá-las ao considerar suas condições de produção. Ao tomar a historicidade dessas produções, percebemos sua relatividade, e isso nos incita a assumir nossa responsabilidade por sua repetição ou por sua descontinuidade. O Programa A e demais programas semelhantes repetem e legitimam um modelo de vida, de bem-estar, que se aplica e, mais do que isso, se oferece a uma restrita parcela da população brasileira: os estudiosos, esforçados e selecionados. Aqueles que parecem oferecer garantias da tal taxa de retorno individual e social. E essa restrita parcela da população, por sua vez, parece replicar esse mesmo modelo; ou seja, não há descontinuidade, e sim repetição da estrutura social. Uma estrutura que tem funcionado aplicando a meritocracia àqueles que não nasceram abastados; novamente, a valorização do esforço individual em detrimento do questionamento das desigualdades existentes. Vale dizer que um dos efeitos produzidos por essa cultura de alcance de boas condições de vida pelo mérito foi a competitividade entre os participantes do Programa A, pois, quando não há oportunidades para todos, é preciso competir com os pares para ser merecedor de alguma coisa. Reforça-se a ideia de que o acesso à boa educação e condições básicas de vida não estão acessíveis a todos, somente aos que se esforçam muito, o que reflete a repetição da sociedade individualista que foi construída e continua sendo legitimada.

Ainda que tenha suscitado reflexões sobre a práxis no campo social, ao operar um recorte na realidade, o método atuou, necessariamente, sobre um dado contexto circunscrito a uma localidade e a um público determinado. Considerando, como já dito, que a AID não pretende produzir verdades universais, os resultados aqui obtidos e analisados poderão ser pensados também em conjunto com futuras pesquisas sobre outros programas sociais que tenham acompanhamento de seus egressos, como o Programa A, e que atuem de forma distinta deste para fins comparativos sobre os efeitos de suas práticas.

REFERÊNCIAS

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Texto recebido em 16 de março de 2016 e aprovado para publicação em 2 de fevereiro de 2017.

 

 

*Mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em Gestão Social e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Positivo, bacharela em Psicologia pela Universidade Tuiuti do Paraná.E-mail: elianecr7@gmail.com.
** Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, professora associada do Departamento de Psicologia da UFPR.E-mail: luvalore@uol.com.br.
3 Aqui vale uma diferenciação dos termos projeto e programa, sendo projeto concebido como um trabalho realizado com prazo determinado e recursos estabelecidos previamente; e programa como o conjunto de projetos a serem executados, com recursos específicos, sendo agrupados por semelhança de objetivos ou área de atuação (Tenório, 1997).
4 Esse programa é realizado pelo "Instituto B", nome fictício, uma organização não governamental mantida por investimento privado de um conjunto de empresas.
5 A identidade dos entrevistados foi preservada, e os nomes utilizados neste estudo são fictícios.
6 A denominação Terceiro Setor é ampla e imprecisa, de acordo com Fischer e Falconer (1998), porém é um termo que considera o Estado como Primeiro Setor, o mercado como o Segundo, e esse Terceiro abarcaria características de ambos e seria composto pelas chamadas organizações não governamentais.

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