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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.25 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2019

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2019v25n1p311-329 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2019v25n1p311-329

 

O homem e o método: reflexões sobre os parâmetros filosóficos da transdisciplinaridade

 

The man and the method: reflections on the philosophical dimensions of transdisciplinarity

 

El hombre y el método: reflexiones acerca de las dimensiones filosóficas de la transdisciplinariedad

 

 

Carlos Roberto Drawin*

 

 


Resumo

O artigo visa a estabelecer algumas referências filosóficas para demarcar a diferença entre inter e transdisciplinaridade. Não se trata de propor um modelo previamente estabelecido de investigação transdisciplinar, uma vez que esta se constitui com base em problemas concretos que exigem esse tipo de abordagem. No entanto pretendemos propor alguns elementos reflexivos que possam contribuir para sua demarcação e diferenciação. Entre eles, destacamos, em primeiro lugar, que a transdisciplinaridade responde a uma necessidade histórica que se desdobra numa necessidade lógica. Em seguida, que ela expressa uma exigência ética incontornável e, finalmente, que ela tem uma dimensão antropológica. Esses três elementos convergem na disposição de abertura crítica que deve caracterizar as práticas transdisciplinares.

Palavras-chave: Transdisciplinaridade. Epistemologia. Ética. Antropologia Filosófica.


Abstract

This article aims to establish some philosophical references to determine the difference between inter and transdisciplinarity. It is not a question of proposing a previously established model of transdisciplinary research since this is based on the concrete problems that require this type of approach. However, we intend to propose some reflective elements that may contribute to its establishment and differentiation. Among others, we shall highlight, firstly, that transdisciplinary responds to a historical necessity that unfolds into a logical necessity. Secondly, that it expresses an unavoidable ethical requirement and, finally, that it has an anthropological dimension. These three elements converge in the provision of critical openness that should characterize transdisciplinary practices.

Keywords: Transdisciplinarity. Epistemology. Ethic. Philosophical Anthropology


Resumen

El artículo tiene como objetivo establecer algunas referencias filosóficas para demarcar la diferencia entre inter y transdisciplinario. Esto no es proponer un modelo previamente fijado de la investigación transdisciplinaria ya que esta se constituye a partir de los problemas concretos que exigen este tipo de enfoque. Sin embargo, pretendemos proponer algunos elementos reflexivos que puedan contribuir a su demarcación y diferenciación. Entre ellas destacamos, en primer lugar que transdisciplinario responde a una necesidad histórica que se desarrolla en una necesidad lógica. En seguida que expresa una exigencia ética ineludible y en última instancia tiene una dimensión antropológica. Estos tres elementos convergen en la provisión de apertura crítica que debe caracterizar las prácticas transdisciplinarias.

Palabras clave: Transdisciplinariedad. Epistemología. Ética. Antropología Filosófica.

1 INTRODUÇÃO

O termo "transdisciplinaridade" tem sido utilizado com crescente frequência nos meios intelectuais e acadêmicos, e vem associado, em sua origem, ao nome do físico teórico romeno Nicolescu (1942), pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e professor da Université Pierre et Marie Curie (Paris). Tal celebridade não nos deve ocultar que o nome do físico romeno apenas dá certa visibilidade a um movimento internacional com cada vez maior audiência a partir dos anos 1990, seja com a fundação do Center for Transdisciplinary Research and Studies (CIRET) e do Study Group on Transdisciplinarity (UNESCO), ambos liderados por Nicolescu, seja com a realização, em 1994, no Convento de Arrábida (Portugal) do Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade. De tais iniciativas nasceram o Manifesto da transdisciplinaridade e a Carta da transdisciplinaridade.

A proliferação da ideia ou, se quisermos, da intenção de um "projeto transcisdiplinar" é imensa e não nos cabe aqui sequer esboçar o seu mapeamento. Tal ideia tem dois aspectos, facilmente identificáveis: o fático e o axiológico. O primeiro, cujo índice mais visível consiste justamente na grande circulação e êxito do termo "transdisciplinar", como foi acima mencionado, parece apontar para algum tipo de necessidade histórica; e o segundo, cujo índice mais visível encontra-se no caráter de "manifesto" do famoso texto de Nicolescu, parece apontar para algum tipo de exigência ética. Logo nos ocorrem algumas perguntas: por que algo historicamente necessário se coloca também como valor, como exigência ética? Afinal, o fático não seria da ordem "daquilo que é" e o ético da ordem "daquilo que deve ser"? Não haveria uma cisão ou mesmo conflito entre os dois aspectos? Se tal consideração for correta, como ela poderia ser pensada e qual a sua incidência na própria definição de transdisciplinaridade? O projeto transdisciplinar não seria tão somente a manifesação de certo mal-estar produzido pelo avanço tecnológico vinculado aos processos de modernização social? Não seria a projeção utópica e consoladora gerada por esse mal-estar? Essas interrogações poderiam ser desdobradas e multiplicadas recobrindo uma grande diversidade de saberes distribuídos no abrangente espectro que vai das disciplinas lógico-formais, passando pelas ciências da natureza e pelas ciências humanas e chegando à intrincada ramificação do pensamento filosófico. Essa não deixa de ser uma situação bastante irônica: só podemos pensar a transdisciplinaridade de modo transdisciplinar, ou seja, por meio da amarração da dispersão dos saberes e, assim fazendo, logo se vê, poderíamos cair no poço sem fundo de uma regressão ao infinito. Percebem-se como as dificuldades são muitas e como impõem a “via longa” de muitas mediações conceituais e reflexivas. Longe de nós, neste breve texto, embrenharmo-nos em tão áspero caminho com intuito de responder a tão difíceis perguntas. Limitamo-nos tão somente a três considerações propedêuticas, sendo a última tomada como fio condutor da exposição ou como uma espécie de esclarecimento a posteriori das duas primeiras. Esta última se inscreve no domínio programaticamente transdisciplinar da Antropologia Filosófica.

2 PRIMEIRA CONSIDERAÇÃO: A TRANSDISCIPLINARIDADE COMO NECESSIDADE HISTÓRICA

O prefixo "trans", muito prolífico na língua portuguesa, como nos ensina o Dicionário Houaiss, deriva da preposição latina que indica "além de", "para lá de", "depois de" e as palavras por ele compostas geralmente significam "transição", "transformação", "transposição", "travessia", "transferência" (Houaiss & Villar, 2001, p. 2479). Há, pois, movimento e mudança, mas também ligação entre dois pontos ou duas margens, como em "travessia" ou entre duas posições como em "transposição". Logo o "transdisciplinar" pressupõe o "disciplinar", quer dizer a existência de um conjunto prévio de disciplinas a serem dinamicamente vinculadas e, por conseguinte, transformadas. Mas de onde veem as disciplinas?

A ciência ocidental nasceu na Grécia, como reza qualquer manual introdutório de Filosofia. Em sua certidão de nascimento, está colado o selo de sua paternidade pré-socrática: a busca de um princípio (arché) capaz de unificar a imensa diversidade dos fenômenos. Ou seja, a ciência nasce não da observação minuciosa dos fenômenos e sim do estabelecimento de uma instância de inteligibilidade capaz de unificá-los. Teria de haver, porém, um caminho através do qual, a partir dos fenômenos, se pudesse chegar ao princípio de sua unificação e tal seria o percurso da ciência (methodós). Ora, o seguimento de tal caminho não é fácil, impõe disciplina. O sentido moral de disciplina está, pois, associado ao seu sentido metodológico: o rigor do método implica na ordenação dos fenômenos em determinadas regiões epistêmicas caracterizadas por diferentes tipos de objetividade e diferentes procedimentos para abordálos. A filosofia grega, solo do qual brotará toda ciência ocidental, encontrou na Academia platônica, longínqua antecessora de nossas universidades, a sua figura paradigmática: a articulação entre a unidade do fundamento racional e a diversidade dos objetos de investigação

Essa figura paradigmática da "unidade na diferença" teve em Aristóteles a sua expressão mais elaborada. Ele foi o fundador da lógica como análise formal da linguagem científica e concebeu, então, a diferenciação da ciência em grandes domínios e diversas disciplinas: a ciência teórica (episteme theoretike), abrangendo a metafísica ou Filosofia primeira, a Física, a Psicologia e a Matemática; a ciência prática (episteme praktike), incluindo a política e a ética; a ciência produtiva ou técnica (episteme poietike), campo da aplicação do conhecimento e da criação artesanal e artística (Aristóteles, 2002, pp. 270-271; VI, 1, 1025b-1026a; Aristóteles, 2009, pp. 130-131; VI, 2, 1139b; Peters, 1977, pp. 78-79). Assim encontramos em Aristóteles um duplo movimento: de um lado, o trabalho analítico impulsionado pela diversidade dos objetos a serem estudados e, de outro, o trabalho sintético apoiado no próprio modo de funcionamento da razão humana, pois o núcleo de todo pensamento é o juízo, que, em sua fórmula mais simples, S é p, realiza uma cópula, uma junção ou síntese entre o sujeito (S) e o predicado (p). Sem o trabalho da síntese, a estabelecer vínculos analógicos entre as diversas ciências, estas se perdem como tal e se dissolvem na descrição infinita e sempre indeterminada dos fenômenos (Berti, 1998; Guthrie, 1993, pp. 143- 147). Toda tradição filosófica posterior vai se esforçar na resolução da tensão entre a pluralidade dos saberes e a unidade da razão que os sustenta. Assim, o estoicismo difundirá a ideia da divisão tripartite da filosofia em lógica, física e ética através de imagens tornadas célebres, como a do ovo: a casca representando a lógica; a clara, a física; e a gema, a ética. De qualquer modo, o ovo se mantém como ovo por causa "do logos, o fundamento que solidamente liga as três partes" (Reale, 1994, p. 273). Por Cícero (106 a.C. – 43 a.C.), essa tradição penetrará a cultura romana e vai difundir-se posteriormente por todo Ocidente (Reale, 1994, pp. 454-455).

Até aqui, parece que estamos simplesmente diante de uma necessidade lógica, de uma imposição da própria estrutura da nossa razão. Afinal de contas, a ciência se viu levada a realizar a complexa mediação entre a diversidade dos seus objetos e campos fenomênicos e a unidade capaz de dar conta de nossa experiência relativamente integrada da realidade, pois nós vivemos na totalidade do mundo e não em regiões abstratas de conhecimentos parcelados. Essa afirmação aparentemente banal esconde uma questão complexa e mesmo dramática para nós modernos. Por quê? Porque o mundo da vida não permanece sempre o mesmo, as mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais não apenas o desestabiliza e transforma, mas o faz com grande rapidez na direção de uma crescente diferenciação e complexidade. Isso já tinha ocorrido antes, mas de modo incomparavelmente mais lento, na Grécia clássica: a invenção da democracia fez emergir novos problemas a suscitarem tensão entre a busca de um princípio de inteligibilidade e a multiplicação dos saberes necessários para a apreensão da realidade. Desse modo, como bem viu Hegel logo no início de nosso tempo, a necessidade lógica se entrelaça com a necessidade histórica na produção de um saber suficientemente amplo e rigoroso capaz de servir como remédio para as divisões ou fragmentações de nossa época, afinal, como já ressaltamos, o ser humano sendo ser no mundo não pode suportar indefinidamente as oposições entre "espírito e a matéria, a alma e o corpo, a fé e o entendimento, a liberdade e a necessidade [. . .] entre razão e sensibilidade, inteligência e natureza [. . .]". Por isso, afirmou Hegel, "Quando o poder de unificação desaparece da vida dos homens e as oposições perderam a sua relação viva e sua ação recíproca e adquiriram sua independência, então nasce a necessidade da filosofia" (Hegel, 1801, pp. 87-88; Ferreira, 1992, pp. 97-118).

O diagnóstico hegeliano feito em 1801, ou seja, em nosso limiar epocal, apreende bem a inquietação que toma conta dos espíritos mais lúcidos diante da tendência, naquele tempo ainda incipiente, de multiplicação das disciplinas científicas sem a contrapartida de uma instância comum de inteligibilidade. Por outro lado, num efeito espantoso, a fragmentação no plano epistemológico produzia, por sua vez, homogeneização no plano da sociedade visto que a técnica se associava ao poder na produção de uma lógica instrumental e sistêmica. Casavam-se então a diferenciação dos saberes na modernização cultural e a homogeneização das estruturas na modernização social. Tal constatação levou Hegel a se lançar no gigantesco esforço de construção do sistema de uma razão negativa e dialética capaz de dissolver as "determinações do entendimento", as separações cristalizadas entre as disciplinas e produzir o universal, não como forma abstrata, mas enriquecido pelo "particular inserido nele" (Hegel, 1812, p. 28).

Pode-se dizer que, no curso efetivo da história, Hegel acertou em cheio em seu diagnóstico, enquanto, em seu empreendimento sistemático, fracassou fragorosamente. Assim foi desde o Renascimento, sobretudo após o prodigioso impacto da revolução científica do século XVII, levando muitos estudiosos a tentarem propor uma classificação das ciências na qual a especificidade do humano pudesse caber: do "De dignitate et augmentis scientiarum" (1623), de Francis Bacon, até o "Discours préliminaire de la Encyclopédie", de D’Alembert, e continuando até a tentativa do físico e filósofo Jean-Marie Ampère, ao propor, em 1834, "uma classificação natural das ciências, comparável à classificação natural das espécies de Cuvier" (Freund, 1975, p. 21). Apesar da pretensão de apresentar uma "classificação natural" das ciências, esta e todas as outras tentativas semelhantes surtiram escasso efeito por adotarem critérios claramente extrínsecos e artificiais, não logrando abrir a via de uma verdadeira integração dos saberes, mas, ao contrário, desdobrando a multiplicidade das disciplinas científicas no plano das próprias classificações. Do final do século XIX até nossos dias, a situação se agravou muito. Bassarab Nicolescu, em entrevista a Russ Volckmann, resumiu bem o motivo desencadeador da transdisciplinaridade:

O ponto de partida é a incrível multiplicação no transcurso do tempo do número de disciplinas especializadas. Quando as primeiras universidades foram fundadas por volta do século XIII, nós tínhamos sete disciplinas, que eram chamadas trivium e quadrivium, correspondendo mais ou menos o que nós hoje chamamos Ciências Exatas e Ciências Humanas. Em 1950, nós tínhamos 54 disciplinas, que começaram a se multiplicar muito rapidamente. No ano 2000, nós tínhamos mais do que 8.000 disciplinas [. . .] o que significa 8.000 maneiras de olhar para a realidade (Nicolescu, 2007, p. 77).

As cifras podem variar. Klein (1990), eminente estudiosa do assunto, fala em 8.530 campos do conhecimento em 1987 e em 4.000 disciplinas científicas em 1990. Os números exatos interessam pouco, de qualquer forma atestam o caráter propriamente fático da necessidade histórica da transdisciplinaridade. Conforme assinala Ivan Domingues, o caráter insustentável dessa situação iria estimular iniciativas de grande porte por parte de importantes instituições como a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), organizadora, em 1970, de um colóquio internacional sobre a interdisciplinaridade e, em 1975 e 1976, de um seminário pós-doutoral sobre o mesmo tema, na Universidade Estadual da Pensilvânia, assim como a UNESCO, que patrocinou diversos colóquios e congressos, como o Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, em 1994, acima mencionado, e os colóquios sobre transdisciplinaridade realizados em 1998, na Abadia de Royaumont, e em 2000, em Zurique. Eventos que levaram à publicação de obras referenciais sobre o assunto. Seja como for, todas essas iniciativas na organização de eventos e na publicação de livros projetaram num cenário institucional e internacional pesquisas já bem-sucedidas e efetivadas com o concurso de diversas disciplinas, como foi o caso exemplar da biologia molecular (Domingues, 2012, pp. 16, 19).

Todavia, qual seria a diferença entre o inter e o transdisciplinar? Segundo Klein (1990), podemos distinguir três diferentes abordagens: o multi ou pluridisciplinar, o interdisciplinar e o transdisciplinar. Segundo Klein,

Multidisciplinaridade significa justaposição de disciplinas. É essencialmente aditiva e não integrativa. Mesmo num ambiente comum, educadores, pesquisadores e práticos se comportam como especialistas (disciplinarians) com diferentes perspectivas [. . .] os pesquisadores preservam os interesses paradigmáticos de suas disciplinas (pp. 56, 60).

Podemos tomar a Psicologia como um bom exemplo de formação multidisciplinar: o estudante de Psicologia deve cursar uma pluralidade de disciplinas (da anatomia à sociologia, da estatística à filosofia) sem que haja maior integração entre elas e, apesar do surgimento de disciplinas híbridas, como a "psicossociologia" ou a "psicofisiologia", a Psicologia permanece como um campo dispersivo e mesmo fragmentário (Drawin, 1988, pp. 236-251). Em contraste com tal multiplicidade, "o trabalho interdisciplinar é mobilizado pelo estabelecimento de novos objetivos analíticos enfatizando estudos integrativos ao invés de discretos" e, assim, de acordo com a definição da OCDE, exigindo a passagem "da simples comunicação de ideias para a integração mútua na organização de conceitos, metodologia, procedimentos, epistemologia, terminologia, dados e a organização de pesquisa e educação num campo bastante amplo" (Klein, 1990, pp. 60; 63). Como já foi dito, diversos projetos no campo das ciências duras podem ser enquadrados na perspectiva interdisciplinar. Por outro lado, enfatiza Klein (1990),

A abordagem transdisciplinar é muito mais compreensiva em alcance [. . .] são estruturas que transcendem o estreito domínio da visão de mundo disciplinar, abarcando metaforicamente as diversas partes do material tratado separadamente pelas disciplinas especializadas [. . .] transcende domínios particulares, rompendo barreiras disciplinares e desobedecendo as regras da etiqueta disciplinar (pp. 65-66).

Teríamos, então, a justaposição multidisciplinar, a integração interdisciplinar e a transgressão transdisciplinar (Domingues, 2012, p. 15). Como compreender essa gradação? Podemos dizer esquematicamente o que se segue. A multidisciplinaridade decorre imediatamente da proliferação cada vez mais acelerada das disciplinas científicas. A formação de qualquer profissional de nível superior deve passar, de modo mais ou menos dispersivo, por algum tipo de currículo multidisciplinar. O trabalho interdisciplinar emergiu da colaboração integrada de pesquisadores especializados visando à construção de modelos adequados para o enfrentamento de problemas de fronteira, como os da biologia molecular, da inteligência artificial, da tecnologia espacial, etc. Surgem entãoprogramas interdisciplinares não apenas como uma necessidade histórica, como realizações fáticas, mas como expressão de uma necessidade lógica.

Vamos recordar brevemente dois exemplos de trabalho interdisciplinar de alcance epistemológico. O primeiro se refere ao empreendimento pioneiro de Jean Piaget. Em 1949, o biólogo e psicólogo suíço propôs a elaboração de uma "epistemologia genética" e, em 1955, criou o Centro Internacional de Epistemologia Genética. Com tal propósito, ele articulou a reflexão epistemológica, de procedência filosófica, com a investigação empírica, observacional e experimental, da Psicologia genética. Procurou, assim, estabelecer a correspondência entre a reconstrução "do desenvolvimento do pensamento, desde a infância até a idade adulta" feita "no terreno dos fatos" com "a reconstrução logística no campo dos problemas de validez" (Piaget, 1970, p. 114). A sua pretensão foi estabelecer a inter-relação entre a investigação psicológica empírica da gênese do pensamento com o plano da reflexão lógica e axiomática. Para tanto, ele diz, não se pode prescindir da

Colaboração sistemática dos psicólogos encarregados dessas investigações com os lógicos, matemáticos e especialistas das aplicações técnicas das noções consideradas, pois a cooperação interdisciplinar é indispensável para ligar a análise genética em seu contexto geral científico e epistemológico (Piaget, 1970, p. 118).

Dentro dessa perspectiva programática, avança a hipótese de uma ordenação não linear, mas cíclica e interativa, "dos quatro grandes conjuntos de ciências [. ..] lógico-matemáticas, físicas, biológicas e psicossociológicas" (Piaget, 1979, pp. 32-33ss).

O segundo exemplo se refere ao estruturalismo francês. Nos anos 40 do século XX, a filosofia existencial, sobretudo após a publicação da obra de Sartre (1943), O ser e o nada, inundou a vida intelectual francesa. Sartre, numa conferência que se tornou célebre, definia a sua filosofia como um humanismo. Por quê? Porque o homem é radicalmente diferente de todos os outros entes e é irredutível a qualquer outro ente, pois nele "a existência precede a essência", ou seja, "é um ser que existe antes de poder ser definido por algum conceito" e, acrescenta Sartre, "não há natureza humana [. . .] o homem nada é além do que ele se faz [. . .] é isso também o que se denomina subjetividade" (Sartre, 1946, p. 19). Sendo o homem concebido como consciência e liberdade, como subjetividade pura, então não pode haver uma ciência positiva do humano e se instaura certa inimizade entre a fidelidade ao humano em sua irredutível singularidade e a fidelidade ao método científico visando à máxima objetividade. Ora, após ter proposto, em 1949, em seu livro As estruturas elementares do parentesco, uma ciência rigorosa e universal das estruturas sociais, Lévi-Strauss atacou direta e duramente a concepção humanista sartriana, no último capítulo de sua famosa obra de 1962, O pensamento selvagem (Drawin, 2018, pp. 29-50). Inspirada na Linguística de Saussure e Jakobson, a noção de análise estrutural foi generalizada e passou a ser utilizada na investigação das relações de parentesco (Lévi-Strauss), da semiologia da moda (Barthes), dos diferentes tipos de narrativa (Greimas), do modo de produção capitalista (Althusser), do inconsciente (Lacan), das descontinuidades e condições subjacentes do discurso filosófico ocidental (Foucault). Tendo sido um "movimento de opinião", o estruturalismo também foi um "programa de investigação" que não deve ser desprezado, apesar de o modismo ter passado. A sua grandeza, como afirma Milner, consistiu em

Ter sustentado em sua doutrina e demonstrado por sua prática que setores inteiros do que se havia atribuído sempre à "cultura" (thesei ou segundo a convenção social) podiam ser objeto de uma ciência em sentido galileano do termo. Sem que por isso, e aqui reside a novidade singular, sem que por isso a "cultura" (thesei ou segundo a convenção social) ficasse reduzida à natureza (physei ou segundo a natureza) (Milner, 2003, p. 201).

Essa importante observação mostra duas coisas: o estruturalismo pretendeu ser um programa de investigação interdisciplinar e o fez de modo bastante original, porém tomando como referência o ideal de objetividade próprio do modelo hegemônico das ciências da natureza. No entanto, ao contrário da epistemologia genética, o estruturalismo não se consolidou num grupo de trabalho formalmente interdisciplinar e assentado numa base institucional.

Os dois exemplos, indicados apenas superficialmente, ilustram, de modo diverso, a perspectiva interdisciplinar e convergem na primazia da instância epistemológica. A partir daí, como podemos caracterizar o caráter diferenciado e transgressivo da transdisciplinaridade? Ela seria tão somente uma boa intenção, um desejo utópico? Ou também representaria, como indica o título deste tópico, uma necessidade histórica?

Como já foi dito, recorrendo ao pensamento de Hegel, não há exclusão entre a necessidade lógica e histórica. Os desafios históricos não são apenas vividos e se apresentam como problemas a serem pensados, embora a contingências dos acontecimentos pareçam se constituir como um limite ao pensável. Há, porém, certa circularidade entre o histórico e o lógico: a acelerada multiplicação das disciplinas não resulta de alguma decisão arbitrária e sim da lógica intrínseca da pesquisa, porém os seus efeitos na sociedade e na cultura produzem tal impacto que engendram por sua vez um novo plano lógico e reflexivo. Aqui aparece um elemento novo que nos ajuda a distinguir a inter e a transdisciplinaridade de modo a definir o seu caráter propriamente transgressivo como uma exigência ética.

3 SEGUNDA CONSIDERAÇÃO: A TRANSDISCIPLINARIDADE COMO EXIGÊNCIA ÉTICA

A ética (ethike ou moralis) pode ser genericamente definida como a "ciência do ethos", ou seja, a transposição do ethos num discurso racionalmente ordenado formado por conceitos entrelaçados em argumentos. O estatuto epistêmico da ética tem sido objeto de intermináveis discussões. Aqui nos interessa tão somente assinalar, já na própria etimologia do termo "ética", a sua íntima ligação com o mundo da vida, pois, como nos ensina Vaz (1999), "Ethos (com eta inicial) designa o conjunto de costumes normativos da vida de um grupo social, ao passo que ethos (com epsilon) refere-se à constância do comportamento do indivíduo cuja vida é regida pelo ethos-costume" (p. 13). Não há como deduzir racionalmente uma ética como uma construção intelectual separada da "realidade histórico-social dos costumes e sua presença no comportamento dos indivíduos" e, por isso, o termo ethos, em sua origem, significava morada, uma vez que o ser humano não mora apenas num ambiente físico, mas também habita o mundo dos costumes, valores, normas e representações da experiência vivida. Concluindo Vaz, a destruição da morada do ethos "significaria o fim de todo sentido para a vida propriamente humana" (Vaz, 1999, p. 13).

Como foi ligeiramente assinalado, a interdisciplinaridade, algumas vezes, demonstrou grande fecundidade em investigações restritas ao campo das Ciências da Natureza, no entanto, no último quartel do século XX, ocorreu uma verdadeira "revolução neonaturalista" como "uma tentativa de reunificação do conhecimento do homem" (Wolff, 2012, p. 193). Uma reunificação feita sob a égide da primazia do método orientada segundo o postulado das ciências cognitivas:

Considerar a "cognição" (o processo do conhecimento: percepção, memória, aprendizagem, imaginação, linguagem, raciocínio, planificação da ação, etc.) e, de um modo mais geral, a mente, isto é, os fenômenos "mentais" (pensamento, consciência, emoções, etc.) como fenômenos naturais (Wolff, 2012, p. 109).

A eliminação, redução ou transcrição dos fenômenos mentais em termos neurais também suscitou um amplo e intrincado debate filosófico, mas aqui ele não nos interessa diretamente (Drawin & Moreira, 2016, pp. 15-42). A ser enfatizado é a tensão entre o programa interdisciplinar de naturalização do humano segundo o prisma das ciências biológicas e cognitivistas, e a ideia de ética como razão prática enraizada no mundo da vida. Em outras palavras, se, em nome do rigor epistemológico, nós excluirmos de nossa abordagem do humano os saberes provenientes do mundo da vida (os conhecimentos populares e tradicionais, as experiências compartilhadas, porém sem elaboração conceitual explícita, os discursos sapienciais e narrativos, etc.) então nós nos enredaremos em problemas éticos insolúveis.

Mesmo o programa interdisciplinar estruturalista, com sua instigante proposta de evitar quer o humanismo existencialista, quer a redução naturalista, esbarrou em semelhantes impasses éticos e políticos. Como mostrou Wolff (2012), os dois paradigmas (o estruturalista de meados do século passado e o cognitivista hoje hegemônico) têm muitos e importantes pontos de contato: ambos são modelos interdisciplinares calcados no "sucesso exemplar" de uma determinada ciência, como a fonologia, no caso do estruturalismo, e a teoria computacional, no caso do cognitivismo, e ambos os programas sustentam uma figura do humano distante das filosofias da subjetividade, pois "Pela primeira vez, ciências estudam o homem mesmo, postulando que nenhuma de suas propriedades o distingue fundamentalmente de outros seres naturais ou até de certos seres artificiais" (Wolff, 2012, p. 114)

Vê-se, então, como o passo para além do caráter interdisciplinar desses dois programas de investigação (um situado mais propriamente no domínio das Ciências da Natureza e o outro no das Ciências Humanas) implica responder a uma exigência ética, e esse é justamente o passo dado pela transdisciplinaridade. Nessa passagem (do inter para o transdisciplinar), também não é difícil perceber a convergência entre as necessidades lógica e histórica, embora não seja um ponto passível de ser aqui desenvolvido. A dominação planetária da técnica com suas graves consequências para o equilíbrio ecológico da natureza e da expansão global da economia de mercado e das intermediações financeiras desencadeando um verdadeiro "processo cumulativo de desigualdade" parecem impor uma concepção mais larga e mais profunda da racionalidade (Dowbor, 2014, p. 12). Esta não pode mais se restringir à imposição metódica da objetividade e da eficácia instrumental, e deve deixar-se tocar pelas considerações provenientes das exigências éticas ou, de modo ainda mais enfático, deve integrar nos procedimentos argumentativos a já longeva tradição da razão prática. Desse modo, nem tudo o que funciona e produz resultados pragmáticos deve ser implementado em decorrência de razões prudenciais. Por exemplo: razões favoráveis ao crescimento econômico ou à utilização de tecnologia mais invasiva para o meio ambiente, apesar de seus ganhos mais imediatos, devem ser contrabalançadas por razões éticas acerca de seus efeitos transgeracionais, pois há "um dever diante da posteridade [. . .]um dever para com a existência da humanidade futura" (Jonas, 2006, pp. 89-90).

A necessidade histórica, a situação de destruição da natureza e do crescimento da pobreza e da desigualdade entre indivíduos e povos, converge com a necessidade lógica de repensar a natureza e o alcance da racionalidade. Como a tarefa de tal repensar a razão decorre de uma exigência ética e como a ética se sustenta no mundo da vida, então os saberes que são engendrados e circulam no mundo da vida não podem ser excluídos por princípio e por considerações meramente epistemológicas do trabalho científico. Eis o movimento transgressivo inerente à passagem do inter ao transdisciplinar. Longe de ser uma aspiração romântica, a transdisciplinaridade, apesar de sua difícil viabilização, parece provir do impulso ético que em nossa época vincula a necessidade lógica e histórica.

4 TERCEIRA CONSIDERAÇÃO: A TRANSDISCIPLINARIDADE COMO DIMENSÃO ANTROPOLÓGICA

Se, por um lado, a interdisciplinaridade, ao passar da justaposição para a integração das disciplinas científicas, pode ser considerada como um avanço teórico, por outro, ele se dá de modo predominante no plano epistemológico. Como já foi dito, a transdisciplinaridade exige o atravessamento do plano epistemológico por um impulso ético capaz de produzir outro tipo de amarração entre os diversos saberes. Podemos discernir esse impulso ético em duas propostas que contêm elementos relevantes da prática transdisciplinar. O primeiro ficou conhecido como "teoria crítica da sociedade" e se desenvolveu a partir de um grupo de filósofos, sociólogos e psicanalistas vinculados, nos anos 30 do século passado, ao Instituto de Pesquisa Social associado à Universidade de Frankfurt, daí derivando a sua designação como "Escola de Frankfurt". A perspectiva desses pesquisadores pode ser claramente apreendida nos textos programáticos escritos por Max Horkheimer, primeiro diretor do "Instituto" e publicados na "Revista de Pesquisa Social" (1932-1941). Tanto em sua Aula inaugural de 1930 e no Prefácio de 1932 ao primeiro número da revista quanto no importante artigo de 1937, significativamente intitulado Teoria tradicional e teoria crítica, Horkheimer assinala em que consiste o caráter "crítico" da teoria: embora a pesquisa empírica seja essencial, ela precisa ser conceitualmente elaborada com o auxílio da explicitação reflexiva da filosofia. Mas isso não basta, a teoria deve ultrapassar a fragmentação da realidade em elementos abstratos e visar à totalidade social e deve adotar uma perspectiva transformadora, pois a realidade não é uma coisa dada, e sim uma trama de contradições, pois, afinal de contas, "O que é habitualmente entendido como realidade é considerado pela filosofia como um ponto de vista preguiçoso" (Horkheimer, 1930, p. 70; Drawin, 2015, pp. 15-64).

Não vamos nos estender sobre o tema já abordado neste Dossiê, no capítulo intitulado Teoria crítica e transdisciplinaridade: uma aposta no projeto emancipatório, escrito por Jacqueline de Oliveira Moreira, Ana Cláudia Castello Branco Rena, Diego Fernando Bolanos e Lucas Caetano Pereira de Oliveira. O outro exemplo de prática teórica e investigativa contendo elementos transdisciplinares é menos conhecido nos meios acadêmicos, mas teve grande relevância política na América Latina. Trata-se da chamada "Teologia da Libertação". O terno "teologia" não nos deve considerar tal corrente como algo restrito ao universo religioso e alheio ao campo da racionalidade. Ao contrário, as elaborações teológicas, no decorrer da história ocidental, alcançaram elevado nível especulativo, traduzido em sutilíssimas distinções conceituais. A influência da Teologia na formação do pensamento científico e político modernos é indiscutível, como nos mostram as obras de Koyré (1977) e Agamben (2011). Também no século XX, a Teologia está fortemente presente no panorama intelectual, tanto no espaço cultural e linguístico continental (Filosofia existencial e hermenêutica) quanto no espaço anglo-saxônico (Filosofia analítica). Na América Latina, surgiu, a partir dos anos 60 (1968-1975), uma expressão teológica de grande força e originalidade, a Teologia da Libertação. A palavra-chave "libertação" emerge do encontro da tradição profética bíblica com a vertente crítica da teoria social (daí a proximidade com a ideia de "emancipação" adotada pela "Escola de Frankfurt") e com os trabalhos econômicos, sociológicos e pedagógicos latino-americanos na elaboração de uma "teoria da dependência" crítica do desenvolvimentismo (Gunder Frank, Theotonio dos Santos, Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso) e de uma "pedagogia dos oprimidos" (Paulo Freire). Essa colaboração interdisciplinar é intensamente mobilizada por um impulso ético, como manifesta o mais eminente de seus representantes, o teólogo brasileiro Leonardo Boff: "A teologia da libertação nasce de uma indignação ética diante da pobreza e da marginalização de grandes massas de nosso continente" (Boff apud Gibellini, 1994, p. 402). Como mostrou Clodovis Boff, em seu tratado do método teológico, a Teologia da Libertação se relaciona com a Filosofia e as Ciências Humanas não de maneira "puramente mecânica, mas sim orgânica [. . .] incorpora ou faz seus os processos e resultados dos outros saberes, embora estes sejam originariamente autônomos" (Boff, 1998, p. 367). Essa relação orgânica se faz mediante uma dupla mediação: a mediação hermenêutica referida à interpretação da fé bíblica a partir das experiências e dos saberes populares, e a mediação socioanalítica, referida às Ciências Sociais e Humanas (Boff, 1998, pp. 358-385). Deve-se ressaltar o seguinte aspecto: a exigência ética não se inscreve de modo abstrato, porque implica em dar atenção e acolher ativamente o saber e a experiência provenientes do mundo da vida. Esse é o aspecto fundamental e propriamente transgressivo na contraposição entre os programas inter e transdisciplinar.

Em que consistiria, porém, a dimensão antropológica da transdisciplinaridade mencionada no título deste terceiro tópico de nosso artigo? Nos dois projetos tomados como ilustração de práticas teóricas contendo aspectos transdisciplinares (a teoria crítica da sociedade e a teologia da libertação), a dimensão antropológica aparece na atenção e no acolhimento das experiências provenientes do mundo da vida. Para Horkheimer, "Na medida em que o conceito de teoria é tornado independente como se porventura ele saísse da essência do conhecimento ou mesmo tivesse um fundamento anistórico, então ele se transformaria numa categoria coisificada e ideológica" (Horkheimer, 1937, pp. 250-251). Por quê? Porque a teoria é "coisificada" (verdinglichte) quando abstraída da vida concreta e se torna unilateral "por meio da retirada dos processos parciais da totalidade da práxis social [. . .] pois o fato percebido é "codeterminado" (ist mitbestimmt) antes mesmo de sua efetiva elaboração teórica por um indivíduo cognoscente consciente" (Horkheimer, 1937, pp. 254, 256). Ou seja, a experiência humana concreta é sempre anterior à teoria e não nasce dela; ao contrário, a teoria sempre pressupõe o mundo da vida em seu denso entrelaçamento narrativo. O mesmo se pode dizer da "Teologia da Libertação". Ao abordar a "mediação filosófica de Teologia", Clodovis Boff relembra:

Todo ser humano é filósofo, desde o momento que faz a pergunta pelo sentido da vida. Na verdade, tal pergunta corresponde a uma atitude mais vivencial que reflexa. Trata-se aí de filosofia no sentido de "postura existencial", aquém ainda de qualquer elaboração teórica (Boff, 1998, p. 371).

Esse é o fundamento filosófico ou a dimensão antropológica incontornável da exigência ética que atravessa qualquer projeto de trabalho transdisciplinar. Edmund Husserl, fundador da fenomenologia contemporânea, no último período de seu filosofar, reconheceu o enraizamento de toda ciência

Sobre o solo, o conteúdo deste mundo pré-dado, no qual está justamente contida toda práxis vital [. . .] o mundo da vida é o mundo permanentemente pré-dado [. . .] qualquer fim o pressupõe, e também o fim universal de conhecê-lo com verdade científica o pressupõe [. . .] (Husserl, 1954, pp. 98, 383).

Esse "mundo circundante pré-teórico" (Lebensumwelt) seria o meio circundante histórico dos grupos humanos antes do nascimento de uma teoria científica". Não sendo nem inferior e nem anterior ao universo do conhecimento e enquanto "nível extracientífico é comparável a um terreno fértil de onde brotariam a vegetação luxuriante do conhecimento crítico e sistemático" (Strasser, 1967, pp. 82-83).

Toda tentativa de pensar o ser humano de modo simultaneamente aberto e sistemático parte da diferença entre o "universo vivido" e o "universo pensado pela ciência", mas sem os conceber como excludentes e sim resguardando "o domínio da pré-compreensão (Vorverständnis) do homem anterior à compreensão fornecida pelas diversas ciências do homem e por outras instâncias de conhecimento formalizado [. . .], mas que serve de suporte a esses conhecimentos formalizados"(Barbotin, 1970, p. 9; Vaz, 1991, p. 158).

A fenomenologia do domínio humano abrange não somente grande diversidade de disciplinas, mas também diferentes esferas de mundo: do ambiente próximo dos objetos físicos e culturais (Umwelt), passando pelas interações simbólicas próprias da intersubjetividade (Mitwelt), até se projetar no horizonte mais abrangente, porém não menos constitutivo do humano, da busca de sentido (Welhorizont). A expressão "projeção num horizonte" evidencia o caráter dinâmico ou histórico do domínio humano em seu processo de permanente atualização, ou seja, como ação (Handlung) de transformação do dado dirigida para fins postos pelo próprio ser humano em sua aspiração jamais satisfeita por autorrealização (Diemer, 1978, pp. 84, 153).

5 CONCLUSÃO: EM DEFESA DA INCONCLUSÃO

A dimensão antropológica é entrecruzada por dois movimentos aparentemente contraditórios que podem ser concebidos dialeticamente: a toda determinação objetiva, a toda tentativa legítima de definição do humano (eidos) corresponde à uma indeterminação ou à uma “afirmação negativa” do sujeito (thesis) que não se deixa apreender inteiramente numa forma objetivada (Vaz, 1991, pp. 161-167).

Na abertura de uma série recente de livros sobre antropologia filosófica, o editor fala em "topologias do humano" e em

Seu propósito de produzir uma compreensão transdisciplinar que, sob as condições do saber contemporâneo, permita que se façam afirmações fundamentais sobre o homem [. . .] ainda que a compreensão transdisciplinar atual, no que diz respeito ao homem seja sempre mais difícil, mas ao mesmo tempo, mais urgente (Schmidinger, 2004, p. 7).

Essa conjunção de grande dificuldade e urgência, de necessidade lógica e histórica e exigência ética dá o contorno das práticas transdisciplinares. Aqui trouxemos alguns subsídios filosóficos muito esgarçados e que não têm nenhuma pretensão de esboçar um modelo de transdisciplinaridade. Não há nenhum modelo desse tipo previamente fixado, pois são os problemas concretos e complexos que podem suscitar os diferentes tipos de modelo. Há antes uma atitude ou uma disposição transdisciplinar diante dos imensos desafios de nosso tempo. Nada há conclusivo a respeito. Husserl, pesquisador infatigável dos sentidos da razão, bem sabia que a ciência é tarefa infinita a ser assumida por sujeitos finitos arraigados no mundo e este é "em cada caso, o mundo presente. O presente atual, como o presente continuamente atual, como presente contínuo continuamente a transformar-se em passado e contendo o presente futuro" (Husserl, 1954, p. 411).

REFERÊNCIAS

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* Doutor e mestre em Filosofia pela UFMG, professor aposentado do Departamento de Filosofia da UFMG, professor titular na FAJE, psicológo. E-mail: carlosdrawin@yahoo.com.br.

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