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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.25 no.3 Belo Horizonte Sept./Dec. 2019

 

EDITORIAL

 

 

Dossiê Autismo e Psicanálise

A organização deste dossiê é uma iniciativa do curso de pós-graduação Lato sensu "Abordagem Psicanalítica do Autismo e Conexões", inaugurado em março de 2018, no Instituto de Educação Continuada (IEC) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Sensível ao trabalho de pesquisa do autismo desenvolvido, até então, no Laboratório de Estudos Clínicos do curso de graduação em Psicologia, a Faculdade de Psicologia da PUC Minas, por meio de sua diretora, a professora Betânia Diniz Gonçalves, incentivou a construção deste projeto, que, de maneira inédita, é endereçado aos vários profissionais que se ocupam do autismo, visando à conexão da psicanálise e áreas afins.

O aumento desmedido do número de diagnósticos dos portadores do transtorno do espectro autista (TEA) põe em evidência o autismo como um dos sintomas sociais de nossa época, que afeta por volta de 2 milhões de brasileiros. Ciente desses índices, o Ministério da Saúde no Brasil lançou a Linha de cuidado para atenção integral às pessoas com transtorno do espectro do autismo e suas famílias no Sistema Único de Saúde (Ministério da Saúde, 2013), que passou a nortear as políticas públicas e a assistência destinada ao autista e a seus familiares. Num tempo em que o autismo se tornou tema de debate político, clínico e ético no mundo, a universidade se faz presente, por meio do investimento na formação de profissionais interessados na causa do autismo.

O espaço concedido ao autismo no dossiê de Psicologia em Revista retrata, portanto, a relevância deste tema para nossa sociedade, que se vê interpelada pelo enigma do autismo. Ao demostrarem os impasses na constituição dos laços sociais, os autistas muito nos ensinam sobre o mal-estar da civilização contemporânea.

A psicanálise aplicada ao autismo tem experimentado o convívio com vários saberes produzidos sobre o autismo no campo da ciência. Investigar e distinguir as respostas dadas pelo discurso científico e pelo discurso psicanalítico ao enigma do autismo é um desafio instigante. Embora oriente sua prática com base na especificidade da estrutura psíquica do autista, a psicanálise não desconhece os achados da ciência espectral do autismo. Disso decorre a nossa proposta de estabelecer conexões entre o discurso psicanalítico e outros que acolham as questões do autista, a exemplo do discurso pedagógico, do médico, do biológico, isto é, a genética e a neurologia, e dos gestores dos recursos públicos. Articulando ensino, pesquisa e extensão, nosso curso constitui um espaço de interlocução de vários que se dedicam ao autismo, buscando a formalização da experiência de cada um, com base no que o próprio sujeito autista os ensina.

A revisão das teorias e da casuística clássica do autismo, os estudos das publicações autobiográficas mais recentes, dos documentários, dos testemunhos de familiares e dos próprios autistas, além das teses psicanalíticas e dos casos clínicos da atualidade, demonstram como o acesso à inserção social do sujeito autista depende do acolhimento de sua singularidade. O autista tem modos próprios de usar a linguagem, de colocar sua voz no uso da língua e também de se colocar nos processos de aprendizagem.

A contribuição diferencial da abordagem psicanalítica do autismo consiste em não reduzir a originalidade da relação do autista com a linguagem, com o corpo e com o outro a uma deficiência, seja ela de caráter cognitivo, neuroquímico ou de aprendizagem. Ela pesquisa, principalmente, a singularidade da defesa autística contra uma angústia precoce perturbadora da constituição dos laços socioafetivos na infância.

Os artigos que compõe esse dossiê são fruto do trabalho de professores, mestres, doutores e dos especialistas que concluíram a primeira turma do curso. A produção de cada um retrata o engajamento na batalha do autismo, isto é, uma batalha epistemológica, ética e política em defesa do autista como um sujeito singular e não um portador de deficiências.

O leitor encontrará textos que versam sobre a especificidade da estrutura autística, sobre a singularidade em jogo na relação do autista, com o corpo, com a sexualidade, com a linguagem e com o outro. Entre as conexões da psicanálise com outros saberes, registramos a experiência da sua conexão com a psiquiatria, com a educação e com as políticas públicas. Além disso, o leitor poderá compartilhar de importante reflexão sobre o discurso da ciência e o discurso da psicanálise e suas distintas concepções sobre o ser vivente.

Convidamos, portanto, o leitor deste dossiê a inserir-se em nossa elaboração, com votos de que suas questões encontrem, nesta publicação, meios de levar adiante a pesquisa sobre o autismo.

Suzana Faleiro Barroso aborda, no artigo O autismo para a psicanálise: da concepção clássica a contemporânea, os fundamentos da teoria e da prática com o autista, cernindo a orientação lacaniana da psicanálise aplicada ao autismo.

No artigo As políticas públicas para o autismo no Brasil, sob a ótica da psicanálise, Paula Ramos Pimenta descreve as legislações brasileiras que regem a inclusão das pessoas com autismo e examina, cuidadosamente, a repercussão do tensionamento epistêmico no campo político.

Autismo e sexualidade é o título do artigo de Lúcia Maria de Lima Mello, que discute como a sexualidade é desnaturalizada pela ação da linguagem e correlaciona a singularidade da vida sexual à falta de um significante no Outro. Pela leitura dos testemunhos de autistas, a autora nos leva a verificar como, no autismo, o espectro das escolhas, das parcerias e das paixões é tão amplo e diverso como o é para todos os seres falantes.

Cláudia Márcia Soares também trata o tema da sexualidade no artigo A chegada da adolescência para o autista: uma leitura psicanalítica. Ela descreve como Owen Suskind e seus pais trataram os impasses dessa época da vida de um sujeito autista, que, por estrutura, não conta com os semblants da civilização para orientar-se nas questões do amor.

Lucimar Brandão de Oliveira reflete sobre o impacto do diagnóstico de autismo para uma mãe. No artigo, O desejo da mãe a partir do diagnóstico de autismo, a autora salienta o sofrimento advindo da angústia materna, quando a criança implica a face real da maternidade. Propõe que o trabalho de elaboração do luto da criança ideal possa ser um recurso para a construção materna de novo olhar para o filho.

Edivaldo Procópio da Silva contribui com o artigo A constituição do corpo do autista: do desamparo à invenção, elaborado com base no testemunho de um autista, Daniel Tammet, cujo livro transmite o papel da escrita no tratamento do gozo invasivo perturbador das fronteiras do corpo.

No artigo O que podemos aprender com os autistas: a experiência clínica de uma professora do ensino fundamental e um aluno autista, Patrícia Fernandes de Carvalho ilustra, por meio de sua prática, a conexão entre o discurso psicanalítico e o discurso pedagógico que viabiliza a inclusão da singularidade do autista.

Poliane Paula Ferreira Azevedo apresenta um relato muito instigante sobre a prática institucional com autistas: Uma experiência clínica no Courtil: uma instituição orientada pela prática entre vários. Dessa maneira, ela transmite o que pode a psicanálise junto ao autista, depois de ter participado do trabalho no Courtil, uma instituição localizada na Bélgica, que se pauta na dinâmica subjetiva de cada autista.

O autismo e suas conexões: qual medicação para o autista? é um artigo inspirado na palestra que o curso de especialização ofereceu ao público em 2019, realizada pela doutora Ana Maria Costa da Silva Lopes. Ela destaca a ética do ato de medicar, seus desafios num tempo de excessos na medicação das crianças e dos jovens e chama a atenção para os riscos da medicalização dos autistas.

Com a gentil colaboração de François Ansermet, nosso convidado para este dossiê, concluímos essa série de trabalhos. Seu artigo, O vivo incomensurável: entre ciência e inconsciente, esclarece a distinção entre a abordagem do real pelo discurso da ciência e pelo discurso psicanalítico. Desse modo, o autor oferece elementos epistemológicos e éticos decisivos para compreender distintas abordagens do autismo na Contemporaneidade.

Suzana Faleiro Barroso

REFERÊNCIAS

Ministério da Saúde. (2013). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Linha de cuidado para a atenção integral às pessoas com transtorno do espectro do autismo e suas famílias no Sistema Único de Saúde: versão consulta pública. Brasília: Ministério da Saúde. (Série Normas e Manuais Técnicos)

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