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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.26 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2020

 

DOSSIÊ

 

Resistência e criação: micropolítica das violências e subjetivação do medo no contexto da ciência e democracia

 

 

EDITORIAL

 

 

Simone Mainieri Paulon; Roberta Carvalho Romagnoli

 

 


 

Vivemos tempos difíceis, com um refinamento dos modos de dominação, muitas vezes geridos e sustentados pelo medo. As mais variadas violências não cessam de proliferar: nas relações de trabalho, precarizando empregados e jogando milhões ao desemprego ou trabalho informal; nas relações amorosas e vida pública, desqualificando as mulheres; nas ruas, agredindo populações LGBTQ+; nas escolas, desvalorizando professores e estimulando bullying; nas reservas indígenas, desconsiderando o direito à terra e promovendo genocídio e extinção de povos originários; na relação com as florestas, incentivando as queimadas e a exploração da terra; nos aglomerados urbanos, criminalizando a pobreza e condenando jovens negros ao extermínio; no cotidiano das instituições erigidas para normatizar a vida nua, fazendo-a minguar para tantos e possibilitar alternativas para tão poucos.

Esse cenário de maltrato à vida, ao mesmo tempo em que fomenta ressentimentos e polarizações, induz à urgente criação de estratégias desestabilizadoras das formas dominantes de subjetivação para propiciar novas composições e resistências. Como espécie de um "tiro que sai pela culatra", esses modos rudes, endurecidos, consumistas e odientos de viver convocam, a cada embate, estratégias de proteção e ampliação da vida, incitando as potências niilistas a buscarem seus pontos de viragem que dobrem as forças para se fazerem ativas. E nisto reside o fio condutor que nos mobiliza: como resistir às barbáries que nos assolam e liberar a força vital e coletiva para além do modoindivíduo de subjetivação? Como produzir uma Psicologia que não legitime e naturalize esses modos dominantes de depauperar o cotidiano? Como sustentar a potência dos coletivos, a legitimidade dos movimentos efêmeros, fazer fissuras aos embates biopolíticos, sem cair na tentação de apenas "re-agir" aos ataques dos circunstanciais ocupantes do poder instituído?

Essa é a disposição que transversaliza as pesquisas e disposições ético-políticas do Grupo de Trabalho "Políticas de Subjetivação, Invenção do Cotidiano" da ANPEPP. Reunido desde 2006 e contando hoje com integrantes de 11 Estados do País, que se distribuem em 14 instituições acadêmicas diversas, o GT temse constituído como um espaço de interlocução e produção conjunta voltado à criação de estratégias institucionais de enfrentamento das formas contemporâneas de controle e assujeitamento. Trata-se, assim, de um coletivo de pesquisadores que vem se constituindo como uma rede político-afetiva de produção acadêmica de um conhecimento alinhado às urgências de seu tempo.

Nessa direção, este dossiê apresenta reflexões críticas, ações provisórias e práticas micropolíticas que desestabilizam tamanha captura da vida pelas forças reativas, pelos microfascismos que nos habitam. Criar coletivamente modos de existência ativos e perseverantes que confrontem uma sociedade amedrontada, capturada pela necessidade de controle dos corpos resumidos ao circuito-escravo do consumo e capital, para inventar possibilidades fugidias, transgressoras, arteiras de lidar com a angústia das incertezas, parece ser a tarefa que se impõe aos espíritos fortes. Os textos/autoras e autores aqui reunidos não fogem a tais enfrentamentos, tomando para si um ensinamento nietzschiano que pode nos ser útil para atravessar as tormentas de um tempo: "O veneno que faz morrer a natureza frágil é um fortificante para o forte – e ele nem o chama de veneno" (Nietzsche, 2001, p. 69).

REFERÊNCIA

Nietzsche, F. W. (2001). A gaia ciência. P. C. Souza (Trad.). São Paulo: Cia. das Letras.

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