SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25 número3Autismo e sexualidadeO desejo da mãe a partir do diagnóstico de autismo índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.25 no.3 Belo Horizonte set./dez. 2019

http://dx.doi.org/10.5752/P.1677-1168.2019v25n3p1274-1286 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2019v25n3p1274-1286

 

A chegada da adolescência para o autista: uma leitura psicanalítica

 

The arrival of adolescence for the autistic: a psychoanalytic reading

 

La llegada de la adolescencia para el autista: una lectura psicoanalítica

 

 

Cláudia Márcia Soares*

 

 


Resumo

Este artigo tem como objetivo discutir a chegada da adolescência para o sujeito autista e as implicações advindas desse período da vida, tendo como referencial teórico a psicanálise. Conceitua inicialmente a adolescência. Num segundo momento, articula a adolescência do autista e o conceito de invenção. Para isso, lança mão dos conceitos da obra de Freud e de autores de orientação lacaniana, e utiliza-se do relato documental da história de Owen Suskind para abordar as particularidades da passagem pela adolescência desses sujeitos.

Palavras-chave: Adolescência. Autismo. Invenção. Psicanálise.


Abstract

This article aims to discuss the arrival of adolescence for the autistic subject, and the implications arising from this period of life, having psychoanalysis as theoretical reference. Initially, adolescence is conceptualized. In a second moment, it articulates the autist’s adolescence and the concept of invention. In order to do so, it gets hold of the concepts of Freud-and-Lacan-oriented authors’ works and uses the documentary account of Owen Suskind’s history to address the particularities of their passage through adolescence.

Keywords: Adolescence. Autism. Invention. Psychoanalysis.


Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir la llegada de la adolescencia para el sujeto autista, y las implicaciones que surgen de ese periodo de la vida, teniendo el psicoanálisis como referencia teórica. Inicialmente, conceptualiza la adolescencia. En un segundo momento, articula la adolescencia autista y el concepto de invención. Para hacerlo, utiliza los conceptos de la obra de Freud y los autores de orientación lacaniana, y utiliza el relato documental de la historia de Owen Suskind para abordar las particularidades del paso por la adolescencia de estos temas.

Palabras clave: Adolescencia. Autismo. Invención. Psicoanálisis.

1. INTRODUÇÃO

Podemos dizer que a criança, ao nascer, é um ser que vem ocupar um lugar na vida fantasmática dos pais. Isso quer dizer que ela tem uma "pré-história" que reside nas relações familiares, na estruturação do cenário imaginário da união destes.

Essa criança vem ocupar um lugar entre os sonhos da mãe, e fica encarregada de preencher espaços vazios. Porém sempre há uma discrepância entre o filho idealizado e o filho da realidade, o filho nascido.

Podemos pensar que essa questão não seria vivida de forma diferente pela família da criança que recebe o diagnóstico de autismo. As etapas do desenvolvimento dessa criança apresentam desafios. A adolescência é um período de transição que convoca não somente o autista à invenção de uma solução singular, como também os pais, a família.

O início da adolescência pode ser demarcado pelos fenômenos de mudanças corporais produzidos pela puberdade. Entretanto o que nos interessa são as mudanças subjetivas que o indivíduo terá de operar para dar conta das metamorfoses que levam à maturidade genital, ao exercício da sexualidade, e das mudanças na relação com o outro dela decorrentes.

Ao pesquisar sobre o autismo, percebemos que há poucas referências sobre esse período. A finalidade dessa pesquisa surge a partir do questionamento sobre a chegada da adolescência e as implicações subsequentes desse período da vida na subjetividade do autista, por meio da experiência adquirida nos atendimentos clínicos.

Para uma melhor compreensão de como os autistas experienciam a chegada da adolescência, abordaremos considerações psicanalíticas sobre a adolescência e o autismo. Usaremos o conceito de invenção, e aspectos da história publicada e filmada num documentário por Ron Suskind serão mencionados.

2. A ADOLESCÊNCIA PARA A PSICANÁLISE

A adolescência é o período em que o sujeito se vê confrontado com o real pulsional, em que apenas ele tem a chance de saber inventar sua própria resposta conforme as mudanças ocorridas, o que lhe permite construir a sua história singular.

Segundo Roy (2016), no terceiro ensaio sobre a teoria da sexualidade, intitulada As metamorfoses da puberdade, Freud coloca a pulsão como base de suas considerações e destaca que as mudanças que ocorrem nesse momento se destinam a dar à vida sexual infantil sua forma final normal.

Mas, ao demonstrar essas mudanças, Freud introduz algumas referências para localizarmos os possíveis impasses em vários âmbitos na mudança de corpo e de objeto, no modo de satisfação, nas determinações em torno da escolha de objeto, nas reviravoltas em torno de uma autoridade, antes restringida ao domínio edípico, isto é, ao domínio dos laços de família.

As possíveis mudanças que ocorrem no corpo a partir de determinantes biológicos nos fazem ver que se trata de uma mudança de corpo e que esta é, de fato, uma mudança de objeto: antes autoerótica, agora a pulsão encontra o objeto sexual. Ou seja, é o corpo do outro que entra em cena (Telles, 2017).

Esse objeto teria como desafio, como parte dos "ideais da vida sexual", poder conjugar as duas correntes propostas por Freud: a sensual e a de ternura.

Surgem, porém, dois impasses: do lado da corrente sensual, na infância, há uma medida de obtenção de prazer por meio das pulsões parciais; e, pela corrente da ternura, sempre o "encontro do objeto é na verdade, um reencontro", ou seja, um reencontro do primeiro objeto de amor e é precisamente a isso que o sujeito deve renunciar na puberdade.

O que estará em questão novamente no momento da puberdade é a perda do objeto, quando o "encontro do objeto" é, de fato, o encontro com o Outro sexo.

Nas consequências que tem para todo sujeito o fato de que um "saber novo" se impõe, qual seja: a constatação de que a excitação sexual, que antes mantinha um lugar na parcialidade das pulsões na posição infantil, engendra e conduz ao ato sexual. Ou seja, agora a libido - "novo aparelhamento do corpo no momento da puberdade", ou poderíamos dizer, o órgão do gozo - se impõe ao sujeito e cria um campo de tensão entre os corpos no qual o recurso ao falo, órgão pivô da infância para estabelecer a diferença sexual, não pode responder da mesma forma [. . . ] (Telles, 2017).

A adolescência é um momento de transição em que se opera uma desconexão no sujeito entre seu ser de criança e remete à função do ideal do eu, que o situa no eixo do que ele tem de fazer como homem ou como mulher. Implica num abandono da posição infantil, em que a "autoridade" dos pais deixa de exercer seu papel para dar ao sujeito a possibilidade de localizar um saber no Outro. Sendo isso, um dos efeitos mais necessários e também mais dolorosos do desenvolvimento.

Trata-se do encontro do sujeito com o "outro lugar" que aparece como um dos nomes desse lugar inominável, o vazio, com a falta de um saber constituído que o oriente quanto ao que fazer com a pulsão.

Lacadée (2011) menciona que, nesse momento, o adolescente se depara com a experiência de um exílio. Ele experimenta, além do exílio da natureza fundamental e inerente a todo sujeito decorrente de sua condição de ser na linguagem - o exílio próprio da adolescência. "Devido ao real da puberdade, o sujeito é exilado de seu corpo de criança e das palavras de sua infância, sem poder dizer o que lhe acontece" (Lacadée, 2011, p. 75).

Remete a uma solidão de difícil tradução e que exige, de cada sujeito, a invençãode um modo próprio de dar nome ao que lhe acontece. As palavras e nomes da infância já não servem mais, e as que podem vir a nomear as transformações que experimenta ainda não foram inventadas.

A adolescência exige que o sujeito invente novas formas de fazer laço para seguir em frente.

3. O OLHAR PSICANALÍTICO PARA A ADOLESCÊNCIA DO AUTISTA

A adolescência é um período delicado, em que o sujeito é confrontado com necessidades de definir-se como homem ou mulher, escolher uma profissão, necessidades que emergem dele mesmo, da família, do grupo social. Nesse processo, muitas perdas ocorrerão. "O amor a que tinha acesso, até então naturalmente, por ser filho de seus pais, mostra-se então sob outra luz, cabendolhe a responsabilidade de inventá-lo em outro lugar" (Lacadée, 2011, p. 158). O adolescente vive momentos de exílio e, desse modo, necessita criar um novo lugar e novas formas de se fazer laços. É um momento no qual fica sem o Outro.

Os neuróticos vivem esses momentos cruciais, porém têm como recompor esse Outro. Elaboram as metamorfoses, as mudanças corporais, reconstruindo suas identificações. Aprendem com as soluções do Outro.

O adolescente ainda não é capaz de sintetizar os novos aspectos de si mesmo que adquiriu e de renunciar aos antigos, [. . .] ele se apresenta como várias personagens devido à combinação instável de identidades bem como da instabilidade de um corpo que se transforma (Stengel, 1996, p. 41).

Procura novas pessoas significativas na sua vida, já que os pais deixam de ocupar esse lugar. Isso explica o fato de o adolescente tornar-se fã de um artista, professor, esportista. Ele se insere em vários grupos, une-se aos "iguais", em que todos se identificam com cada um. Um refúgio e uma maneira de criar um mundo que lhe seja mais adequado, muitas vezes, são proporcionados pela produção artística. O adolescente tenta recompor, à sua maneira, o Outro que lhe falta, os referenciais que vacilam nesse momento crucial de sua vida. Como a adolescência pode ser vivida pelo autista, um sujeito que já vive nessa condição, isto é, sem o Outro?

No Projeto para uma Psicologia Científica, o grito é a manifestação de uma descarga de tensão que, devido à prematuração da criança humana impotente para se nutrir, requer a ação específica de um outro exterior para satisfazer suas necessidades. Denomina "vivência de satisfação" a ocorrência de eliminação de tensão, que elimina ou diminui os estímulos internos da criança. A imaturidade e o despreparo do recém-nascido determinam um desamparo originário e dependência absoluta de um outro (Barroso, 2009).

Ao escutar o grito da criança e retirá-la do desamparo primordial, o outro, que ocupa a função materna, o introduz na comunicação. Com Lacan, a teoria da demanda, necessidade e desejo explica a transformação do grito em significante da demanda. Ao mesmo tempo em que a mãe é real, ela é simbólica, pois, quando atende às necessidades da criança, ela fornece significações, o que pode nos orientar quanto ao trabalho de elaboração e ressignificação que também acontece em outras etapas da vida, como na adolescência.

A relação da criança ao significante se apresenta, inicialmente, na estrutura de alíngua, na qual o significante serve ao gozo. É, portanto, causa do gozo e não representa o sujeito para outro significante. O balbucio está para alíngua assim como o grito está para a linguagem. Enquanto o balbucio é gozo, é S1 sem S2, autossuficiente, fora dos efeitos de sentido e, portanto, fora da intenção de comunicação, o grito é apelo, é comunicação, é endereçamento, é demanda. O gozo do balbucio, gozo do S1, para além da satisfação da necessidade de nutrição, por exemplo, condensa o caráter autista do gozo mesmo que o S1 seja extraído do Outro na primeira alienação (Barroso, 2009, p. 3). No balbucio, na dimensão da alíngua, estamos mais no nível do objeto voz, signo da presença do Outro, do que propriamente do significante. A voz como objeto para o sujeito do significante está marcada por uma perda de toda sua substancialidade.

O autista utiliza o significante de modo totalmente solitário, trata-se para ele de puro gozo fora de sentido, fora do sentido do Outro que exclui toda forma de comunicação, situando-o radicalmente fora do discurso. Na falta da ajuda desse S2 como semblante e borda ao gozo, o autista toma a orientação oposta à da comunicação. Sua palavra, não se endereça a não ser a ele mesmo, isto é, ao autismo de seu gozo sob o modo da repetição em eco de um significante sozinho S1, que o petrifica, que lhe designa um lugar (Lacadée, 2009, p. 55).

A solução que o sujeito autista encontra e adota é sempre original, única, de sua invenção e não a conhecemos antecipadamente. É necessário nela nos orientarmos, a fim de conquistar sua confiança, obtermos seu consentimento à presença do Outro (Lacadée, 2009, p. 10).

Para o autista, não há simbólico. Ele não tem recursos do funcionamento da estrutura da linguagem. O autista utiliza de seus comportamentos "estranhos" para promover uma distância segura do Outro. Desse modo, ele instaura uma borda que constitui uma barreira protetora contra o Outro que o ameaça por sua presença, com sua voz e seu olhar e por suas demandas.

Podemos dizer que o autismo, hoje, é referido quase exclusivamente à infância. Para pensar a adolescência do autista, faz-se necessário compreender o destino desse autismo diagnosticado na primeira infância.

O psicanalista de orientação lacaniana, Iván Ruíz, que participou do Foro Internacional sobre Autismo: después de la infancia, Autismo y Política – ELP, realizado em Barcelona, em 7 de abril de 2018, menciona que quando a passagem pela puberdade deixa claro que o núcleo autista que resiste naquele adolescente não parece ser modificado, os ideais sobre o futuro caem, as expectativas são reduzidas (Carbonell, & Ruíz, 2018). Ainda nos aponta que a puberdade no autismo, presentifica que, as estratégias preparadas para ajudar esse sujeito na infância, já não servem mais para o momento da adolescência, há que se inventar outras soluções.

A sexualidade humana é sempre uma questão para todos, uma vez que envolve um teor íntimo, particular. Não é exclusivamente genital, perpassa pela forma de relação com o Outro.

Neus Carbonell, psicanalista lacaniana, que também participou do Foro Internacional sobre Autismo, em 2018, nos diz que, partindo da noção de que não há formas de gozo melhores que outras, podemos perceber que o autista não está em déficit contra uma suposta normalidade. Torna-se mais difícil, uma vez que, se não pode recorrer a soluções prontas a usar, uma solução personalizada deve ser construída.

O conceito de invenção elaborado por Miller (2003), no artigo A invenção psicótica, que nos mostra uma distinção das noções de descoberta e de criação, é importante para compreendermos as soluções construídas pelo autista para sua existência. A criação destaca a criação ex nihilo, a partir do nada, enquanto que a invenção tem o sentido de uma criação a partir de materiais existentes. A invenção tem o valor de bricolagem e está correlacionada à inexistência do Outro. O sujeito deve ter recursos sem o socorro de discursos estabelecidos, ou seja, ele é obrigado a inventar um discurso, é obrigado a inventar seus socorros, seus recursos, para poder usar seu corpo e seus órgãos.

Mas, de uma maneira geral, se o termo invenção se impõe para nós hoje em dia, é porque ele está profundamente ligado à noção de que o Outro não existe, profundamente ligado à ideia de que o Outro é uma invenção. Por mantermos a tal ponto a ideia de que o Outro do simbólico existe, de que o sujeito é simplesmente efeito do significante, e aquele que inventa, em grande parte, é o Outro. Só há o Outro que inventa enquanto que com o Outro que não existe a ênfase se desloca do efeito ao uso, se desloca para o saber fazer (Miller, 2003, p. 12).

Isso quer dizer que o sujeito desamparado com relação às referências do Outro está destinado a se tornar inventor. Com base nos conceitos abordados, passaremos a compreender o modo de experienciar a chegada da adolescência e quais as invenções produzidas por Owen Suskind para lidar com essa etapa da vida, cuja história foi filmada num documentário e publicada no livro Vida animada, escrito por seu pai, o jornalista americano Suskind (2017).

4. AS INVENÇÕES DE OWEN

Como Owen se serviu das invenções para conseguir dar conta dessa etapa tão delicada da vida e encontrar uma solução personalizada? Quais recursos ele utilizou para fazer a transição da infância à vida adulta? Para entender esses aspectos, é preciso acompanhar a história de Owen desde a infância, quando o autismo o abateu.

Uma família "normal". Um casal jovem, Ron e Cornélia, morando em Massachusetts, numa casa pequena, um quintal cheio de plantas, e com seus dois filhos: Walt, de 5 anos, e Owen, com quase 3. Esse é o cenário onde foi gravado uma fita de vídeo, onde aparece Owen correndo com uma espada de brinquedo e com seu pai, em uma imitação do Capitão Gancho e do Peter Pan, filme de animação da Disney.

Em razão do trabalho do pai jornalista, a família mudou-se para Washington e, algumas semanas depois da gravação desse vídeo, perceberam que Owen estava diferente. Não dormia, a coordenação motora piorava, falava palavras sem sentido, ficava olhando fixamente para o "nada". Ao levá-lo a uma consulta, a médica lhes disse que ele tinha um transtorno invasivo do desenvolvimento e mencionou o autismo. Os pais, com dificuldade de acreditar no diagnóstico, buscaram outra opinião médica, que confirmou a presença de "comportamentos autistas". O médico sugeriu uma rotina, a qual iniciaram imediatamente, como a fonoterapia intensiva, terapia ocupacional e lúdica, e uma escola adequada para Owen. Foi para a Ivymount, uma escola para crianças com deficiência, na cidade de Rockville, em Maryland.

Em casa, o que o deixava calmo era assistir aos vídeos da Disney. Era também a única coisa que agora podia fazer junto com o irmão. Ao se reunirem para assistir aos filmes de desenhos animados, perceberam que Owen murmurava coisas sem sentido: "Eassuavos, eassuavos". A mãe achou que ele queria suco, mas ele recusou. Estavam assistindo ao filme chamado A Pequena Sereia, que já haviam assistido muitas vezes, e estavam na parte em que Úrsula, a Bruxa do Mar, cantava a música para a sereia Ariel, enquanto dizia que iria transformá-la em humana em troca de sua voz. Owen volta o filme na parte onde a Bruxa grita "O meu preço é a sua voz". Na quarta vez que volta a fita, a mãe diz: "Ele não está falando de suco [. . .] é a sua voz!". O pai diz a Owen: "É a sua voz! É isso que você está dizendo?". E Owen olha, pela primeira vez em um ano, nos olhos do pai e fica repetindo: "Eassuavos! Eassuavos! Eassuavos!". E a mãe percebe que tem o filho de volta, que ele está ali (Suskind, 2017).

Isso trouxe esperança, mas logo o médico e o terapeuta os frustraram, rotulando a expressão de Owen de "ecolalia". Ao contrário da visão médica, podemos dizer, segundo a psicanálise, que Owen usava a língua Disney para fazer uma conexão com o outro, e isso era animador.

Owen foi para o sótão e folheou um livro da Disney. Não sabia ler, mas gostava de olhar os desenhos. O pai aproximou-se, pegou o fantoche de Iago, o papagaio de Aladdin, um dos seus personagens preferidos. Colocou Iago na mão, cobriu-se com uma colcha e disse: "Então, Owen, como vão as coisas?". Como se tivesse encontrado um velho amigo, Owen respondeu: "Não estou feliz. Não tenho amigos. Não entendo o que as pessoas dizem" (Suskind, 2017, p. 63). O pai, ainda utilizando a voz de Iago, perguntou quando foi que eles ficaram tão bons amigos, e ele disse que foi quando começou a assistir Aladdin o tempo todo, ele o fazia dar muita risada, achava muito engraçado.

Assim, a família, tendo encontrado uma maneira de conexão com Owen, começou a conversar com ele por meio do texto dos personagens dos filmes. Usando as expressões exageradas dos personagens, as situações em que se encontravam, a maneira como interagiam para ajudar a definir todos aqueles sons misteriosos. Sons que agora a família podia ajudá-lo a contextualizar, com pulos, expressões de alegria. Começaram a fazer a travessia entre os mundos paralelos, o real e o da Disney. Conversavam com regularidade por meio dos diálogos, uma vez que havia uma cena para cada ocasião, sentimento ou momento. Certa vez, a mãe perguntou a Owen de que ele estava brincando, e ele respondeu: "Gárgulas". Ela sabia que se referia ao filme O Corcunda de Notre-Dame, pelo qual ele havia se apaixonado.

Owen foi estudar na Lab School em Washington, porém, um tempo depois, mesmo com alguns avanços, teve de sair da escola, por não conseguir se envolver com os professores nem com os colegas o suficiente para seguir em frente, não progredia. Owen ficou muito triste. E voltou para a antiga escola (Suskind, 2017).

Aprender a desenhar os personagens da Disney passou a ser o seu interesse maior. O pai folheou, sem que Owen visse, seu caderno de desenhos e encontrou escrito: "Sou o protetor dos escudeiros", "Nenhum escudeiro fica pra trás". Ele começou a atribuir identidades de escudeiros a seus colegas de escola, ia identificando suas qualidades. Os adolescentes, muitas vezes, utilizam a arte como uma forma de criar um mundo que lhe seja mais adequado.

Passou a mudar os roteiros dos filmes da Disney e demonstrava o desejo de recuperar o desenho feito à mão e dar início a "uma nova era de ouro da animação". O irmão Walt o desafiou a ter de trabalhar pra que isso acontecesse, e ele disse que tinha um roteiro: "Doze escudeiros em busca de um herói". Owen costumava observar o irmão com atenção, disse o pai. Ele era o único outro garoto que Owen conhecia de verdade, era seu único modelo.

Aos 13 anos, começou a consultar com um psicólogo, que adotou uma espécie de "terapia da Disney", ou algo que pode ser chamado de "terapia de afinidade", que os pais, com a ajuda do irmão, conduziam havia anos em casa.

Um texto escrito por Owen demonstrou, por seu personagem, o quanto as mudanças da puberdade o inquietavam. "Um menino que tem medo do futuro e de como a vida vai ser [. . .]" Esse menino entrava numa floresta e encontrava uma pedra mágica. Colocada na direção do Sol, transformava-se em um espelho, e o menino conseguia enxergar o futuro. Ao atravessar um rio, ele acabava perdendo a pedra. A história terminou. Ele não precisava mais da pedra, já que sabe que seu futuro seria brilhante e cheio de alegria (Suskind, 2017).

Estando numa nova escola, Owen fez dois amigos. Eles usaram o gosto comum pelos filmes para formar um trio. Até que Owen demonstrou, por condutas heteroagressivas e autoagressivas, sua dificuldade de convívio com os outros adolescentes e com a nova etapa da vida. A mãe percebeu o momento vivido pelo filho como algo advindo das questões da adolescência. Um período delicado que se mostra de uma maneira mais clara num adolescente típico.

As invenções são para a vida inteira. Owen inventou a língua Disney na infância e recorreu a ela na adolescência. Ele não havia abandonado a Disney. Por exemplo, o dizer de Filocteto, personagem de Hércules, tomado como seu conselheiro, era a única coisa que parecia abafar o seu medo: "Não, não, não, não, garoto, desistir é para novatos. Eu voltei porque não vou desistir de você. Estou disposto a ir até o fim. E você?" (Suskind, 2017, p. 203). Qualquer coisa que sugerisse crescimento, mudança, o mundo adulto, ao que parecia, todas as novidades da adolescência desestabilizavam suas defesas autísticas.

Os adolescentes buscam novos referenciais, uma vez que os pais já não são mais os titulares desse lugar. Owen elegeu o ator Jonathan Freeman, que fazia a voz de Jafar, em Aladdin, como um referencial, como também seu irmão Walt. Tomando o irmão como uma espécie de espelho, Owen revelou aos pais que queria fazer faculdade em outra cidade, como ele. "Separar-se do meio familiar, escolher outra via e eleger novos objetos são as consequências do tempo lógico da adolescência" (Lacadée, 2011, p. 158).

Owen diz que os autistas querem o que todo mundo quer. É um autista que decide fazer uma transição para a vida adulta. Busca a obtenção de uma certa autonomia. Aos 20 anos, foi aceito na Riverview, uma escola secundária e de ensino superior, em Cape Cod, Massachusetts. Entrou num programa chamado "Preparando-se para o Mundo Lá Fora". Owen teria colegas de dormitório, matérias obrigatórias e optativas, em uma verdadeira experiência universitária. Ele se acomodou no papel de escudeiro, junto de outros escudeiros à procura de um herói que não tem escolha além de encontrar o heroísmo dentro de si mesmo.

Carbonell nos diz ainda no Foro Internacional sobre Autismo, em 2018:

Posicionar o que acontece com o sujeito após a puberdade a partir das dificuldades de viver em um corpo que exige satisfação, significa entender que não há como chegar à idade adulta com alguma estabilidade se o autista não encontrar uma maneira de trabalhar o mundo consistente o suficiente para permitir que ele tenha onde se apoiar (Carbonell, & Ruíz, 2018).

A partir da indagação do pai sobre assistir aos filmes sem parar desde que tinha 3 anos, Owen disse que assistia desde 1 ano e que:

O filme não muda. É isso que eu adoro. Mas eu mudo. A cada vez, parece diferente para mim. Era assustador quando eu era pequeno. Então entendi que era sobre encontrar a beleza em lugares onde isso é difícil. Agora percebo que é sobre algo mais. Uma coisa maior. É sobre encontrar a beleza em você mesmo, porque só assim vai ser capaz de enxergar de verdade o amor nos outros e em todo lugar (Suskind, 2017, p. 307).

Podemos dizer que ocorreu para Owen uma subjetivação da transformação e da mudança vivida por ele na puberdade? Até que ponto ele alcançou uma subjetivação da vida pulsional?

Resolveu criar o Disney Club pouco tempo depois de chegar a Riverview. Cerca de 12 alunos iam até o alojamento de Owen toda semana para comer pipoca, conversar um pouco e assistir a seus filmes preferidos. Os membros do grupo estavam usando a Disney como modo de falar de si mesmos e de seus sentimentos mais profundos. Era uma chance para Owen fazer amigos e encontrar um lar em uma comunidade de iguais.

Owen apresentou a seu irmão Walt uma menina chamada Emily, e que fazia parte do Disney Club. Disse que Emily era superlegal, bonita e boazinha. Walt parecia querer ensinar o irmão a ser homem, namorar, etc., o que acabou se revelando uma missão impossível. Os guias de Owen para seu namoro eram os filmes, na maior parte, da Disney, os quais usava, em diversos momentos, para encontrar sentido no mundo.

Ron Suskind menciona que relacionamentos e namoros estão entre os problemas mais complicados que os jovens autistas enfrentam. Alguns deles são sexualizados, outros não. A maior parte não se casa, não tem filhos. Mas muitos querem ter relacionamentos (Suskind, 2017).

Owen disse que se apaixonou por uma menina maravilhosa, boazinha, linda, doce e gentil, que gosta das mesmas coisas que ele, filmes de animação, na maior parte, desenhados a mão e da Disney. Owen pareceu ter encontrado uma parceira. A língua da Disney o ajudava, mas não em tudo, uma vez que tinha de lidar com algo que não era colocado nas histórias infantis: o sexo.

Quando o irmão colocou as questões relacionadas ao namoro, incentivando-o a ter mais intimidade no relacionamento, como se esperava nos padrões culturais, Emily rompeu o namoro. Para Owen, as soluções do Outro não funcionaram para ele. Seu amor parecia não incluir o sexo como parte de seu relacionamento. O que talvez mantivesse o relacionamento era a parceria, não podendo descartar o campo de interesse comum entre eles, que eram os filmes. Ele ficou muito triste com o fim do relacionamento com Emily.

Owen disse que O Corcunda de Notre-Dame era um filme que havia visto muito a partir de sua adolescência, e se sentia muito próximo de Quasimodo, uma vez que sempre fora rejeitado pelos outros. Às vezes, não tinha vontade de participar de algumas atividades na escola, olhava o mundo a partir de seu fechamento. Mencionou que Quasimodo não encontrava o amor, mas sobrevivia depois de uma difícil jornada de se fazer ser aceito pela sociedade.

Contou que as gárgulas não eram iguais aos escudeiros. Todos os outros escudeiros viveram dentro do filme como personagens, faziam coisas. As gárgulas somente viviam quando Quasimodo estava sozinho com elas. Porque ele soprava vida nelas. Elas apenas viviam em sua imaginação. Mesmo assim, eram sábias e o orientavam.

As respostas estavam dentro dele. Precisava soprar vida nelas para falar consigo mesmo. Era o único jeito de descobrir quem era. Dizia que ele era assim. "Mas falar consigo mesmo pode ser muito solitário", Owen finalmente disse. "É preciso viver no mundo" (Suskind, 2017).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos perceber que a história de Owen nos mostra que cada autista vive o período da adolescência buscando suas próprias soluções e convoca também sua família a uma invenção singular que o possibilite encontrar seu lugar no mundo. Owen se serviu da invenção da infância e fez uma reinvenção para lidar com essa fase delicada da vida. Pela reinvenção da língua Disney, pois ela lhe permitia criar um clube de parceiros, Owen alcançou alguma subjetivação do gozo que lhe afetava o corpo na etapa da puberdade.

Podemos destacar, nesse contexto, a parceria de Owen com a Emily, que assumiu características bem singulares, visto que se tratava de um vínculo de amor sem sexo. Essa seria uma solução frequente junto aos autistas, isto é, a evitação do encontro com o Outro sexo?

Deixamos para uma futura pesquisa esse ponto ainda em aberto. Pergunta para a qual a clínica do caso a caso poderá nos trazer respostas.

REFERÊNCIAS

Barroso, S. F. (2009). Contribuição dos Lefort à psicanálise: a clínica da criança sem o Outro. Opção Lacaniana, 53(1), 83-89.         [ Links ]         [ Links ]

Carbonell, N., && Ruíz, I. (2018). Después de la infância, autismo y política. Autismovidaazul. [S.l.]: Autismo Vida Azul. Recuperado a partir dehttp://autismovidaazul.blogspot.com/2018/07/depois-da-infancia.html

Freud, S. (1895/1976). Projeto para uma psicologia científica. In J. Salomão (Trad.), Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (3ª ed., pp. 381-517). Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Publicado originalmente em 1895).         [ Links ]

Lacadée. P. (2009). Le corps et l’evénement pubertaire sans le secours d’un discours établi. In J-C Maleval (Org.), L’autiste, son double et ses objets. (pp. 253-268). Rennes: Presses Universitaires de Rennes.         [ Links ]

Lacadée, P. (2011). O despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: Contra Capa.         [ Links ]

Lacan, J. (1957-1958/1999). O seminário, livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (Publicado originalmente em 1957-1958).         [ Links ]

Miller, J.-A. (2003). A invenção psicótica. Opção Lacaniana, 36(1), 6-16.         [ Links ]

Roy, D. (2016). Metamorfose. B. S. Albuquerque & L. B. Toniolo (Trads.). Recuperado a partir de https://docplayer.com.br/31714740-Metamorfose-daniel-roy-umametamorfose- singular.html        [ Links ]

Stengel, M. (1996). Obsceno é falar de amor?: as relações afetivas dos adolescentes.(Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Belo Horizonte.         [ Links ]

Suskind, R. (2017). Vida animada: uma história sobre autismo, heróis e amizade. Rio de Janeiro: Objetiva.         [ Links ]

Telles, H. P. R. S. (2017, julho 28). A saída da infância: de que impasse se trata? São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise. Recuperado a partir de http://www.ebp.org.br/sp/a-saida-da-infancia-de-que-impasse-se-trata/        [ Links ]

 

* Especialista em Abordagem Psicanalítica do Autismo e Suas Conexões (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas, Instituto de Educação Continuada – IEC), Psicóloga. Endereço: Rua Doutor Júlio Ribeiro, 195 - Industrial Itaú, Contagem-MG, Brasil. CEP: 32223-390.E-mail: claudiamsoares3@gmail.com..

Creative Commons License