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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.25 no.2 Belo Horizonte maio/ago. 2019

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2019v25n2p492-512 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2019v25n2p492-512

 

Um estudo de inspiração fenomenológico-hermenêutico sobre a infertilidade masculina

 

A phenomenological-hermeneutic inspired study on male infertility

 

Un estudio de inspiración fenomenológico-hermenéutico acerca de la infertilidad masculina

 

 

Ana Andréa Barbosa Maux*; Elza Dutra**

 

 


Resumo

Culturalmente, procriar é entendido como uma situação que homens e mulheres vivenciarão ao longo da vida. Para o homem, a infertilidade está estreitamente relacionada com perda de masculinidade, com fracasso em seu papel de macho. Este estudo objetivou compreender os impactos que a infertilidade produz na existência de sete homens heterossexuais inférteis. A análise do material partiu da interpretação hermenêutica, tendo como referência teórico-metodológica a analítica da existência, do filósofo Martin Heidegger. Ao final, o estudo enseja reflexões sobre a necessidade de mudanças na formação de base dos meninos, além de espaços de acolhimento aos homens e a suas expressões de sofrimento, bem como o reconhecimento em sua capacidade de superação das situações dolorosas, sem lhes retirar a masculinidade.

Palavras-chave: Infertilidade masculina. Gênero. Pesquisa fenomenológica. Martin Heidegger.


Abstract

Culturally, childbearing is understood as a situation that men and women will experience some time in their lives. For a man, infertility is closely related to the loss of masculinity, together with the failure of his role as a male. This study aimed to understand the impacts caused by infertility in the lives of seven infertile, heterosexual men. Data analysis was based on the hermeneutic interpretation, having as theoretical-methodological guidance the analysis of existence proposed by the philosopher Martin Heidegger. After all, the study engenders reflections on the need of changes in the education of boys in addition to the establishment of a space proper to receive men and the expressions of their suffering, as well as the recognition of their capacity to overcome the painful and difficult situations, without stripping them from their masculinity.

Keywords: Male infertility. Gender. Phenomenological research. Martin Heidegger.


Resumen

Culturalmente, se entiende la procreación como una situación que hombres y mujeres experimentan en la vida. Para los hombres, la infertilidad está estrechamente vinculada a la pérdida de la masculinidad, al fracaso del papel masculino. Este estudio tuvo como objetivo comprender el impacto de la infertilidad en la vida de siete hombres heterosexuales infértiles. El análisis del material vino de la interpretación fenomenológico-hermenéutico del Filósofo Martin Heidegger. Al final, el estudio propone reflexiones sobre la necesidad de cambios en la formación básica de los muchachos y el espacio de protección a los hombres y sus expresiones de sufrimiento, así como de reconocimiento en la capacidad de superación de las situaciones dolorosas sin eliminarlos de la masculinidad.

Palabras clave: Infertilidad masculina. Género. Investigación fenomenológica. Martin Heidegger.

1. INTRODUÇÃO

Para muitas pessoas, ter filhos é um projeto que está presente em seu plano de vida. Ainda que a vinda destes possa não fazer parte dos planos de todas as pessoas, costuma ser um projeto frequente para grande parte dos casais que iniciam um relacionamento conjugal, além de também configurar-se como uma cobrança social para estes. Apesar das mudanças ocorridas nos papéis de gênero e nos espaços conquistados por mulheres e homens, tanto nos ditos públicos quanto naqueles considerados privados, a cultura ainda carrega marcadamente em seu bojo as questões de gênero e poder, que ditam modos de ser previamente dados e que acabam por engessar homens e mulheres nesses construtos.

Entre os principais aspectos que embasam a construção de modos de ser de homens e mulheres está a questão da expressão sexual. A heteronormatização dita o que caracteriza o macho e a fêmea, além de apresentar, com base nos modelos idealizados, aqueles considerados errados ou marginais. Meninos e meninas, desde seu nascimento, passam a receber as influências sociais sobre o que os identificam como homens e mulheres, o que contribui para a construção de sua subjetividade (Boris, 2011; Silva, 2013). Especificamente sobre o masculino, este é apresentado como sinônimo de poder, força e potência. A virilidade, o bom desempenho sexual e a fertilidade são características fundamentais que devem estar presentes no homem dito "macho".

Na construção sociocultural da subjetividade dos homens contemporâneos, autores como Boris (2011) e Silva (2013) apresentam algumas condições que se mostram essenciais. Boris (2011) destaca a necessidade de que o homem prove, para si e para os outros, que não é uma mulher, não é um bebê e não é um homossexual. Para tanto, a virilidade estaria entre as confirmações de que ele é um homem adulto, heterossexual e potente. Silva (2013) apresenta a exigência de uma tripla virilidade na construção do ser homem: psíquica (apresentação de comportamentos que não demonstrem fragilidade ou insegurança), moral (demonstrar força a partir de uma postura de provedor, de mostrar-se socialmente produtivo) e sexual (relacionado tanto à ereção peniana quanto à heterossexualidade e eterna disponibilidade para o ato sexual). Havemos de pensar então que, numa sociedade que impõe tais características viris como mais valorizadas, os problemas relacionados com a área sexual, como é o caso da infertilidade (que restringem ou impossibilitam o homem de confirmar, por esses símbolos masculinos de poder, sua macheza), sejam causadores de profundas transformações em seu modo de se perceber e se relacionar no mundo, possibilitando, inclusive, transcender o discurso posto e construir novos sentidos para sua existência.

Apesar de toda a valorização social, no campo científico, os estudos sobre o homem parecem despertar menos interesse do que os estudos sobre a mulher. No Brasil, as pesquisas no campo da masculinidade ganharam força somente no fim da década de 1980 e início da década seguinte, embora, em nível mundial, tais estudos já tivessem iniciado na década anterior (Mendonça, Menandro, & Trindade, 2011; Silva, 2013).

Estudos epidemiológicos sobre os homens brasileiros e latino-americanos têm apontado dados significativos para pensarmos como essa população tem se apresentado e como os modos de ser homem neste início de século têm influenciado em sua qualidade de vida. De acordo com Silva (2013), as pesquisas confirmam que a população masculina está em primeiro lugar no número de homicídios, nas tentativas de suicídio, de morte por acidentes, principalmente automobilísticos, no uso excessivo de álcool e outras drogas ilícitas, além de serem os maiores protagonistas de agressões físicas e nas práticas de roubo e assalto, o que leva, como consequência, a uma maior população carcerária.

Especificamente sobre a saúde reprodutiva, os estudos apontam que há, por parte da população masculina, falta de cuidado e de uso de proteção, ficando exposta a maior risco de adquirir doenças sexualmente transmissíveis e problemas de fertilidade (Souza, 2005). As recentes conferências internacionais sobre políticas públicas de saúde reprodutiva têm colocado a necessidade de incluir os homens nas discussões que envolvem a saúde reprodutiva, orientando os países a elaborarem programas voltados para possibilitar aos homens acesso à informação, orientação e serviço de saúde reprodutiva.

Os estudos sobre a temática da infertilidade masculina são frequentes no campo da Medicina. Há uma rica discussão a respeito de causas, métodos de investigação e diagnóstico, bem como sobre possibilidades de tratamento, mediante o uso de medicação ou hormônios, mudanças nos hábitos de vida e procedimentos cirúrgicos. O aspecto psicológico não recebe a mesma atenção, sendo a produção significativamente mais tímida e voltada, principalmente, para as repercussões para a mulher ou para o casal. De acordo com Baluch, Nasseri, e Aghssa (1998), os primeiros estudos voltados à população masculina tinham um aspecto anedótico e, hoje, grande parte ainda está direcionada aos fatores fisiológicos ou médicos.

O termo infertilidade utilizado neste trabalho está em acordo com a definição dada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), como sendo a incapacidade de um ou de ambos os parceiros de uma relação heterossexual, quer por questões orgânicas ou não, engravidar no período de, no mínimo, um ano de relações sexuais sem uso de métodos contraceptivos. Segundo a OMS, a infertilidade atinge entre 8% a 15% dos casais, mas acredita-se que esse percentual vem aumentando nos últimos anos devido a vários fatores, como o adiamento da maternidade, o aumento da prevalência das infecções de transmissão sexual, o sedentarismo, a obesidade, o consumo de drogas e a poluição (Portugal, 2008). Especificamente em relação aos homens, nos últimos anos, tem aumentado o número de problemas de infertilidade devido a substâncias químicas (como solventes e agrotóxicos) que atuam como desreguladores endócrinos. Diante desses dados, o objetivo deste artigo é apresentar as reflexões geradas de um estudo de Maux (2014), que objetivou compreender os sentidos que a infertilidade produz na existência do homem heterossexual e que recebe o diagnóstico de infertilidade masculina.

2. O OLHAR FENOMENOLÓGICO-HERMENÊUTICO

De acordo com Heidegger (1999), a maneira cotidiana de nos relacionarmos com os outros e com as coisas, o nosso modo de ser habitual é impróprio ou impessoal. O que ele define por impropriedade diz respeito a uma noção de convivência em que não há espaço para a emergência de singularidades, quando não se vislumbra diferenciação entre o eu e os outros. Conforme suas palavras "Os outros não significam todo o resto dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria. Os outros, ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, ninguém se diferencia propriamente, entre os quais também se está" (Heidegger, 1999, pp. 169-170, grifo do autor). Tal modo de vida cotidiano impessoal nos isenta da liberdade de sermos nós mesmos e da responsabilidade de empunhar o nosso projeto de ser. Imersos na impessoalidade, adotamos o discurso já posto pela sociedade, pela cultura e pela família (Azevedo, 2013), o que acaba por gerar um desvio do projeto essencial de tornar-se si mesmo em favor das preocupações do mundo, fazendo com que cada um de nós se mantenha numa situação de encobrimento de seu ser, imerso numa vida social em que o eu se confunde com a massa coletiva (Heidegger, 1999).

Apesar da característica ontológica de ser em constante devir (Heidegger, 1999), que pode escolher o que deseja ser a cada momento do seu existir, considerando os limites e possibilidades impostas pelo horizonte histórico no qual se encontra, na cotidianidade, na maioria das vezes, vivemos de forma imprópria. O que dizemos com isso, baseadas nas ideias de Heidegger (1999) é que, embora, ao nascermos, já encontremos um mundo construído e que nos apresenta modelos de ser homem e de ser mulher, a apropriação de tudo isso acontecerá a partir do sentido que daremos ao mundo e às relações. A todo instante, fazemos escolhas recorrendo, justamente, ao sentido que damos à situação vivida. É nesse momento que lançamos mão do que já nos é habitual, aquilo que aprendemos na convivência na sociedade da qual fazemos parte e com a qual aprendemos a ser. Em relação aos homens, temos uma sociedade que apresenta "scripts autoopressivos em torno da correspondência a uma masculinidade-padrão" (Silva, 2013, p. 168).

Ao nascer, passamos a fazer parte de um mundo que já estava ali antes de nós, onde há regras, valores, jeitos de pensar e modos de ser valorizados e outros desvalorizados. Entre os modos de ser possíveis estão aqueles relacionados ao ser homem e ao ser mulher. No caso do estudo referenciado (Maux, 2014), os participantes fazem parte de uma sociedade nordestina brasileira, que tem no ideal do "cabra-macho" aquele homem corajoso e forte diante das adversidades, que demonstra sua potência viril mantendo uma vida sexual satisfatória e tendo, na capacidade de engravidar uma mulher, a confirmação de sua macheza (Albuquerque Júnior, 1999). Com base nessa característica, a noção de si mesmo como alguém saudável, potente e capaz de cumprir com seu "destino socialmente natural e esperado" é posto à prova a partir da descoberta da infertilidade. Segundo Lourenço (2010) a infertilidade pode estar associada a uma sensação de desmoralização, de perda e destruição de um projeto de vida.

O sentimento de perda, que por vezes acompanha a descoberta da infertilidade, pode causar angústia por se saber que uma certeza sobre sua vida lhe foi roubada. Aparece um vazio, uma compreensão da falta de sentido existencial (Maux, 2014). A percepção da angústia, que Heidegger (1999) considera como ontológica, revela para o ser humano que ele, e só ele, é livre e responsável por dar conta de ser si mesmo. A partir desse estado de angústia, abre-se para a pessoa a alternativa de voltar para a vida imprópria ou transcender. Transcender diz respeito a atribuir sentido àquele diagnóstico e ampliar as possibilidades de ser que se desvelam, entre elas fazer uso dos tratamentos médicos, optar por não ter filhos ou adotar. É sentir-se livre para empunhar o projeto de ser si mesmo.

3. OS PASSOS METODOLÓGICOS

O olhar lançado ao fenômeno da infertilidade masculina partiu de um referencial fenomenológico, que tem por interesse a experiência, o mundo vivido de cada sujeito, compreendendo que este é o mundo concreto. Nosso objetivo foi o desvelamento do fenômeno, que se dá a partir dos sentidos compreendidos pelo pesquisador, fruto da relação construída a partir dos encontros com os colaboradores e com o que estes lhe apresentaram a respeito daquilo que vivenciam.

Heidegger usa a palavra hermenêutica como sinônimo de interpretação de sentido. Para ele, todo desvelar o mundo é sempre interpretativo porque parte de uma existência. Esse é o modo de ser do homem. Nós sempre interpretamos. "Toda a compreensão guarda em si a possibilidade de interpretação, isto é, de uma apropriação do que se compreende" (Heidegger, 1999, p. 218). Assim, toda compreensão é circular. Antes mesmo de interpretar, o pesquisador já tem uma pré-compreensão daquilo que ele vai interpretar. A compreensão não é uma atividade que aconteça apenas em alguns momentos, mas uma estrutura essencial do Dasein. O existir humano (ou Dasein, na linguagem heideggeriana) se caracteriza como a abertura que possibilita que fenômenos venham ao encontro, que apareçam.

Como procedimento metodológico, empregamos a entrevista narrativa, como pensada por Benjamin (1994) e sistematizada por Schmidt (1990) e Dutra (2002). Compreendemos a narrativa como uma forma de transmissão de experiência de uma pessoa para outra. O narrador é aquele que ouve a história de alguém e transmite aos demais, partindo de sua compreensão sobre o que lhe foi relatado.

Heidegger chama o ato de compreender de "visão do Dasein". Com base em seu estado de ânimo, o Dasein ilumina determinadas possibilidades. Ele se compreende e, assim, compreende os demais e o mundo a partir dessas possibilidades. O que se desvela não é a totalidade do fenômeno, mas uma de suas muitas possibilidades de iluminação ou aparecimento. E isso acontece com base na relação entre pesquisador e colaborador, mostrando a relevância da participação ativa do pesquisador na elaboração e execução de uma pesquisa. Ele compreende o fenômeno com determinado humor e, na sequência, expressa essa compreensão em palavras. A linguagem é a articulação da compreensibilidade, portanto se acha à base de toda interpretação e enunciado (Heidegger, 1999). Sobre a importância da linguagem, Heidegger (2009) afirma que não podemos cogitar a existência de relacionamento humano sem ela. Contudo a linguagem não caracteriza apenas o que se fala, mas o que se ouve. O filósofo chamou de interpretação a elaboração das possibilidades projetadas na compreensão. Assim, compreender é sempre interpretar. A posição prévia, a visão prévia e a concepção prévia formam o círculo hermenêutico apresentado por Heidegger (1999) em Ser e tempo. Com base no que ele nos fala nessa obra, assim concebemos a circularidade com fins práticos de pesquisa:

1) A posição prévia diz das ideias iniciais do pesquisador sobre o fenômeno. Quando ele parte para a entrevista com os colaboradores do estudo, precisa fazer o exercício de abertura dessa posição prévia, tornando-se a clareira na qual o fenômeno poderá se desvelar. Embora tenhamos ideias iniciais sobre como a descoberta da infertilidade masculina pode afetar o homem, colocamo- nos disponíveis para conhecer, com base na experiência existencial de quem o vivencia, o fenômeno da infertilidade.
2) O encontro com o colaborador já permite ao pesquisador compreender novos sentidos sobre o fenômeno. Aqui temos a visão prévia. Nesse estágio, já é possível iniciar recortes do fenômeno com base naquilo que o pesquisador considera mais significativo, ou seja, no universo de possibilidades interpretativas possíveis, já se inicia uma delimitação dessas possibilidades.
3) A concepção prévia diz respeito à apreensão desse conjunto de posição e visão prévias. É o momento no qual as articulações já se juntam. O que se compreendia antes com o que se deu a conhecer a partir do encontro com o fenômeno. Trata-se dos sentidos possibilitados pela interpretação gerada a partir do encontro das ideias iniciais sobre o ser homem infértil, as narrativas apresentadas pelos colaboradores, as anotações feitas com base nas afetações que os encontros com as pessoas e suas narrativas propor cionaram, bem como a partir do diálogo com a literatura sobre o assunto pesquisado.

O levantamento teórico nos fez compreender que, de maneira geral, o planejamento de filhos acontece na vida dos homens a partir da união estável com uma mulher, com o objetivo de constituir uma família. Ademais, a descoberta da infertilidade geralmente se dá a partir de exames realizados pelos casais, com o objetivo de descobrir as causas para a ausência de uma gravidez. Assim, o critério de inclusão na pesquisa foi que os participantes fossem homens heterossexuais, em união estável, sem filhos e que tivessem recebido o diagnóstico de infertilidade masculina.

A divulgação se deu por meio de cartazes afixados em um ambulatório de reprodução assistida da rede pública, de e-mails enviados aos contatos profissionais da pesquisadora e durante cursos preparatórios à adoção, nos quais a pesquisadora é docente. Voluntariamente, sete homens se disponibilizaram para participar da pesquisa, formando, então, o total dos participantes, cujos nomes fictícios, com o objetivo de preservar suas identidades, foram escolhidos por eles ou pelo pesquisador, quando eles assim optaram. Tivemos por colaboradores: Pedro Paulo (35 anos, gerente de uma empresa de grande porte, oito anos de casado e fazia cinco anos aproximadamente que recebera o diagnóstico de infertilidade, por ocasião de investigação para descobrir a causa da infertilidade conjugal); Luís (42 anos, funcionário público, casado pela segunda vez havia quatro anos. A descoberta da infertilidade foi um processo. A cada exame, ele era informado sobre a diminuição na quantidade de espermatozoides produzidos, até que, fazia um ano e meio que tivera o diagnóstico definitivo); Ojuara (33 anos, autônomo, três anos de casado, sendo aquele seu quarto relacionamento. O fato de não conseguir engravidar as companheiras foi o suficiente para que ele assumisse a condição de infértil); Semente (51 anos, professor, mais de 20 anos de casado, sendo que recebera o diagnóstico havia aproximadamente 15 anos. A esposa tinha filhos de um casamento anterior. Então a ausência de uma gravidez já o mobilizou para investigar a situação); Alexandre (31 anos, gerente financeiro, três anos de casado, fazia dez anos que descobrira ser portador da síndrome de Klinefelter, responsável pela infertilidade); Porpeta (32 anos, técnico em informática, descobrira a infertilidade havia quatro anos, a partir de uma consulta com um urologista após uma crise renal); e Rui (31 anos, gerente de vendas, quatro anos de casado, recebera o diagnóstico havia três anos, em investigação para descobrir a causa pela infertilidade do casal).

Foram realizadas entrevistas narrativas individuais, em local de escolha dos entrevistados. Partiu-se da questão aberta: "Como foi para você receber o diagnóstico de infertilidade e em que isso repercutiu em sua vida pessoal, conjugal e profissional?".

4. PASSOS DA ANÁLISE

A análise já teve início no próprio processo de construção da pesquisa, com a pré-compreensão, e seguiu os passos listados a seguir, adaptados por nós com base no que propõem Schmidt (1990), Dutra (2002) e Azevedo (2013), bem como em nossa compreensão da fase interpretativa proposta por Heidegger (1999), na obra Ser e tempo. Assim, os passos de análise foram:

1) registro das afetações: momento após o término de cada entrevista, no qual o entrevistador anotava, em um caderno, as impressões imediatamente sentidas por ocasião daquele encontro (sentimentos, dúvidas, confirmações de sua visão prévia ou novos sentidos surgidos após os encontros);
2) transcrição e literalização das narrativas. A transcrição consiste na primeira versão digitada da narrativa, e a literalização trata da arrumação do texto de modo a deixá-lo mais literário. Por exemplo, os cacoetes de linguagem são trocados por palavras mais adequadas linguisticamente e as perguntas realizadas pelo entrevistador no decorrer da entrevista são suprimidas, possibilitando ao texto um formato de narrativa, mas sem perder o conteúdo e sentido do que foi dito. Visando a conferir fidedignidade à narrativa, esta foi devolvida aos colaboradores para apreciação do material e confirmação de que ali estava sua experiência narrada. Para tal, foi marcado outro encontro com eles. A cada novo encontro, com as narrativas e os colaboradores, caso surgissem novos sentidos, eram inclusos no caderno de anotações;
3) elaboração do texto interpretativo: trata-se do recorte remissivo das possibilidades interpretativas. O pesquisador analisa as afetações e a compreensão que os encontros lhe possibilitaram, com base nos registros das afetações e das leituras das narrativas, favorecendo a construção do texto.

Como os passos de análise se encontram dentro de uma circularidade hermenêutica, já consideramos que eles tiveram início no próprio processo de construção da pesquisa, com a pré-compreensão. O movimento reflexivo descrito nas fases 1 e 2 correspondem à visão prévia, quando novos sentidos vão surgindo a partir do aprofundamento no fenômeno estudado, tanto da revisão de literatura quanto dos encontros com os colaboradores e suas narrativas e da leitura do caderno de anotações. A etapa 3 diz respeito ao diálogo elaborado a partir das etapas de posição e visão prévias, correspondendo à concepção prévia ou ao processo de interpretação final.

5. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

primeiro aspecto que nos chamou a atenção no estudo diz respeito ao contexto social apresentado pelos colaboradores em relação ao homem com diagnóstico de infertilidade:

A cultura do Seridó é única, é a cultura de lampião, é a cultura do homem do campo, é aquela cultura do homem sofrido, do homem do sertão, do seu costume, da sua religião. [. . .] Lá no Seridó, na terra da gente, a questão da infertilidade é um tabu. Homens que não conseguem ter filho, lá eles chamam de capado, chamam logo de brocha. Até de homossexual chamam (Ojuara).

Este estudo foi realizado no Nordeste, cujas histórias de seu povo, cantadas na literatura de cordel e nos ditos populares transmitidos entre as gerações, envolvem cenários marcados pelas figuras do coronel e do cangaceiro, delineando a imagem do "cabra-macho" nordestino: forte, destemido, potente, cujos atos de valentia para provar sua masculinidade são frequentes. Seu corpo exala testosterona, transparece virilidade e justifica sua postura de mulherengo (Albuquerque Júnior, 1999).

Semente e Rui exemplificaram, com base em comentários frequentemente ouvidos por homens que não conseguem gerar filhos: "Ah, mas você não é homem, não, rapaz? Não faz filho?" (Semente) ou "Olha, chegou o gala-rala, que não sabe fazer menino. Quer que eu faça por você?" (Rui). Eles construíram suas experiências de vida inseridos nessa cultura, cujo ideal de homem segue o modelo de masculinidade hegemônica, caracterizado por um homem que exerce o poder, o controle e a heterossexualidade, esta vinculada à virilidade e à força como atributos fundamentais (Boris, 2011; Silva, 2013). Identificados com esse modelo, a possibilidade de haver alguma dificuldade reprodutiva ultrapassa os limites aceitáveis e que estão presentes no horizonte cotidiano de sentido que compõe a vida desses homens.

Imersos num contexto social que apresenta o homem como viril e potente, eles sequer cogitavam que a ausência de uma gravidez pudesse ser devido a alguma condição que os assista. Procurar médicos, fazer exames, ter problemas de saúde seriam questões relacionadas ao feminino, não fazendo parte de seu cotidiano. Quando a gravidez não acontece, as mulheres são vistas como as responsáveis e são elas que buscam ajuda médica.

Para os colaboradores do estudo, a ida ao médico somente aconteceu quando solicitado ou por uma condição externa (doença ou ausência de filhos). A literatura já expõe sobre a baixa participação masculina nos serviços de saúde, reforçando o ideal de masculinidade hegemônica, que não abre espaço para que o homem se permita ser viril e vulnerável às doenças, cuidadoso com sua saúde, mas sem deixar de ser macho.

Estudos mostram que uma das razões para a baixa participação masculina por serviços básicos de saúde diz respeito à concepção de que sua masculinidade pode ser posta à prova caso busquem o serviço. Buscar assistência médica mostraria fraqueza. E, novamente, tal concepção vai de encontro ao projeto de existência desses homens. Se a masculinidade já é posta à prova em sua situação de consulta médica rotineira, o que pensar em casos de problemas na área sexual?

Pensando na complexidade que envolve a construção do modelo de masculinidade hegemônico, consideramos que a descoberta da infertilidade é muito difícil de ser aceita. Ela vai de encontro a um modo de se reconhecer a si mesmo, colocando seus projetos de existência em xeque. Nas experiências de Luís, Ojuara, Pedro Paulo, Porpeta e Rui, quando a possibilidade surgiu, foi rapidamente descartada, e eles escolheram, inicialmente, nem ventilar a ideia ou responsabilizar a mulher pela ausência de uma gestação.

Aí, quando ela resolveu parar, a gente passou um ano sem ela tomar anticoncepcional, e eu achava estranho, porque não vinha. Quando deu nove meses, eu lembro que, quando deu nove meses, eu disse: olha, tá estranho. Vá investigar porque você tem algum problema. Como sempre, o homem não quer admitir que o problema é seu (Rui).

Consideramos que isso ocorreu porque a possibilidade de serem eles incapazes de engravidar uma mulher incomoda justamente por mexer nesse modelo de masculinidade que eles internalizaram e que direcionou suas escolhas e as maneiras de se relacionarem consigo mesmos e com os outros Daseins, e no qual se reconhecem como homens.

O diagnóstico foi um acontecimento imprevisto, que retirou esses homens da familiaridade com a qual conviviam em relação à sua masculinidade, evocando o desamparo fundamental que caracteriza a existência humana. Saber-se infértil desorganizou a referência de masculino que sustentava suas existências, surgindo a estranheza diante de todas as verdades que conheciam sobre si mesmos, sobre o que é ser homem, ser potente e ser viril.

Porpeta afirmou que se sentia sem serventia, comparando-se com o lixo. Também fez comparações com um morador de rua: sujo, sem higiene, sem formação, sem emprego para sustentar a família, mas cuja mulher estava grávida. Enquanto ele, um homem dotado dos atributos de um "macho", não conseguia engravidar a mulher.

Parece-nos que o sentido de sua existência ficou reduzido à reprodução. Diante da impossibilidade de gerar um filho, ele não teria mais valor, não havendo mais sentido em seu existir. Aspectos de sua virilidade foram postos à prova. O que lhe era familiar, suas verdades sobre ser homem, do ponto de vista moral e psíquico (Silva, 2013), foram arrancadas, sobrando o vazio. Então ele se sentia um lixo, inclusive pensou em morrer, chegando a questionar-se: "Viver para que? Agora acabou tudo!" (Porpeta).

Outros colaboradores também questionaram seu papel dentro da relação afetiva com as mulheres. No caso de Rui, o sentimento de culpa foi apresentado:

Eu queria dar essa alegria para minha esposa, a sensação de ser mãe. Então dá culpa por não poder dar e também porque ela queria muito. [. . .] Eu me sentia a pior pessoa do mundo, achando que [. . .] O medo da minha esposa me deixar, por eu não poder dar essa situação para ela (Rui).

Alexandre foi o único colaborador que considerou a condição de infertilidade como positiva, posto que, na época da descoberta, ele se sentia livre para transar sem a preocupação de engravidar uma mulher. A infertilidade ganhou característica positiva, qual seja, como método contraceptivo. Ele já não precisava mais se preocupar com o uso do preservativo nem com uma gravidez indesejada. Cumpria o que a família impusera, que era não ser pai até que tivesse condições financeiras para criar um filho. Poderia transar sem se preocupar com a vinda indesejada de filhos. Mas, relembra a reação do pai: "Quando eu descobri, meu pai ficou preocupado comigo, porque ele achou que eu iria ficar sozinho na vida. Ninguém iria me querer mais" (Alexandre).

As narrativas de Alexandre e Rui novamente nos fazem pensar na pressão que o modelo de masculinidade hegemônico impõe aos homens, especialmente aqueles heterossexuais casados ou que convivem em união estável. Para um homem solteiro e cujo desejo é poder transar livremente, sem se preocupar com uma gravidez indesejada de uma de suas parceiras, a infertilidade pode ser pensada sob um prisma positivo. Para os casados, ser capaz de engravidar uma mulher está relacionado à função de provedor (financeiro e sexual, mediante a procriação). Pensamos que, nesses casos, ser infértil retira esse poder de provedor (sexual) do homem, o que pode levar à insegurança quanto à sua relevância para uma mulher e o receio de abandono pela falta de serventia.

Ojuara passou dez anos entre a suspeita e a decisão de se assumir infértil, relembrando que precisou digerir os fatos:

Quando eu comecei a suspeitar da infertilidade, no início me causou uma coisa [. . .] Eu sou fechado, eu sou como: você come uma comida, faz a digestão e depois você expulsa a comida. Então, eu fiquei fechado. Mas depois eu comecei a ver que aquilo estava me incomodando. E eu vi que não tinha nada demais eu divulgar. [. . .] Isso não vai me deixar mais homem ou menos homem. Isso não vai mexer em minha masculinidade nem nada [. . .]. Eu acho que, quando você tem um problema, se o ser humano tem um problema, ele faz a digestão do problema. Ele digere o problema e depois ele rasga (Ojuara).

Ele apresentou a metáfora da digestão do alimento, o que nos lembra o processo de digestão dos mamíferos ruminantes, em que os alimentos, após mastigados e engolidos, ficam algum tempo em uma determinada área do estômago, retornando à boca para serem novamente mastigados e engolidos. Somente depois disso, os alimentos seguirão o restante do percurso digestivo. O verbo ruminar também tem o significado de refletir com calma e cuidado, meditar. Assim, aproveitando-nos da metáfora utilizada por Ojuara, refletimos que o diagnóstico de infertilidade tornou necessário um período de reflexão demorada, cuidadosa e, por que não dizer, persistente, até que essa condição lhe fizesse sentido, oportunizando se abrir para a possibilidade de continuar a se reconhecer como macho, embora não pudesse engravidar uma mulher.

Nos exames pré-nupciais, Luís já recebeu informações sobre a baixa quantidade de espermatozoides que ele produzia e que era inferior à média. Após algum tempo, diante da ausência de uma gravidez, ele buscou outros médicos, realizando novos exames e aprofundando-se na questão, mas somente aceitando o diagnóstico com o passar do tempo.

Então, a notícia foi chegando aos poucos. Num primeiro momento, é difícil. Você se sente, ao mesmo tempo, um pouco incapaz, que você é menor do que os outros. [. . .] Como veio aos poucos, veio uma perda progressiva e tal. Veio chegando: "Oh, você não tem quase nada". Você tem aquele baque naqueles primeiros dias (Luís).

Deparar-se com o diagnóstico da infertilidade, sendo-lhe apontada uma redução progressiva de sua capacidade reprodutiva, tanto pela diminuição da quantidade quanto da qualidade dos espermatozoides, afetou diretamente seu reconhecimento como homem. A reação inicial trouxe um sentimento de incapacidade, de não pertencente àquela condição, fazendo com que se sentisse menor do que os outros homens.

Diante da angústia, a possibilidade de não acreditar no diagnóstico foi uma escolha possível. Foi necessário um demorar-se junto à questão, de modo a poder habitar esse modo de ser. O habitar a que nos referimos está relacionado ao existir. Esse habitar diz da abertura de sentido ou, como afirma Heidegger (2006), habitar diz de um demorar-se junto às coisas. Trata-se da construção de um sentido que possibilita ao homem uma aproximação com o seu ser si mesmo, de maneira a poder habitá-lo. No cotidiano, ele habita o que já está habitado por todos. Fica absorvido no que já está dado, sendo uma habitação tranquilizadora e satisfatória, pois, além de abrigo, oferece identificação com os demais que ali se encontram. Uma habitação que é de todos, mas não diz de ninguém. Um habitar que a todos pertence indistintamente, mas que não traz o sentimento de pertença, não traz a proximidade de um habitar próprio.

O homem habita propriamente quando algo lhe pertence no sentido de ali ele se encontrar a si mesmo no que faz, pensa, diz e sente. Para esse habitar próprio, faz-se necessário um demorar-se junto às coisas, um meditar sobre suas escolhas, seus projetos, sobre a destinação de seu existir. A metáfora usada por Ojuara exemplifica esse movimento de habitar a existência própria. Sua narrativa bem como a de Luís mostram-nos que, a partir do momento em que desconfianças sobre a fertilidade foram sendo apontadas, o modelo de masculino que lhes era familiar foi colocado à prova, e eles passaram a se estranhar. Ambos precisaram de um período de ruminação junto à clareira que agora iluminava outros modos de ser. Passaram a meditar sobre as verdades absolutas que até então conduziam suas escolhas e sobre seus projetos de ser si mesmo. Eles pareceram abraçar o poder ser e se sentiram livres para empunhar o projeto de ser si mesmo.

Nesse processo, Ojuara escolheu a mesa de bar para tornar pública sua infertilidade.

Então eu comecei logo em mesa de bar. Bebendo com os meus amigos, eu dizia: "Rapaz, eu não faço menino, não". Aí, os cabras: "Ah, não sei o quê, não sei o quê [. . .]" e aquelas brincadeiras, tipo: "Traga aqui sua mulher para ver". Aí começava aquela brincadeira. E a brincadeira dos meus amigos fez com que eu superasse.

O Dasein traz como característica fundamental o fato de "ser com", ou seja, existir com base nas relações afetivas com os outros Daseins. Na cotidianidade, cada um se reconhece com base em seu mundo mais próximo, mais familiar. É nele que as relações afetivas mais caras se fazem presentes. Pensamos que Ojuara escolheu um lugar socialmente representativo do masculino, no qual os homens se encontram para falar "assuntos de homens" para, em meio aos outros homens, reafirmar-se como um igual.

Mas, diferentemente de Ojuara e também de Luís, Porpeta não falava, não divulgava sua condição de infértil e ficava constrangido quando descobria que outras pessoas sabiam de sua condição. Não se sentia à vontade e via a infertilidade como um desafio à sua masculinidade. Sentia-se anormal e reclamava, inclusive, o direito de estacionar em vaga destinada às pessoas portadoras de necessidades especiais, posto se sentir deficiente.

Santos e Sá (2013) afirmam que quanto mais livre se é, mais aberto às possibilidades existenciais. Refletimos que, no caso de Porpeta, restrito a uma visão de si mesmo como anormal, ele limitava suas possibilidades de existir a tal condição. Encarcerado nessa possibilidade de existir como sendo um homem deficiente, não encontrava, naquele modo de ser, o abrigo seguro e tranquilo no qual podia habitar. Mas se via num cativeiro gerador de sofrimento profundo, repercutindo em diversas áreas da sua vida. Ele também descreveu consequências na área sexual, com problemas no desempenho e satisfação sexual, bem como queda em sua produtividade laboral. O que percebemos em Porpeta é que não se reconhecer mais num modelo de masculino hegemônico gerou um desassossego existencial, no qual ele se sentia desalojado.

Novamente, trazemos o exemplo de Ojuara para refletir sobre a abertura para a liberdade de ser si mesmo, de empunhar o seu poder ser e assumir-se como responsável por suas escolhas e condução de sua existência:

Eu nunca fiz exame para confirmar. Dizem que o que os olhos não veem o que coração não sente? Então, eu não quero saber. [. . .] E eu posso, também, mudar de ideia amanhã e, quem sabe, fazer um tratamento. [. . .] Há outras possibilidades, mas que essas possibilidades, hoje, no momento, são nulas, estão eliminadas. Mas, não sei, amanhã.

Baseado numa postura própria de tomar nas mãos as rédeas de sua vida, ele reconheceu a existência de outras possibilidades, assumindo a sua escolha como aquela, entre tantas, que lhe faz mais sentido hoje. Aquela na qual ele se reconhece a si mesmo. Em uma das situações em que assumiu publicamente sua condição de infértil, ele descreve:

E mamãe também já vinha cobrando: um filho, um filho. [. . .]. Eu disse "O problema não é com ela não. O problema é comigo". E mamãe disse: "Tá bom de mandar ela fazer uns tratamentos". "Não! O problema não é ela. É comigo. Eu estou no quarto casamento, mamãe, e eu não engravidei nenhuma das minhas quatro mulheres. Então, é comigo.” “Ah, mas não tem problema, a gente vai fazer um tratamento".

Primeiramente, sua mãe colocou a responsabilidade na nora, sugerindo que ela fizesse exames e, em seguida, resolveu pelo filho, ao dizer que eles fariam um tratamento. Porpeta e Rui relataram experiências em que os familiares se prontificaram para ajudar, conseguindo hospital, consulta médica e financiamento para os tratamentos de reprodução assistida. "E minha família ficou sabendo depois e se comprometeu em pagar para mim, e eu: 'Não. Não quero esse tipo de coisa. O problema é meu. Eu vou arranjar'" (Rui).

A experiência de Semente também descreve uma espécie de auxílio. A nora lhe disse: "Puxa, eu vou ter um filho para dar a vocês. Para vocês criarem" (Semente).

Em todas essas situações, chama a atenção a forma protetiva e dominadora com que os parentes se relacionam com os colaboradores, buscando "poupá-los" do assunto ou, como nos descreve Heidegger (1999) sobre o tipo de cuidado substitutivo, uma relação em que coloca o outro no colo, fazendo tudo por ele, não permitindo que ele tenha autonomia por sua existência e por suas decisões. E essa atitude não permite que eles sofram ou que encontrem outros sentidos a partir da experiência e angústia por perder o referencial socialmente internalizado de que a fertilidade é uma das condições que definem o homem como macho.

Para Rui e Porpeta, o cuidado da família e a oferta para bancar o tratamento foram percebidos como ofensivos. Pensamos que isso se deva ao fato de que, com a atitude de fazer por eles, os parentes lhes retiraram o papel de provedor, de homem capaz de prover financeiramente os problemas da família, relembrando que eles não foram capazes de cumprir o papel de provedor reprodutivo dela ou, conforme Silva (2013), de provedor moral do núcleo familiar.

Em diversas situações de divulgação do estudo, recebemos feedbacks de pessoas explicando conhecer algum homem infértil, mas achavam que seria sofrido para eles falar sobre o assunto e, em virtude disso, não os informaria sobre a pesquisa. Ou, ainda, que não sabiam como se aproximar, por considerarem que seria constrangedor para o homem saber que terceiros tinham conhecimento sobre sua infertilidade. Parecia haver um cuidado, em relação a esse homem, similar ao cuidado dos parentes dos colaboradores da pesquisa.

Por fim, na relação de cuidado com as esposas, os colaboradores Pedro Paulo, Luís, Rui e Ojuara descreveram situações em que fizeram o que estava a seu alcance para garantir que as esposas ficassem satisfeitas, ainda que isso significasse abrir mão do que lhes era precioso. Trazemos o relato de Luís, que informou que, embora tenha sido difícil pensar na esposa grávida de outro homem, aceitou a submissão à reprodução assistida, mediante a doação de espermatozoides, como alternativa para que a esposa realizasse o sonho da gestação:

Partiu de mim a sugestão à minha esposa, para a gente fazer junto com um banco de esperma, e ela fez [. . .]. Porque eu sei que, para a mulher, é importante essa questão de engravidar, porque eu sempre imagino que o homem, quando tem uma atitude dessa, é uma atitude de grandeza, de, em nome do bem do relacionamento [. . .] Você está abrindo mão de ser o pai biológico, no caso.

Assim como Luís, que passa por cima de seu orgulho e aceita que a esposa engravide com sêmen que não é o seu, outros colaboradores tiveram atitudes similares: Pedro Paulo vendeu uma moto, que lhe era um bem precioso, para custear tratamentos de reprodução assistida; Ojuara deixou a vida boêmia e passou a assumir uma postura caseira, para ser o marido que a esposa desejava; e Rui cogitou agir fora de seus valores de retidão e, em desconformidade com o que rege a Lei, adotar ilegalmente uma criança, para deixar a esposa feliz.

Em todos esses exemplos, observamos existir, em cada colaborador, uma atitude de consideração e dedicação com aquela mulher que o apoiou em sua situação e não o abandonou, permanecendo a seu lado. Se eles não puderam mostrar potência reprodutiva, o fazem por um comportamento de dedicação e apoio às esposas, demonstrando serem fortes, capazes de encontrar soluções para os problemas e manter a família amparada e protegida.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Socialmente, nós criamos os meninos para serem guerreiros contemporâneos: fortes, potentes e viris. Eles são incentivados a discutir questões que envolvam finanças, crises mundiais e questões ambientais. Contudo não os criamos para lidarem com os desafios emocionais. Nós os poupamos de se aproximarem de situações mais desafiadoras do ponto de vista afetivo. Eles não são poupados das atividades pesadas, mas não falamos com eles sobre assuntos como saúde, doença, perda, dor e também sobre sexualidade. Problemas ou limitações na área reprodutiva não são sequer vistas como possíveis no horizonte de sentido de suas existências. Já adultos, a sua participação na investigação médica para descobrir as causas que estão impossibilitando uma gestação, quando acontece, é a de coadjuvante. Não é de se estranhar, portanto, que o diagnóstico de infertilidade cause estranhamento e uma forte sensação de desalojamento, que pode ser traduzida como uma desabitação.

Deparar-se com o diagnóstico de infertilidade causou, nos colaboradores da pesquisa, uma reação de estranhamento de si mesmo, cuja expressão a tal estranhamento variou desde a rejeição ao diagnóstico até à sensação de anormalidade, de inferioridade e até de morte existencial. Tomados pela angústia, condição existencial que possibilita ter a chave de seu existir nas mãos, alguns optaram por não a utilizar, preferindo retornar a um momento anterior, no qual habitavam com segurança. Outros escolheram, instigados pelo clamor de poder ser, abrir outras portas e construir uma nova habitação, mais condizente consigo mesmos, abraçando seu poder ser e a possibilidade de singularização de sua existência. Para tal, fez-se necessário meditar a respeito das possibilidades apresentadas. Como dizem Santos e Sá (2013), é "Apenas no silêncio da hora mais solitária, quando se cala o alarido impessoal dos desejos e representações correntes do 'todo mundo', é que podemos nos pôr à escuta das demandas e dos questionamentos de sentido que nos são mais próprios e singulares" (p. 58).

Possibilitar espaços para que os homens possam se fazer protagonistas, em vez de coadjuvantes, faz-se, a nosso ver, fundamental. No decorrer das entrevistas realizadas na elaboração deste trabalho, os colaboradores afirmaram que a oportunidade de falar sobre o assunto foi significativa para eles. Inclusive outras questões foram trazidas, levando-nos a compreender que os homens têm a necessidade de se expressar, desvelando-nos o sentido mais complexo que a repercussão da infertilidade trouxe para suas vidas, e que estão além do fato de não poderem gerar descendentes. Uma das conclusões às quais chegou Boris (2011), em seu estudo sobre a construção da masculinidade em uma cidade do Nordeste do Brasil, foi de que, para além das transformações que vêm ocorrendo nos modelos de masculinidades contemporâneas, havendo o incentivo para que os homens possam demonstrar seus sentimentos e se fazer mais próximos e carinhosos com mulher e filhos, a construção de modos de ser masculinos ainda acontece de forma opressiva, e os homens são impedidos de viver seus sentimentos, suas fragilidades, suas dúvidas e seus medos.

Também precisamos olhar esse homem como capaz de enfrentar as situações de sofrimento sem desfalecer. Precisamos reconhecer sua capacidade de superação das situações dolorosas e difíceis. Os colaboradores do estudo demonstraram que são capazes de superar as situações adversas que lhes aparecem, necessitando não que façam por eles, mas que possam apoiá-los, que estejam a seu lado e cuidem deles, de forma a possibilitar que eles próprios assumam suas escolhas.

As políticas públicas de saúde vêm buscando alternativas para incentivar a participação dos homens nos cuidados com a sua saúde em geral. Mas as mudanças precisam acontecer também na formação de base desses homens. Talvez resultados mais eficazes aconteçam se, aos meninos e aos homens adultos, passe a ser permitido, ou pelo menos não coibido, que possam chorar, fracassar, demonstrar sentimentos e destinar a si mesmos uma forma de cuidado dedicado e protetivo, sem que isso afete o reconhecimento de si como um homem macho. Talvez possamos assistir à formação de homens menos agressivos e competitivos e, quem sabe, diminuir as situações de violência, tão presentes nos noticiários atuais.

Aos profissionais que diretamente trabalham com saúde reprodutiva, como médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais, incentivar a participação masculina nos processos de investigação da infertilidade apresentada por um casal pode servir como espaço para que dúvidas sejam reveladas e que angústias e sentimentos de incapacidade e frustração, que podem surgir por ocasião da descoberta de uma infertilidade, possam ser acolhidos. Assim, consultórios médicos e lugares de promoção da saúde poderão se configurar como espaços nos quais os homens possam se reconhecer como pertencentes, espaços em que possam habitar existencialmente.

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Texto recebido em 28 de abril de 2016 e aprovado para publicação em 22 de novembro de 2016.

 

 

*Pós-doutora, professora do Centro Universitário Facex (Unifacex).E-mail: anamaux@tjrn.jus.br.
**Doutora, professora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).E-mail: elzadutra.rn@gmail.com.

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