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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.26 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2020

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2020v26n1p221-238 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2020v26n1p221-238

 

A devastação materna e suas repercussões nas parcerias amorosas

 

Maternal devastation and its repercussions in romantic partnerships

 

La devastación materna y sus repercusiones en las relaciones amorosas

 

 

Andréa Eulálio de Paula Ferreira*; Márcia Maria Rosa Vieira Luchina**

 

 


Resumo

A sexualidade feminina se apresenta como enigmática. Isso suscita muitas reflexões sobre a feminilidade. A descoberta de que o sexo não é um fenômeno natural, mas resultado da subjetivação fálica, torna-se um marco extremamente significativo para a sexualidade feminina. Para Freud, a devastação estaria relacionada ao destino do falo na menina. Freud observa que certas mulheres permanecem fixadas na ligação original com a mãe, sem nunca alcançarem uma verdadeira mudança na relação com os homens. Lacan avança mais além dessa articulação fálica, ao perceber que o falo não satura o campo do gozo na sexualidade feminina. O que está em jogo é o gozo feminino, não todo submetido à função fálica. O termo devastação aparece como consequência da inexistência de um significante que defina A mulher e está presente em três momentos da teoria lacaniana: na relação com a mãe, na relação com o desejo da mãe e nas parcerias amorosas.

Palavras-chave: Gozo fálico. Gozo suplementar. Devastação. Sexualidade feminina. Parcerias amorosas.


Abstract

Feminine sexuality is enigmatic, which raises many reflections on femininity. The discovery that sex is not a natural phenomenon, but the result of phallic subjectivity, is an extremely significant milestone for female sexuality. According to Freud, the devastation would be related to the fate of phallus for a girl. Freud notes that some women remain fixed in the original attachment to their mothers, and never achieve a real change in the relationship with men. Lacan goes beyond the phallic articulation, realizing that the phallus does not saturate the jouissance field in feminine sexuality. What is at stake is the feminine jouissance, which is not totally submitted to the phallic function. The term devastation arises as a consequence of the absence of a significant that defines a woman and It appears in three different moments in Lacanian theory: in the relationship with the mother, in the relationship with the mother’s desire and in love partnerships.

Keywords: Phallic jouissance. Supplementary jouissance. Devastation. Feminine sexuality. Love partnerships.


Resumen

La sexualidad femenina se presenta como enigmática, lo que plantea muchas reflexiones acerca de la feminidad. El descubrimiento de que el sexo no es un fenómeno natural, sino resultado de la subjetivación fálica, se convierte en un hito muy importante para la sexualidad femenina. Según Freud, la devastación estaría relacionada al destino del falo en la niña. Freud señala que algunas mujeres se fijan en el vínculo original con la madre, sin nunca conseguir lograr un verdadero cambio en relación con los hombres. Lacan va más allá de la articulación fálica, al darse cuenta de que el falo no satura el campo del goce en la sexualidad femenina. Lo que está en juego es el goce femenino, no todo sujeto a la función fálica. El término devastación aparece como una consecuencia de la no existencia de un significante que defina La mujer y está presente en tres momentos de la teoría lacaniana: en la relación con la madre, en la relación con el deseo de la madre y en las relaciones amorosas.

Palabras clave: Goce fálico. Goce suplementario. Devastación. Sexualidad femenina. Relaciones amorosas.

A noção de devastação se mostra relevante para tentar elucidar, na experiência clínica, alguns pontos referentes ao feminino que, desde sempre, permanecem obscuros diante da inexistência de um significante que defina A mulher, situação que afeta não somente as mulheres, mas o ser de linguagem, e que requer soluções para ambos os sexos.

Em ascensão, a clínica da devastação feminina sinaliza a presença da versão lacaniana do gozo feminino, que se constitui como báscula entre o gozo fálico e o gozo não todo submetido ao falo e apresenta-se ao sujeito como um campo ignorado, deserto de referências, permanecendo inacessível ao saber inconsciente. O gozo feminino entrou na cultura caracterizado como regime do gozo não todo pelas diversas modalidades de relação do sujeito com o Outro, com o corpo, e pelas inúmeras dificuldades com o laço social, que se fazem notar sobretudo nas mulheres por serem as mais afetadas pela falta de identificação simbólica e imaginária para o feminino, seja nas parcerias amorosas, na maternidade ou no amor.

Não é raro constatar casos clínicos de mulheres que permanecem muito ligadas à mãe, recusando o enlaçamento com os homens, podendo chegar até à homossexualidade, ou de mulheres que se entregam inteiramente ao amor de um homem, muitas vezes abrindo mão até das coisas mais essenciais de suas vidas. Também se apresentam na clínica casos de mulheres que relatam seus impasses em relação à experiência da maternidade. Há tanto mulheres que exercem a maternidade com uma devoção absoluta quanto mulheres que não conseguem ocupar o lugar de mãe.

O termo "devastação", em francês ravage, conserva duas direções de sentido. Pode estar associado à ideia de ruína, de destruição, ou à ideia de um corpo arrebatado (ravi) que é lançado fora do tempo e do espaço, na vertente de um êxtase, de uma felicidade suprema. No dicionário, o sentido do termo remete a uma destruição sem limites, a algo avassalador. Devastar é arruinar, tornar deserto; mas também pode indicar arrebatamento, deslumbramento, encantamento, significados para os quais o termo mais usado em francês é ravissement.

Em três momentos distintos, o termo "devastação", abordado pelo viés do gozo feminino, aparece na teoria lacaniana: na relação com o desejo da mãe, na relação com a mãe e nas parcerias amorosas.

Em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (Lacan, 1969-1970/1992)1, quando Lacan está trabalhando o mais além do complexo de Édipo, o termo surge ligado ao desejo da mãe, independentemente de a criança ser menino ou menina: "O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos" (p. 118). Isso ocorre porque há uma área obscura do desejo da mãe que não é totalmente recoberta pelo nome do pai. Tal área tende a ser tomada equivocadamente como primitiva, anterior ao Édipo, mas é, na verdade, concomitante ao Édipo e porta um gozo a mais, enigmático e invasivo, que pode se apresentar de várias formas. Uma delas seria a forma da devastação.

O termo "devastação", usado para designar a relação entre mãe e filha, referese também àquilo que está para além da reivindicação fálica dirigida à mãe, ou seja, ao encontro da menina com o Outro materno como Outro do gozo. Para além da demanda amorosa, algo da mãe escapa à lei simbólica, tornando mais difícil para o sujeito metaforizar o desejo materno. Posteriormente, em O aturdito, publicado em Outros escritos, Lacan (1972/2003) retorna ao tema da devastação ao dizer que as mulheres não têm nada a perder quando se trata da castração. É a relação com a mãe, em sua vertente mulher, que, na maioria das vezes, constitui devastação para a filha. A filha espera da mãe algo com mais "substância" do que do pai:

Por essa razão, a elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit), contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com sua mãe, de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai – o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação (Lacan, 1972, p. 465).

Como esse texto é contemporâneo das elaborações de Lacan sobre as fórmulas da sexuação e sobre o gozo feminino, buscar-se-á contextualizar a citação de O aturdito sobre a devastação nos textos lacanianos, os quais servirão de base para fundamentar este artigo.

Por fim, o terceiro momento em que o termo aparece nas elaborações lacanianas está em O seminário, livro 23: o sinthoma (Lacan, 1975-1976/2007). Nesse seminário, Lacan, inspirado pela escrita de James Joyce, propõe as diversas possibilidades de amarração entre os nós borromeanos, que corresponderão às distintas maneiras de os sexos se relacionarem entre si.

Lacan, ao afirmar que um homem, na parceria amorosa, pode ser pior que uma aflição, pode ser uma devastação para uma mulher (Lacan, 1975-1976), indica-nos como a devastação na parceria amorosa se caracteriza pela erotomania, expressa na demanda desmedida das mulheres por signos e palavras que possam dar consistência ao seu ser de mulher.

Embora apareçam em contextos distintos na obra de Lacan, todas as três referências dizem respeito à inexistência do significante d’A mulher, marca inexorável da castração, que Lacan escreveu sob a forma do matema , presente nas fórmulas da sexuação, e que se impõe para todos como o exílio da "relação sexual que não existe". A devastação aparece relacionada a um gozo suplementar, feminino e indizível, já que impossível de se representar pelo significante.

Ao afirmar que o desejo da mãe é devastador para a criança, independentemente de ela ser menino ou menina, Lacan nos leva a indagar: haveria alguma especificidade no caso de o desejo materno estar endereçado a uma menina? A parceria amorosa é sempre devastadora para a mulher ou poderia ser considerada como uma solução, como uma saída para a devastação? Haveria algo da devastação entre mãe e filha que, posteriormente, repercutiria nas parcerias amorosas das mulheres com os homens?

A fim de tentar responder às questões suscitadas pela clínica, assim como tentar esclarecer a noção de devastação formulada por Lacan e as soluções sintomáticas encontradas pelos sujeitos diante da devastação, faz-se necessário trilhar um percurso em Freud. Ao retomar os textos freudianos, tentar-se-á localizar se algo do gozo feminino na mulher já estaria instituído como consequência da relação de devastação entre mãe e filha.

Em vários pontos dos textos de Freud, é possível constatar o embaraço freudiano diante das questões sobre o gozo e sobre a sexualidade feminina, a qual Freud nomeia "continente negro", termo que vai envolvê-lo em uma série de reflexões concernentes à feminilidade. Seu desconcerto pôde ser formulado diante de uma pergunta, que permaneceria em aberto: o que quer uma mulher?

Compreender que há uma relação muito particular da menina com a mãe foi o que possibilitou a Freud fazer uma releitura da teoria do Édipo e identificar aí uma série de dificuldades decorrentes do fato de haver apenas um representante do sexo no inconsciente.

Ao introduzir a noção de uma pré-história do complexo de Édipo feminino, Freud percebe, cada vez mais claramente, que "a problemática feminina não é, no fundo, outra coisa, senão o retorno inelutável da relação antiga com a mãe" (André, 1991, p. 179), abandonando de vez qualquer paralelismo entre o desenvolvimento sexual masculino e o feminino. Como a menina encontra o caminho para o pai? Como e quando a menina se separa da mãe? Quais os mecanismos que levam a menina a abandonar a mãe e a direcionar-se ao pai? (Freud, 1931/1980).

Freud nomeou de "catástrofe" (termo que conserva sentido análogo ao termo "devastação", utilizado por Lacan) a possibilidade de a filha não conseguir se separar da mãe e se dirigir ao pai. Ambos os termos se relacionam com aquilo que a psicanálise estabeleceu como parte da subjetividade feminina, ou seja, aquilo que se origina no que a filha espera de sua identificação feminina e que se revela impossível.

É no contexto do complexo de Édipo, da relação primeira com a mãe e, depois, com o pai, que se revelam várias consequências psíquicas decorrentes da inveja do pênis, Penisneid, eixo pelo qual perpassa, na teoria freudiana, a sexualidade feminina. O Penisneid é um elemento fundamental para que a menina possa desprender-se da demanda dirigida à mãe e tomar outra direção.

Na trajetória edípica da menina, que tem um desenlace indefinidamente longo e difícil, abrem-se duas possibilidades que definem os destinos da mulher, a partir da relação com o falo. Na primeira possibilidade, pode ocorrer que a menina nunca se separe do vínculo primordial com a mãe e não logre uma orientação sexual voltada para o homem. Na segunda possibilidade, a menina se identifica ao homem como portador do órgão imaginário e retorna ao complexo de masculinidade. Muitas vezes, fixa-se nele, abrindo-se a via da homossexualidade. Outras vezes, finalmente, segundo a elaboração de Freud, a menina toma o pai como objeto de amor, na esperança de receber dele e, posteriormente, de outro homem, o falo que a mãe não pode lhe dar, de acordo com a equivalência simbólica entre pênis e filho. A maternidade seria, para Freud, a saída menos problemática para os impasses do feminino. Contudo o filho não satura o desejo feminino que, por estrutura, é insaciável.

A associação entre falta de pênis e falta de amor aponta para uma questão que se revela crucial para toda filha. Os sentimentos de ódio e de hostilidade que a menina desenvolve em relação à mãe, em razão de esta não lhe ter dado o órgão fálico, são, entre outras, marcas indeléveis do desejo feminino, traduzido pela reivindicação fálica.

Partindo da premissa de que, mesmo nos casos em que a menina renuncia à mãe, substituindo-a pelo pai, permanece um resto que nunca será superado (Freud, 1933/1980), pergunta-se: qual a solução singular que cada mulher encontra, no dispositivo analítico ou fora dele, para "saber fazer" (savoir y faire) com esse resto? Que resto é esse que permanece?

A tensão na relação entre mãe e filha, decorrente da descoberta de que a castração é uma condição do feminino e da consequente inveja do pênis, contribui para que a sexualidade feminina se apresente, para Freud, como paradoxal e enigmática. Coube a Lacan retomar e relançar novas questões sobre o tema do feminino, entre elas a noção de devastação, extraída de seu texto intitulado O aturdito (1972), citado anteriormente neste artigo: "Por essa razão, a elucubração freudiana do complexo de Édipo, que faz da mulher peixe na água, pela castração ser nela ponto de partida (Freud dixit)" (Lacan, 1972, p. 465). Lacan está querendo dizer que a ideia freudiana em relação à castração é que as mulheres se movimentam tal como peixe na água. É dado como certo que, na menina, a ameaça de castração não tem efeitos, uma vez que ela já é castrada. Na menina, a ameaça de castração se torna, portanto, o ponto de partida para a entrada no Édipo.

Ao seguirmos na leitura da citação de O aturdito, vemos que Lacan diverge de Freud quando afirma que a elaboração freudiana "contrasta dolorosamente com a realidade de devastação que constitui, na mulher, em sua maioria, a relação com sua mãe" (Lacan, 1972, p. 465).

Se a castração não é o problema, pois não representa nenhuma ameaça, a dificuldade se localiza muito mais na “realidade de devastação” com que a mãe se apresenta. Temos, até aqui, uma referência ao Édipo, e Lacan credita ao Penisneid uma parte da tensão resultante da relação entre mãe e filha. Contudo a devastação aponta para algo além dessa rivalidade edípica. Definida como ruína, aniquilamento, destruição completa, a devastação encontra-se descrita, das formas mais variadas, na clínica e na literatura.

O fato é que, para a menina, para além da castração, da falta fálica e do complexo de Édipo, é da mãe "de quem, como mulher, ela realmente parece esperar mais substância que do pai – o que não combina com ele ser segundo, nessa devastação" (Lacan, 1972, p. 465).

A perspectiva tomada por Lacan, ao introduzir que, na relação com a mãe, a filha parece esperar, como mulher, mais substância que do pai já desloca a ideia de que a devastação seria creditada à figura da mãe. Não seria exatamente da mãe, mas da mãe como mulher que se espera algo mais consistente, mais substancial, algo que não é necessariamente da ordem material. Nesse sentido, o que é devastador não é a relação mãe-filha, mas o fato de a filha endereçar à mãe a pergunta sobre uma mulher.

A substância que a menina encontra está do lado do pai, ou seja, o pai é quem pode fornecer-lhe os semblantes fálicos. Todavia o semblante é insuficiente, pois algo resta sem definição, já que o falo não satura todo o campo pulsional da mulher. Por isso a menina continua insistindo, de maneira incessante, em querer resolver a questão da feminilidade pelo lado da mulher, esperando algo de alguém que é tão insubstancial e afetada quanto ela.

É aí que algo não vai bem. Lacan localiza essa dificuldade na duplicidade da posição feminina. Interrogar sobre o que é uma mulher e tornar-se mulher são duas soluções essencialmente distintas, e cada uma contém seus percalços, sendo uma o contrário da outra (Lacan, 1955-1956/1988). Histeria e feminilidade são dois modos diferentes de se posicionar em relação ao falo, na busca de uma identificação fundamental para o feminino, que não existe. A histérica, pela via da identificação ao homem, busca uma solução fálica que seria capaz de supri-la. Suprir o impossível de simbolizar, o ser da mulher. Lacan admite que a histeria, assim como a maternidade, é, sim, uma solução, porém insuficiente, porque sempre resta algo fora do domínio fálico. Por outro lado, Lacan indica a singularidade da solução da posição feminina, distinta da posição histérica, que é a de se defrontar com a divisão entre o gozo fálico e o gozo não todo fálico, por meio do consentimento em tornar-se "Outra para ela mesma", tarefa para a qual o homem lhe serve como conector (Lacan, 1958/1998, p. 741).

O tornar-se mulher implica, em primeira instância, separar-se da mãe. Mais do que uma separação, trata-se de uma deserção. Assim, se o significante fálico só define a mulher enquanto castrada, a invenção de um nome, pela vertente da escrita literária, biográfica ou do dispositivo da análise, possibilita à mulher inventar um nome para o feminino, podendo cernir algo do gozo não todo. Não se trata, pois, de um gozo regido pela lógica da castração, mas de um gozo regido pela privação de um objeto real. Porém Lacan adverte que é recomendável que se passe pela castração, mas se deve prever que se possa prescindir dela.

Para a escritora Duras, o "tornar-se mulher" só foi possível quando ele se converteu em "tornar-se escritora". Em toda a sua obra e, mais especificamente, em seu romance Barragem contra o Pacífico (Duras, 2003), revela-se o olhar atento da escritora para as questões relativas ao feminino e a singular descrição que ela faz de seu padecimento na relação com sua mãe. Barragem contra o Pacífico (Duras, 2003) narra a relação de amor e ódio entre mãe e filha. A mãe, cujo único objetivo era deixar um pequeno bem para os filhos que amava loucamente, empenha todas as suas economias na compra de terras para cultivar arroz. No entanto as plantações são periodicamente invadidas pelas ondas do Pacífico. Ajudada por centenas de camponeses, a mãe constrói uma barragem, a qual, apesar dos esforços, sempre cedia ante a fúria do mar. A barragem contra o Pacífico deverá conter não apenas o mar, que inunda as plantações de arroz, mas também o amor enlouquecido da mãe pelos filhos. Foi a prática da escrita que possibilitou a Duras fazer uma barragem para conter algo do gozo excessivo e avassalador, limitando os efeitos de devastação advindos de sua relação com a mãe.

Mesmo situando o falo no centro da dialética da sexualidade feminina, isso significa que Freud acreditava que ele encobriria o campo do gozo nas mulheres? E de que maneira o gozo feminino se articularia à constituição do sujeito, mais especificamente, do sujeito feminino?

Em O mal-estar na civilização, Freud (1930/1980) apresenta a figura feminina como aquela que cuida dos interesses da família e da vida sexual, que não se conforma com os limites que lhe são impostos pela civilização e que não desenvolveu o supereu. Ao se colocarem voluntariamente em uma posição de infração às normas, as mulheres permaneceriam arraigadas às satisfações das pulsões primárias (Freud, 1930, p. 124). A mulher freudiana se apresenta segundo duas vertentes: na primeira, mostra-se como um ser portador da falta fálica, de um menos de gozar, derivado do complexo de castração; na segunda vertente, apresenta-se por um excesso, traduzido pelo desejo insaciável da mulher de possuir um pênis, nomeado Penisneid.

O ilimitado do gozo feminino, portanto, está muito próximo do que Freud queria dizer quando formulou que não existiria limite à castração para a mulher. Além disso, na conferência de Freud sobre a Feminilidade (Freud, 1933), é possível encontrar "uma relação particularmente constante entre feminilidade e vida pulsional" (p. 143).

Freud (1933) reconhece a importância da relação mãe-filha como determinante na vida erótica da menina a partir de dois elementos que caracterizam essa relação, pelo viés da satisfação. O primeiro deles é o brincar de bonecas, experiência que, muito mais que exprimir um traço de feminilidade, cumpre a função de transformar experiências passivas em ativas. As meninas, ao brincarem de mãe e filha com suas bonecas, têm a chance de expressar essa “atividade da feminilidade, e essa predileção da menina talvez ateste o caráter exclusivo da ligação com a mãe, com total descaso do objeto-pai” (Freud, 1931, p. 272). O segundo elemento são as fantasias de alto conteúdo erótico e amoroso em torno da masturbação clitoridiana, que se transformam em ciúmes e em ódio diante das proibições por parte da mãe. Essa situação tem origem na "sedução" da mãe durante as práticas de higiene e de carícias.

Ao dizer que a mãe é, na verdade, a primeira sedutora, Freud coloca-a como esse Outro capaz de gozar do corpo da filha. Isso fica como um resto do qual caberá à filha a tarefa de se emancipar. Para Brousse (2004), "a menina sempre poderá responsabilizar a mãe a causa da devastação, posto que um gozo não tratado pelo significante fálico resta inexoravelmente como fato da estrutura" (Brousse apud Fuentes, 2012, p. 108).

Miller (2003) considera que as afirmações presentes em O mal-estar na civilização e em Feminilidade são uma tentativa freudiana de definir a mulher pela vertente do gozo feminino, o que nos leva a pensar que Freud realmente não acreditava que o falo saturava o campo do gozo nas mulheres.

Não é somente no que diz respeito à formação do inconsciente que o Outro tem precedência na vida do sujeito. Também a tem na relação de constituição do corpo próprio. Se obtemos alguma garantia de nosso corpo, é porque estamos mergulhados em um mar de linguagem, em um universo simbólico que nos precede e que nos determina, o que se torna válido para ambos os sexos. Mesmo tendo claro que a anatomia não é o destino, isso não deixa de ter consequências sobre o sujeito.

Para Lacan, primeiro o corpo se constitui no espelho, o eu se constitui como forma alienada na imagem do outro. Diante de sua própria imagem no espelho, a criança a toma como se fosse de outro. Ainda que a criança, por um lado, sintase fragmentada, por outro, ela vivenciará sua imagem unificada no espelho. Para se identificar a ela, é necessário o investimento do Outro, o olhar do Outro sobre a criança.

O júbilo da imagem no espelho dá então consistência à imagem do corpo que se sustenta como tal no desejo do Outro, quando a criança, desde que o consinta, encontra, na operação de alienação, o suporte identificatório nos significantes da demanda da mãe que a criança quer satisfazer (Fuentes, 2012, p. 133).

O sexo não chega, portanto, naturalmente pela maturação libidinal, mas envolve o discurso do Outro e seu desejo, que a criança procura preencher. Brousse (2004) situa a devastação no campo da relação entre o sujeito e a mãe, o Outro da linguagem e a relação com a fala. Uma das marcas dessa "aventura primordial do que se passou em torno do desejo infantil" (Lacan, 1957-1958/1999, p. 282) é a marca deixada pelo fato de a mãe ser a detentora dos poderes da palavra.

Como já foi dito anteriormente, há um resto que não é “drenado” pela mediação fálica, e essa é uma das razões que faz com que o discurso da mãe seja sempre legiferante e que, por toda a vida, o sujeito carregue a marca de seu desejo e os estigmas de seu gozo. Há toda uma linguagem privada entre a mãe e seu bebê que Lacan denominou de lalíngua, a língua dita materna, que deixa traços marcados na carne e que permanece no registro do real. Diferentemente da linguagem articulada segundo as leis do significante, a lalíngua é composta pelo "rumor inquietante, enigmático e ilegível do gozo materno" (Fuentes, 2012, p. 135). A mãe decreta, legifera e sentencia sobre tudo o que tem a ver com a existência da criança, e é assim que suas palavras adquirem um sentido e têm profundas consequências para o destino da criança.

A fala do Outro materno está associada à descoberta de uma experiência de gozo sexual traumática para o sujeito. É assim que Brousse (2004) se refere ao enigma do desejo da mãe que tem como pano de fundo a inscrição traumática do corpo por um significante pelo qual o sujeito far-se-á reconhecer. Então, se é verdade que é a linguagem que nos permite nos apropriarmos do corpo, pois não se trata do corpo orgânico, mas do corpo falante (ao dizer "este corpo me pertence"), para vivenciá-lo como tal, haveria alguma especificidade a ser levada em conta no caso da subjetivação do corpo de uma mulher?

No caso da menina, surge um complicador devido ao fato de que ela nunca está certa de poder contar com uma consistência suficientemente firme que sustente sua imagem, muito em razão da ausência de um significante feminino: não há diferença sexual anatômica que possa imprimir uma diferença entre mãe e filha, o que lhes dá a ilusão de uma proximidade corporal e também de uma cumplicidade na experiência feminina, a ilusão de uma transparência de experiência (mesmo que elas busquem resistir a essas ilusões ou mesmo se defender delas). Tudo isso é representado na intimidade dos corpos, nas questões relacionadas à beleza, à escolha das roupas, às estratégias de sedução. Contudo a semelhança feminina, entre mãe e filha, é ilusória. A devastação é uma prova que quebra a ilusão tentadora de que mãe e filha têm algo em comum, uma unidade de experiência do feminino (Lessana, 2000, p. 398). Isso porque, como falta um significante feminino, a mulher nunca está certa de poder contar com uma consistência suficientemente firme que lhe permita articular a identificação à mãe.

Em O seminário, livro 8: a transferência (Lacan, 1960-1961/1992), Lacan afirma: "A imagem especular tem, certamente, uma face de investimento, mas também uma face de defesa. É uma barragem contra o Pacífico do amor materno" (Lacan, 1960-1961, p. 378). Lacan nos diz que o falo se coloca no lugar desse dique. Porém, no caso das mulheres, o falo nunca chega a se constituir como defesa contra a devastação materna. Ao mesmo tempo em que a imagem fálica é necessária para que o corpo de uma mulher possa ter um suporte, por outro lado, na maioria das vezes, o ódio decorrente da relação mãe-filha vem acompanhado de paixão, de uma dependência que aniquila e de um resto pulsional não mediatizado pelo significante falo.

A partir daí, pode-se conceber a força e a imensidão do que uma mulher espera de sua mãe. Trata-se de algo que a mãe não pode lhe dar: nem a existência enquanto mulher, nem o ser de mulher, tampouco a “substância feminina”. A mãe não lhe pode dar não porque ela não o queira, mas porque se trata de algo da ordem do impossível, no sentido daquilo que não cessa de não se escrever para a mulher.

Para Brousse (2004), a devastação feminina situa-se no momento da introdução traumática do sexual, quando algo da mãe escapou à lei simbólica que deveria tê-la feito objeto na estrutura de troca fálica. Na impossibilidade de metaforizar o desejo da mãe, a filha permanece como objeto rebaixado, sem lugar no desejo do Outro. Na relação de devastação, esse gozo permanece no lugar de um Outro real, que convoca a filha para uma fusão impossível ou para a perseguição.

A castração e as identificações edípicas são suficientes para definir o homem. Porém, em relação à mulher, Lacan avança nesse ponto, ao dizer que a mediação fálica não drena todo o gozo de uma mulher. O gozo feminino dito suplementar não é um gozo identificatório, pelo contrário, é, sim, o inverso do gozo fálico, pois este tem uma relação com a identidade. Ao formular que uma mulher é não toda referida ao falo, a referência passa a ser o gozo e o modo como cada um dos sexos se articula a ele. Isso se confirma nas fórmulas da sexuação de Lacan, que explicitam a diferença sexual com base na lógica, fazendo do falo uma função e mostrando como homens e mulheres cumprem ou não a função fálica.

Os sujeitos que se posicionam do lado homem estão confrontados com uma exceção que, por sua vez, possibilita a existência de um conjunto fechado. Isso quer dizer que todos os sujeitos que ali se encontram estão inscritos na lógica fálica.

Do lado mulher, isso não é possível. As mulheres não estão confrontadas com uma exceção, mas sim com uma inexistência. Consequentemente, do lado mulher, não se pode constituir o conjunto de todas as mulheres. A ausência de exceção constitui um sujeito que se instala fora do universal. Cada mulher é uma. Uma vez que as mulheres estão não todas inscritas na função fálica, ou seja, que não existe a exceção que engendra o um como limite do todo, estamos diante de um infinito não totalizado. É um não todo indecidível, pois há algo do ser da mulher que não é significável.

Uma vez que as mulheres estão não todas inscritas na função fálica, ou seja, que não existe a exceção que engendra o um como limite do todo, estamos diante de um infinito não totalizado. É um não todo indecidível, pois há algo do ser da mulher que não é significável. Como as mulheres se situam em uma parceria amorosa? De que modo se pode conectar a devastação originada na relação mãe-filha com a devastação na relação com o homem? Mais uma vez, ao tratarmos da temática amorosa, buscar-se-á uma aproximação entre os textos de Freud e Lacan.

Para o ser falante, há uma ausência de saber no real que diga respeito à sexualidade e que, assim, possa fazer prescrições ao sujeito em relação ao parceiro. O que há é um ser às voltas com seu sintoma, com a fantasia que o sustenta e com sua forma de satisfação de gozo. Paradoxalmente, porém, é a crença nessa ilusão que perpetua a própria inexistência da relação sexual, pois o sujeito está constantemente em busca de um parceiro e permanentemente exilado em seu próprio gozo.

Os encontros entre homens e mulheres envolvem uma série de parcerias que já estão presentes desde Freud (1914/1980), em seu texto Sobre o narcisismo: uma introdução, que trata sobretudo das escolhas dos objetos amorosos e do modo como homens e mulheres traçam os caminhos que os conduzem à eleição de seus parceiros.

Posteriormente, Lacan, ao longo de seu ensino, acrescentou outras possibilidades a essas parcerias. Ele condensou essas parcerias na noção de parceria com o sintoma, cuja função é suprir a falta da relação sexual. Isto é, o sintoma inscreve-se no lugar da falta resultante da não equivalência entre homens e mulheres.

Nisso se fundamenta o trabalho de Miller (2000), intitulado A teoria do parceiro, em que ele eleva à categoria de noção fundamental o sintagma parceirosintoma, criado por Lacan. Ao esclarecer que o verdadeiro parceiro do sujeito é sua forma de gozar, abre-se também outra perspectiva em relação ao significante. O significante não apenas mortifica o corpo e libera o mais de gozar, mas também determina o modo como o falasser se serve do Outro para gozar.

Se o sintoma é um parceiro do gozo do lado masculino, é porque predomina a forma fetichista de amar uma mulher, em oposição à forma erotômana de amar da mulher. Se, do lado masculino, o objeto de amor é fetichizado e o desejo passa pelo gozo, do lado feminino, predomina a forma erotômana de amar, um amor sem limites, insaciável, em que a mulher quer ter a certeza de ser amada (Lacan, 1958, p. 742).

O parceiro-sintoma da mulher se torna parceiro-devastação para a mulher quando o amor, pela vertente do gozo feminino, não todo, coloca-a em relação direta com o significante que falta no Outro.

Além da relação da mulher com o falo, há alguns casos em que ela pode ser arrebatada em uma relação direta com o gozo não regulado (nem pelo falo, nem pelo Édipo). Na clínica psicanalítica e na literatura, recolhem-se muitos testemunhos femininos sobre as mais variadas manifestações da estranheza com relação ao gozo feminino que, embora se localize no corpo, não é experimentado no corpo como próprio, permanecendo fora do tratamento que a linguagem pode oferecer, em termos de localização do gozo. O termo "devastação" tanto pode estar associado à ideia de ruína, destruição quanto à ideia de um corpo arrebatado em estado de êxtase. Em temos místicos, arrebatamento significa ser transportado para uma experiência de felicidade suprema em que o sujeito é lançado para fora do tempo e do espaço e se sente despossuído de seu próprio corpo.

Se o sintoma é um sofrimento sempre limitado, um sofrimento localizado, "a devastação é uma depredação, uma dor que não para, que não conhece limites" (Miller, 2003, p. 20). Não deixa de ser um sintoma do sujeito o fato de ele tomar o Outro como um meio de gozo; nesse sentido, a relação entre os sexos é sempre sintomática.

Miller (1998) definiu "a devastação como a outra face do amor" (p. 81). O que um e outro têm em comum diz respeito ao não todo, no sentido do indecidível, da inconsistência, que só tem valor na estrutura do infinito. O que é devastador, para a mulher, não é o amor em si, mas a demanda ao Outro em seu caráter infinito de ser amada, inerente à estrutura do não todo, que retorna ao ser feminino como devastação.

Laurent (2012), em A psicanálise e a escolha das mulheres, fala de alguns impasses e soluções encontrados pelas mulheres nas parcerias amorosas, e observa que podemos verificar sua ocorrência tanto na clínica quanto na literatura: algumas mulheres se lançam cada vez mais longe no desejo de querer "dar tudo ao homem amado", "ser tudo para ele", e não cessam de querer que um homem seja seu Outro; outras se interrogam, com a ajuda de um homem em posição fálica, o mistério da essência feminina, convocando uma outra mulher; outras se aderem à identificação imaginária ao falo, não havendo meios de alcançar o Outro (Laurent, 2012, p. 104). Enfim, há todo um campo crescente das mais diversas reivindicações femininas, justamente pelo fato de o falo não responder às mulheres, pela falta estrutural de um significante no campo da linguagem capaz de definir o que seja "A mulher". O efeito de tudo isso pode ser devastador.

O fragmento apresentado a seguir elucida a relação estreita entre amor e devastação a partir da contingência do encontro entre um homem e uma mulher.

M., 39 anos, foi entrevistada em uma apresentação de pacientes realizada em um hospital psiquiátrico da rede pública de Belo Horizonte. Ela fora internada após ter estado vários dias desaparecida, consumindo crack. Grávida do quinto filho, M. relata que perdeu sua mãe aos 6 anos de idade e então foi morar com a irmã mais velha. M. se queixa de que a irmã nunca cuidou dela como uma filha. M. conclui: "Minha irmã nunca me adotou".

Aos 17 anos, M. ficou grávida do primeiro filho, momento em que experimentou a cocaína pela primeira vez. Foi o próprio marido, 11 anos mais velho, quem lhe ofereceu a droga. "Da primeira vez que ele me ofereceu, eu pensei em falar ‘não’, mas, mesmo assim, eu aceitei, eu disse 'sim'. No início, eu não gostava nem desgostava da droga, mas, mesmo assim, eu insisti".

Sempre fui muito fechada, muito deprimida [. . .] eu nunca senti que a casa da minha irmã fosse a minha casa, sempre aguentei tudo calada e nunca alterei a voz para falar com minha irmã. No início do nosso relacionamento, meu marido me ajudou muito, éramos parceiros, conversávamos sobre tudo, mas a droga atrapalhou demais o nosso relacionamento.

No relato de M., constata-se que o consumo de drogas aparece simultaneamente ao encontro com seu parceiro, o qual conversa com ela, oferecendo-lhe as palavras, "retirando-a" daquele estado deprimido e calado em que vivia até então. Desse modo, ao lhe ofertar a palavra, o parceiro de M. oferece-lhe também a droga. A palavra, nesse caso, pode ser tomada como pharmakon (Le Poulichet, 1990), em sua dimensão dialética que remete tanto ao remédio quanto ao veneno.

M. relata que seu companheiro consegue controlar o uso da droga. "Eu não controlo, eu fumo de cinco a dez pedras por dia. Eu uso porque meu organismo depende da droga, ele grita pedindo a droga." M. conta que, diante daquela oferta, mesmo tendo pensado em dizer "não", iniciou o uso e, a partir de então, passou a usar a droga todas as vezes em que seu parceiro lhe fazia tal proposta. De início, o que parece é que M. não demonstra nenhum apego à substância, "não gosta, nem desgosta da droga", em contraponto a seu desmedido apego às palavras de seu companheiro.

Sendo um sujeito que se nomeava como um objeto abandonado pelo Outro, foi na relação com o parceiro que M. supôs obter mais substância sobre o seu ser de mulher. Em sua voracidade pelas palavras de amor, M. faz qualquer tipo de concessão ao seu parceiro, até mesmo entregar o seu corpo aos efeitos devastadores da droga. A cada vez que se instala o mal-entendido e o engano do amor, M. busca tratar o impossível da posição feminina pelo real da substância "droga".

A devastação, na parceria amorosa desse sujeito, se expressa pela vertente da erotomania. Em sua demanda de amor infinita, o que importa para M. é ser amada e, ao se submeter à vontade do Outro, ela não encontra outra saída a não ser cair como objeto-dejeto do gozo do Outro.

A clínica e a literatura nos permitem entrever por que o amor se faz tão insistente e tão importante para a mulher e por que o sentimento de perda do amor pode ser tão devastador, e, em alguns casos, produzir na mulher a sensação quase sobrenatural de se sentir perdida, errante, estranha aos próprios olhos. Uma mulher procura a analista no momento de sua separação após um longo casamento. A imagem que vem à sua mente é a de uma criança de três anos de idade, perdida, diante de um campo deserto, sem saber em qual lado pode se abrigar. "Ele se foi, e para aonde eu irei, o que eu farei?" Diante da perda do marido, é tomada por uma sensação de que poderia desaparecer a qualquer momento.

Se qualquer parceiro-sintoma da mulher pode converter-se em um parceirodevastação, podemos nos indagar se, para um homem, é possível evitar converterse em devastação para a mulher. Isso pode acontecer quando o homem rechaça a posição em que se faz de Outro para a mulher, ou seja, quando reconhece sua própria falta a ser, já que o amor pressupõe a falta; "É dar o que não se tem" (Lacan, 1960-1961, p. 41) e não se pode dar o que não se tem senão falando. O encontro com o homem e o encontro com o amor possibilitam que a mulher restaure a relação com o , minimizando os efeitos devastadores da parceria amorosa. Ao contrário da maioria dos homens, a mulher necessita de amor para gozar e, de preferência, que ele seja manifestado por palavras.

Entendendo que o sintoma é um sofrimento sempre localizado, circunscrito, e que a devastação remete a uma dor sem limites, a um estrago que se estende, quais seriam as possíveis soluções sintomáticas encontradas pelos sujeitos para lidar com a devastação no dispositivo analítico e fora dele, como foi o caso, por exemplo, de Marguerite Duras?

A literatura de Duras, que quase sempre mistura ficção e realidade, mostra como a autora encontrou seu parceiro-sinthoma na escrita, o que permitiu a ela, mesmo sem nunca ter feito análise, construir uma barragem contra o fluxo do amor materno e escrever seu lugar no mundo, ao dar um tratamento possível para o impossível de dizer sobre o feminino. Se, por um lado, a mãe de Duras era devastadora, por outro, também lhe transmitiu obstinação. Por isso, em Duras, a devastação coexiste com a capacidade de obstinar e, não só de obstinar-se em escrever, mas se obstinar em amar. A mãe é o terreno selvagem que marca a vida, o corpo e a escrita, aquela que provoca em Duras o desejo de escrever, aquela que faz escrever. Como vemos nas palavras da própria autora: "De vez em quando, escrevia para o exterior, quando esse exterior me submergia, quando aconteciam coisas que me deixavam louca, outside, na rua – ou quando não tinha nada melhor para fazer. Acontecia" (Duras, 1983, p. 7).

Se haverá algo que apontará para uma saída da devastação na experiência analítica, será a maneira como cada mulher poderá aceder a uma versão do real de sua feminilidade distinta do enredo materno, o que implica desvencilhar-se da posição de objeto-dejeto, responsabilizando-se por essa modalidade de gozo. A saída da devastação pode se dar também pela vertente do parceiro-sintoma. Nesse caso, o encontro contingencial com o amor pode vir a fixar a deriva pulsional, permitindo à mulher uma forma de localizar o ilimitado de seu gozo. Se não há encontro entre os sexos, o que pode haver entre eles é o amor como sintoma.

A tese freudiana da prevalência do falo para ambos os sexos se equivale aos axiomas lacanianos "Não há relação sexual" e "A mulher não existe", que indicam a ausência de representação no inconsciente para o feminino. De posse desses dados, é possível pensar a devastação como um fato de estrutura, advinda de um gozo não todo fálico, e que, nesse sentido, a devastação pode ocorrer contingencialmente com qualquer sujeito que se alinhe do lado Mulher.

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Texto recebido em 6 de fevereiro de 2017 e aprovado para publicação em 16 de abril de 2018.

 

 

*Mestra em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), psicóloga, psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise.E-mail: andrea.eulalio@hotmail.com.
**Pós-doutorado em Teoria Psicanalítica (UFRJ), professora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG, psicóloga, psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise.
1 A primeira data indica o ano de publicação da obra, e a segunda, a edição consultada pelo autor, a qual somente será pontuada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data de publicação original.

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