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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.25 no.2 Belo Horizonte maio/ago. 2019

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2019v25n2p659-670 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2019v25n2p659-670

 

Psicologia social e o estudo da desigualdade: reflexões para o debate

 

Social psychology and the study of inequality: reflections for a debate

 

Psicología social y estudio de la desigualdad: reflexiones para el debate

 

 

Bader Burihan Sawaia*; Eugenia Bridget Gadelha Figueiredo**

 

 


Resumo

Este artigo reflete sobre a abordagem da desigualdade social no corpo teórico e nas pesquisas em Psicologia social, defendendo que esta deve passar do papel de variável independente a objeto de estudo. Apresenta os riscos epistemológicos e sociais do uso do conceito no plural e, nesse sentido, seguimos indagando sobre a concepção de desigualdade social e expondo algumas reflexões para que: a) ela não se torne um conceito bonde que facilite sua redução a diferenças e diversidades, favorecendo o relativismo e, ou, tornando-se elemento catalizador do ódio e da segregação; e b) para a (re)criação de conceitos e categorias analíticas que nos permitam alcançá-la em sua complexidade ético-política. Busca na filosofia monista de Espinosa e na dialética marxista pressupostos para orientar tais reflexões.

Palavras-chave: Psicologia social. Desigualdade social. Relativismo.


Abstract

This paper deals with the approach of social inequality in the theoretical body and in social Psychology researches, arguing that it should move from the role of independent variable to object of study. It presents the epistemological and social risks of the use of the concept in the plural and in this sense we keep on asking about the concept of social inequality and exposing some reflections so that: a) it does not become a certain concept that facilitates its reduction to differences and diversities, favoring relativism and, or, becoming a catalyzing producer of hatred and segregation and b) for the (re) creation of concepts and analytical categories that allow us to achieve it in its ethical-political complexity. The study searches in Spinoza’s monistic philosophy and in the Marxist dialectic presuppositions to guide such reflections.

Keywords: Social Psychology. Social inequality. Relativism.


Resumen

Este artículo reflexiona sobre el enfoque de la desigualdad social en el cuerpo teórico y en la investigación en Psicología Social, argumentando que debe pasar del papel de variable independiente al objeto de estudio. Presenta los riesgos epistemológicos y sociales de la utilización del concepto en plural y, en ese sentido, seguimos preguntando por el diseño de la desigualdad social y exponiendo algunas reflexiones que: a) no se convierta en un concepto de tranvía que facilita su reducción a las diferencias y a la diversidad, favoreciendo el relativismo y, o, se convirtiendo en un catalizador para el odio y la segregación y, b) para la (re) creación de conceptos y categorías analíticas que nos permitan alcanzarlo en su complejidad ético-política. Busca en la filosofía monista de Spinoza y en las presuposiciones dialécticas marxistas para guiar tales reflexiones.

Palabras clave: Psicología social. Desigualdad social. Relativismo.

1. INTRODUÇÃO

Não é novidade para ninguém o fato de vivermos em um mundo extremamente desigual onde apenas 1&% da população detém a maior parte da riqueza material e imaterial produzidas pela humanidade. O fosso é monumental! No entanto ela ainda se constitui como enigma ou se mostra imperceptível na produção psicossocial. Basta ver o número de produções a respeito do tema e, quando surgem, apresentam a sociedade como uma entidade "harmônica que infelizmente passa por crises, mas que não é contraditória em sua essência, que paira acima e além dos homens e à qual estes se adaptam aos seus ambientes naturais" (Patto, 2012, p. 1).

Entendemos que esse processo de supressão/negligência do estudo sobre desigualdade não é contingente, mas sustentado por pilares epistemológicos e ontológicos forjados dentro de um sistema de produção que condiciona a reprodução da vida e se alimenta da desigualdade, da degradação ambiental, do medo e da tristeza que desmobiliza e apequena a vida. O conceito de hegemonia em Gramsci (uma alternativa ao conceito de ideologia como fonte da manutenção da dominação) ajuda-nos a entender a complexidade do fenômeno e a necessidade de permanente atualização de nossos saberes e práticas, bem como do fortalecimento do conceito de desigualdade para não continuarmos acreditando em ações conscientizadoras, modeladoras de comportamento e campanhistas, em que "a razão 'vai ao povo' para educar sua sensibilidade tosca e o sentimento ‘vai às elites’ para humanizá-las" (Chauí, 2018, p. 24).

Podemos dizer que, para o referido autor, hegemonia não é um sistema, mas um conjunto de ideias, movimentos e sentimentos que operam o controle das relações e produzem mudanças sociais necessárias à manutenção do assujeitamento/opressão em cada tempo e particularidade histórica. Segundo Chauí (2018, p. 27), Gramsci enxerga o conceito de hegemonia "Como um corpo de práticas e de expectativas sobre o todo social existente e sobre o todo da existência social: constitui e é constituída pela sociedade sob a forma de subordinação interiorizada e imperceptível".

Portanto é muito mais que um conjunto de representações, doutrinação ou manipulação, é a própria cultura numa sociedade de classes delineando cotidianidades, subjetividades e saberes. Reinventando-se, recriando-se, definida e modificada, resistida e limitada, desafiada por pressões que não são suas. O que também possibilita a contra-hegemonia, produção de subjetividades revolucionárias, resistência de forma que nossa práxis "deve ser sempre capaz de incluir os esforços e as contribuições daqueles que, de um modo ou de outro, estão fora ou na margem dos termos da hegemonia específica" (Williams, 1979, p. 112).

Apesar do convívio contínuo e estreito com a desigualdade social, as análises psicológicas, historicamente, têm privilegiado a busca pela homeostase, o equilíbrio, a adaptação, integração, a eliminação dos conflitos em uma perspectiva funcionalista, a-histórica (que não reconhece as diferenças de classe e tempos históricos) e individualizante (buscando sempre descobrir as melhores formas de domínio do que pode o corpo e do que afeta a mente tendo em vista a máxima capacidade produtiva). Os esforços dos que estão à margem são deslegitimados, sufocados explicitando movimentos que sustentam o caráter de guardiões da ordem imposta e de seus conceitos adaptativos, de reinserção que também apelam para a oposição normal/patológico e se encontram alheios ao sofrimento implicado na violência constitutiva da desigualdade.

Essa perspectiva está na gênese da Psicologia social, que surge oficialmente em 1908, com a publicação de dois manuais, um nos EUA, pelo sociólogo Ross (1908), e outro na Inglaterra, pelo psicólogo McDougall (1908). As obras divergem ao aderirem uma ao enfoque sociológico das questões psíquicas e a outra ao enfoque psicológico das questões sociais, respectivamente, mas, apesar dessa distinção, há perfeita complementariedade político-prática entre essas duas vertentes do conservadorismo, de forma que, em ambas, o enfrentamento das manifestações da desigualdade se dirige à manutenção da ordem e não à transformação social.

Representam, dessa forma, uma prática pautada pelo predomínio da ontologia hobbesiana, que explica a desigualdade embasada na ideia de que o estado de natureza humana é uma eterna luta egoística pelo poder e glória e que, portanto, há uma luta de todos contra todos. O estado autoritário (leviatã) é a solução encontrada para garantir a convivência social. Ele seria fruto de um contrato celebrado entre os homens e mulheres livres que abdicam de sua liberdade e do direito de autorregulação, em nome da segurança. A convivência só é possível pela existência de um Estado forte (Hobbes, 2003). Nessa perspectiva, os problemas sociais são compreendidos como resultantes da ação de desviantes desse acordo/contrato, sendo, portanto, da ordem da subjetividade e das emoções incontroláveis promotoras de falhas no sistema e estrutura social. Assim, o que nos cabe é reinserir, readaptar, ressocializar, reeducar e repreender.

Espinosa (2014) se contrapõe a essa ideia por entender que "ninguém pôde alguma vez transferir para outrem a sua potência e, consequentemente, o seu direito a ponto de deixar de ser um homem" (cap. XVII). Para Espinosa, é direito natural de cada um (singularidades/coletivos) ter liberdade para perseverar na existência, expandir a própria potência de ação no campo relacional e se contrapor às forças nos diversos cenários e contextos históricos que distribuem desigualmente a possibilidade dessa expansão, chegando a bloqueá-la para muitos. Assim, ele afirma que o Estado não deveria estar a serviço do controle dos homens para obtenção da ordem, mas da defesa do direito natural de cada um e de todos.

A estabilidade e o poder são, na visão espinosiana, sempre transitórios, o que significa dizer que pactos podem ser quebrados e reformulados a qualquer instante, dependo da correlação de forças em ação, mesmo que as normas e costumes tentem garantir o contrato.

Como nos alerta na introdução do Tratado político:

Sem dúvida, em qualquer sociedade existem costumes e normas, que se destinam a contrariar o aleatório e a introduzir alguma previsibilidade no fluir das ações humanas. Mas, a estabilidade alcançada por esses meios permanece intrinsicamente provisória, visto estar assente, em última instância, não na pura razão, mas nos afetos, sejam esses de medo ou esperança, pelos quais se orienta o comum dos indivíduos, enquanto só alguns, e nem sempre, se orientam pela razão (Espinosa, 2014, pp. XIX-XX).

Garantir jurisdição sob si próprio, superar o sofrimento causado por relações sociais injusta, discriminatória, opressora, produto e produtora de afetos tristes, que equivale à manutenção do direito natural espinosiano, não exigiria uma costura social mais ampla e profunda e uma reordenação jurídico-normativa mais democrática?

No Brasil, surgem, na década de 1970, movimentos, especialmente nas Ciências Humanas e Sociais, voltados à contraposição dessa produção de saberes e práticas naturalizantes. Entre eles, podemos citar, como exemplo de pioneirismo, o Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC-SP, sob a coordenação de Silvia Lane e Aniela Ginberg, que não apenas se contrapõe ao paradigma da adaptação, mas também à colonização da práxis psicológica, aludindo a necessidade de conhecimento de nossa realidade e de uma revisão aprofundada das teorias e categorias americanas e eurocêntricas (Sawaia, 2016).

Apontavam para a necessidade de entender o psiquismo como totalidade, um fenômeno também condicionado às condições históricas, exploração econômica, opressão política e injustiça social, vividas e reproduzidas nas relações interpessoais, como necessidade do eu, como sofrimento, humilhação.

O que significava defender a ideia (e comprovar por meio de pesquisa e reflexões teórica) de que temas como pobreza, desigualdade, movimentos sociais são objeto da Psicologia social não como variáveis independentes do comportamento humano, mas como fenômenos psicossociais. Isso, por sua vez, exigia mudanças epistemológicas para superar as dicotomias estabelecidas entre subjetividade/objetividade, singular/coletivo e teoria/prática. Assim, o Programa assume o objetivo de buscar uma filosofia da práxis entendida não como proposta teórica que justifica o mundo, mas como uma necessidade concreta de transformação das relações de poder desiguais e da própria Psicologia social que, além de filha da Guerra, como apontam os manuais, é também, na América Latina, filha da colonização.

Esse movimento não estava operando no isolamento. O reconhecimento da necessidade de enfrentamento da desigualdade e da descolonização dos saberes/fazeres das Ciências Sociais e Humanas na América Latina deu o tom para constituição da "escola da libertação", na década de 1970. A Teologia da Libertação (Boff, 1999), a Filosofia da Libertação (Dussel, 2007), a Pedagogia da Libertação (Freire, 1973) e a Psicologia da Libertação (Martín-Baro, 1998) são exemplos de campos de investigação/ação desenvolvidos no final do século XX com o intuito de contribuir com a superação da desigualdade/opressão das classes populares imposta por um processo histórico de colonização do Sul pelo império do Norte. Como salienta Lane (2000, p. 58), "Somos povos colonizados por portugueses e espanhóis, além de aventureiros vindos de outras partes da Europa, época de espoliação de riqueza e conhecimentos, cujo primeiro ato foi desmerecer nossos conhecimentos: primitivos, irracionais, idiota" (Lane, 2000, p. 58).

Muitas e indispensáveis contribuições foram dadas por esse corpo políticocientífico, apontando um novo caminho para uma Psicologia social mais próxima de nossa realidade, que precisam ser aprofundados e, ou, revistos, pois os tempos históricos reclamam sempre uma atualização. Por isso nos perguntamos: como entendemos hoje a desigualdade social? Para onde apontam nossos saberes e práticas? Quais as possibilidades e desafios postos à Psicologia social na Contemporaneidade? Embora não possamos atender a todas essas indagações em um único trabalho, é de fundamental importância explicitarmos nossas diferentes formas de compreensão da desigualdade social e sua sustentação no imaginário coletivo para pôr em debate e análise a repercussão política de nossas produções e as potencialidades e riscos de nossas práxis psicossocial.

É nesse sentido que pretendemos aqui seguir indagando sobre a concepção de desigualdade social e expondo algumas reflexões para que:

a) ela não se torne um conceito bonde que facilite sua redução a diferenças e diversidades, favorecendo o relativismo e, ou, tornando-se elemento catalizador do ódio e da segregação; e
b) para a (re) criação de conceitos e categorias analíticas que nos permitam alcançá-la em sua complexidade ético-política.

2. DESIGUALDADE OU DESIGUALDADES?

Alguns questionamentos a respeito da desigualdade nos inquietam neste momento marcado pela fragilização dos vínculos sociais, políticos, afetivos e também pela construção de narrativas e movimentos relativizantes: são desigualdades? No plural? Se sim, como se relacionam? Intersecionalidade, consubstancialidade, transversalidade? Ou ela se localiza na tradição da crítica total em que são compreendidas como necessárias para se atingir as raízes dos perversos mecanismos do capitalismo? (Triantafillou & Dyrberg, 2019).

Olhando o fenômeno pela vertente do pensamento marxista, Frederico (2016) afirma que a ampliação do conceito de desigualdade centrado no capitalismo veio da guerra anticolonialista da Argélia (1954-1962), que levou ao universo intelectual as ideias de Abert Memmi e Franz Fanon. Estes afirmavam que as principais armas levadas pelos franceses era a imposição de uma imagem de povo colonizado, inferior, primitivo, atrasado que, internalizada, bloqueava a luta pela emancipação, ou seja, segundo esses autores, a colonização do imaginário foi/é a arma mais letal e promoveu/promove a servidão voluntária.

Nesse sentido, é um erro negar ou desconsiderar a colonialidade, compreendendo-a como um processo histórico de reposição do colonialismo atravessado pelo capitalismo. No Brasil, esse processo apresenta uma particularidade importante: "Seu desenvolvimento se dá no cruzamento do capitalismo liberal com uma organização social escravocrata e patriarcal" (Chauí, 2018, p. 32).

Esse processo aponta configurações que reorganizam, permanentemente, as lógicas de dominação e as formas como se transferem para o conjunto da sociedade tal processo, contribuindo para moldar relações e produções subjetivas marcadas pela extrema desigualdade entre as classes, especialmente no que diz respeito às questões econômicas, políticas, étnico-culturais e de gênero, revelando uma sociedade intolerante e que exerce seu desprezo e desconsideração para com as classes populares, cotidianamente.

É preciso, pois, encontrar caminhos teóricos para não cair na polarização e, ou, redução e fragmentação do conceito de desigualdade em categorias coletivas. É necessário ainda desvelar os efeitos do capitalismo sobre a organização e reprodução da vida, em suas diversas roupagens e tempos históricos, caso contrário, corremos o risco de a luta pelo reconhecimento promover a autonomização da cultura e a fragmentação das particularidades que não se estendem para a grande política e não alcançam da defesa do direito natural a existência que só se concretiza na esfera do direito comum.

Nobel de economia em 2007, em seu livro Identidade e violência: a ilusão do destino, Sen (2007) revela sua desconfiança em relação às categorias coletivas: raça, religião, nacionalidade, língua… que pretendem definir, de modo conclusivo, o que é um indivíduo, o que ele qualificava como minimalização do ser humano: "Esquartejamento da humanidade em blocos é perigoso porque estimula o fanatismo" (Sen, 2007, p. 9).

Nesse sentido, as diferenças de gênero, políticas, sociais, culturais, geográficas, raciais, econômicas, além de não serem casuísticas ou explicáveis em si, não apenas se interseccionam, mas, antes, são da mesma substância e encontram sua expressão na "aporia fundamental sobre a qual a sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar os riscos de sua fratura" (Castel, citado por Sawaia, 2014b, p. 110). Para indicar tal processualidade, a referida autora traz a dialética exclusão/inclusão, que remete à inclusão perversa, caracterizando a barbárie social que necessita incluir os pobres ao mesmo tempo em que desenvolve a intolerância aos que ocupam esse lugar (Sawaia, 2014b).

Daí o principal fundamento defendido neste trabalho com relação à desigualdade: ela se inscreve na dimensão ético-política e envolve os campos econômico, jurídico e subjetivo. É consubstancial à ordem social, e suas particulares formas de objetivação histórica são modos de expressão da:

Construção de uma separação "ontológica" entre sociedades qualitativamente distintas, nas quais as diferenças não são de graus, ou seja, não são quantitativas, mas de essência, implicando a noção de "sociedade superior" - assim como de "indivíduos superiores" - que a compõem (Souza, 2015, p. 21).

Os danos causados não são erros pedindo reparações. Eles são da ordem da dialética exclusão/inclusão, que sustenta a ordem social ao longo da história. Um processo em constante devir, que, na atualidade, está pautado pelo "valor de troca", cujo fundamento e razão de ser é o lucro. Inspirado em Rancière (2006), podemos dizer que esse incomensurável não rompe somente a igualdade da distribuição das riquezas acumuladas; ele rompe a cosmologia tradicional ordenada segundo a ontologia do comum e a origem da comunidade.

A desigualdade mata, deprime, impõe sofrimento (ético-político), fecha o futuro e impede a abertura de horizontes, o acesso à educação e à saúde, fomenta injustiças, reforça o individualismo e a banalização dos males provocados aos homens, a natureza e culpabiliza as pessoas e grupos pelo seu próprio infortúnio.

A desigualdade social, portanto, tem sua gênese na distribuição desigual de poder. Com diferenças históricas sempre atualizadas, não se relaciona à moral nem é da ordem do estranhamento do diferente. Está radicada na busca do lucro e do poder determinada por um projeto de sociedade hierarquizante, que prioriza a saúde do capital em detrimento da saúde de seu povo, a ponto de definir o que Agamben (2007) denominou de Hommo saccer, o que pode ser morto, sem penalização de seus algozes, o "matável".

Com efeito, a desigualdade não é inédita no capitalismo. Vem de longe a polarização entre ricos e pobres, é antiquíssima a desigual apropriação e fruição dos bens sociais. O que é inédito é a dinâmica da pobreza e as formas utilizadas para justificá-la. Hoje, por exemplo, propaga-se a ideia de escassez como fonte da pobreza quando, na verdade, o seu aumento não está ligado à escassez e sim à privatização dos bens e concentração das riquezas produzidas.

Pela primeira vez na história registrada, a pobreza cresce na razão direta em que aumenta a capacidade social de produzir riquezas (grifo nosso). Tanto mais a sociedade se revela capaz de progressivamente produzir mais bens e serviços, tanto mais aumenta o contingente dos seus membros que, além de não terem acesso efetivo a tais bens e serviços, veem-se despossuídos até das condições materiais de vida de que dispunham anteriormente [. . .]. Este pauperismo marca a emergência imediatamente visível da dimensão mais evidente da moderna barbárie, a capitalista (Paulo Netto, 2001, p. 46).

A partir dessa perspectiva, podemos afirmar que não há desigualdades, apesar de ela não estar circunscrita a apenas uma esfera, seja ela econômica, política, institucional, cultural, estas se integram a partir de técnicas de inidividualização subjetivas e procedimentos sociais mediados por ideias, movimentos e sentimentos hegemônicos. Gênero, raça, etnia, religião, nacionalidade, idade são mediações que aumentam e particularizam a força da opressão, da injustiça e do sofrimento.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Defendemos, assim, que existem diferentes formas de expressão da desigualdade e não diferentes desigualdades. Todas elas, perversas em suas particularidades de objetivação, exigem ações políticas especificas e o fortalecimento de identidades coletivas para enfrentar as formas de inserção perversa mediadas pela raça, pelo gênero, como a necropolítica e o feminicídio, só para citar as mais cruciais que elege o Hommo saccer. Mas não devemos esquecer que a desigualdade social é elemento estruturante da questão social, base do discurso de ódio, do populismo, da cisão da nação, da exploração, do sofrimento ético-político e da manutenção da ideia de assujeitamento de determinadas camadas da população.

Assim, para que a Psicologia não se mantenha, em boa parte de suas práticas, como guardiã da ordem social, cometendo violência epistemológica (Patto, 2012), é preciso atentar para algumas características fundamentais relativas a desigualdade social na Contemporaneidade:

a) ela não é produto da escassez, mas da concentração cada vez maior de riqueza e poder;
b) a divisão da humanidade em servos e senhores, superiores e inferiores, criando a categoria dos indesejáveis que podem ser reduzidos ao sobrevivencialismo;
c) a desumanização que não reconhece a dor, o desrespeito e a supressão de direitos justificando sua exploração, servidão e até a eliminação.

O que queremos ressaltar é que, entre as ameaças provenientes da materialidade da desigualdade e de sua vivência, há uma relação dialética, pressuposições recíprocas e capturas mútuas mediadas por instituições educacionais, familiares e jurídicas, o que faz com que opere no plano da materialidade, no plano político, no plano do saber e da subjetividade, daí o perigo de fracioná-la. Rouanet, em texto de 2009, já alertava para o diferencialismo abstrato que aparece como reação ao igualitarismo abstrato, mas que é também perigoso, pois gera o ódio e a segregação social, encaminha ao multiculturalismo e ao relativismo exacerbado.

Estamos propondo, em outras palavras e nos dirigindo a Espinosa, é que haja um deslocamento de análise do campo da causalidade final (formal) para o campo da causalidade eficiente (genética). Pois nada mais natural que a diversidade de existência dos modos de vida e nada mais desumano que a servidão. Ou seja, a causa eficiente (a que mostra a gênese do problema) não se encontra fundamentada na natural diversidade dos corpos em relação, mas na subjugação de determinados modos de existência por outros. Assim, a causa formal não alcança a gênese do problema (causa eficiente) que se encontra radicada nas relações de poder, mas a contém (Figueiredo, 2018).

Todas as formas de desigualdade são, portanto, oriundas da mesma causalidade, variam em grau e intensidade de acordo com o sistema políticoeconômico em determinados tempos e territórios históricos e são mediadas por fatores específicos que atravessam a cultura hegemônica. Como derivação dessa concepção, consideramos que tomar as formas particulares de expressão da desigualdade como "desigualdades" isoladas entre si, interseccionadas ou transversalizadas, esfacela e tira a força analítico-prática do conceito, pois sua essência é a quebra da ideia de humanidade do outro, a distinção entre humano e sub-humanos.

REFERÊNCIAS

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*Doutorado em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, coordenadora do Núcleo de Estudos da Dialética Exclusão/Inclusão Social (Nexin-PUCSP).
**Doutorado em Psicologia Social pela PUC-SP, professora adjunta da Universidade Federal do Piauí (UFPI), pesquisadora do Nexin-PUC-SP.

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