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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.26 no.2 Belo Horizonte maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2020v26n2p660-679 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2020v26n2p660-679

 

Leucemia na infância e adolescência: repercussões psicossociais nos irmãos sadios, sob a ótica das mães

 

Leukemia in childhood and adolescence: psychosocial repercussion on healthy siblings, from a mother’s perspective

 

Leucemia en la niñez y adolescencia: repercusiones psicosociales en los hermanos sanos, por la óptica de las madres

 

 

Marilise Honicky*; Iolanda de Assis Galvão**

 

 


Resumo

O processo de adoecimento, tratamento e hospitalizações após o diagnóstico de câncer infantojuvenil pode causar impacto emocional, influenciar na dinâmica e rotina de toda a família. Diante desse cenário, a pesquisa objetivou compreender as possíveis mudanças nas relações dos irmãos sadios, no contexto familiar, social e escolar, sob a ótica das mães. A amostra foi composta por 15 mães de crianças e adolescentes diagnosticadas com leucemia, com ao menos um filho sadio. Os dados foram coletados por entrevista semiestruturada e, com base na teoria da análise de conteúdo proposta por Bardin (1977), foram encontradas quatro categorias: repercussões do adoecimento, relações familiares, relações sociais, vida acadêmica. Pôde-se observar que os irmãos saudáveis vivenciam, de modo singular, o adoecimento do irmão com leucemia. Apresentaram diversas formas de reagir e de se relacionar. Na maioria, isolaram-se, aproximaramse, revoltaram-se ou demonstraram fragilidade nas trocas interpessoais, deflagrando um pedido de ajuda e atenção.

Palavras-chave: Neoplasia. Irmãos sadios. Relações. Psicologia. Leucemia.


Abstract

TThe process of illness, treatment, and hospitalizations after the diagnosis of child-adolescent cancer may cause emotional impact, as well as influence the dynamics and routine of the entire family. Given this scenario, the research aimed to comprehend the possible changes in the relationships of healthy siblings, in the family, social, and school context, under the mother's perspective. The sample consisted of 15 mothers of children and adolescents diagnosed with leukemia, with at least one healthy child. The data were collected through a semi-structured interview and, based on the theory of Content Analysis, proposed by Bardin (1977), four categories were found: repercussions of illness, family relations, social relations, and academic life. It was possible to observe that the healthy siblings experience, in a singular way, the sibling’s illness with leukemia. They presented plenty of ways of reacting and relating with each other. Mostly, they isolated themselves, approached, revolted, or demonstrated fragility in interpersonal exchanges, triggering a call for help and attention.

Keywords: Neoplasm. Healthy siblings. Relationship. Psychology. Leukemia.


Resumen

El proceso de enfermedad, tratamiento y hospitalización después del diagnóstico de cáncer en la niñez y la adolescencia puede causar impacto emocional, influir en la dinámica y en la rutina de toda la familia. Ante este escenario, la investigación tuvo como objetivo comprender los posibles cambios en las relaciones de los hermanos sanos, en el contexto familiar, social y escolar, desde la óptica de las madres. La muestra fue compuesta por 15 madres de niños y adolescentes diagnosticados con leucemia, con por lo menos un hijo sano. Los datos fueron recolectados a través de una entrevista semiestructurada y, a partir de la teoría del Análisis de Contenido propuesta por Bardin (1977), se encontraron cuatro categorías: repercusiones de la enfermad, relaciones familiares, relaciones sociales y vida escolar. Se pudo observar, que los hermanos sanos experimentan de modo singular la enfermedad del hermano con leucemia. Los hermanos presentaron diversas formas de reaccionar y de relacionarse, en su mayoría, se aislaron, se acercaron, se rebelaron o demostraron fragilidad en los intercambios interpersonales, desencadenando un pedido de ayuda y atención.

Palabras clave: Neoplasia. Hermanos sanos. Relaciones. Psicología. Leucemia.


1. INTRODUÇÃO

Segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca) (2016), o câncer foi a segunda causa de morte entre crianças e adolescentes em 2014, sendo superada apenas por óbitos por causas externas (acidentes), caracterizando-se, nessa faixa etária, como a doença que mais mata. A leucemia é a neoplasia com maior incidência nessa população, correspondendo de 25% a 35% dos cânceres infantojuvenis (Instituto Nacional do Câncer, 2016), mais frequente em menores de 15 anos (Loggetto, & Benites, 2008). De acordo com Hamerschlak (2008), o termo leucemia faz referência a um grupo de doenças que afetam a produção de glóbulos brancos. Nessa neoplasia, existe uma alteração genética adquirida nas células primitivas da medula óssea e que resulta no crescimento anormal dos glóbulos brancos, e, consequentemente, na perda de suas funções.

As leucemias podem ser diferenciadas segundo o tipo de célula envolvida e sua progressão. Seus tratamentos variam de dois a três anos, obedecendo a um protocolo específico, que pode incluir quimioterapia, radioterapia e, ou, transplante de medula óssea. Principalmente durante os seis primeiros meses de tratamento, o paciente poderá ficar hospitalizado por períodos prolongados, para realização de quimioterapia e para tratamento das complicações da doença e do próprio tratamento (Hamerschlak, 2008; Loggetto, & Benites, 2008; Wayne, & Helman, 2006).

A rotina de tratamento de câncer em uma criança ou adolescente pode alterar a vida da família, requerendo uma reorganização de seus membros em termos práticos e emocionais. No caso das leucemias, é necessário que o paciente e seu cuidador principal compareçam ao hospital, por diversas vezes, para consulta, tratamento e longos períodos de hospitalização e que, em domicílio, sejam realizados cuidados com a higiene, alimentação e restrição de visitas. De alguma forma, a família tem o desafio de se organizar em torno do tratamento.

O diagnóstico e o tratamento do câncer desencadeiam reações complexas e que diferem entre as famílias e seus membros (Nascimento apud Cavicchioli, 2005). Os irmãos saudáveis, independentemente de suas idades, também são afetados pela vivência do adoecimento e pela alteração da dinâmica familiar. Assim, percebe-se a importância da inclusão dos filhos sadios nessa nova rotina que a família está vivenciando, para que participem, de modo mais ativo, neste processo que também lhes diz respeito. Mesmo que esses irmãos se reorganizem e contribuam com a situação, eles continuam precisando de cuidados e atenção (Lima, Lopes, & Valle, 2001; Spinetta et al., 2009), que muitas vezes são realizados por outros familiares ou vizinhos (Cheron, & Pettengill, 2011; Pedrosa, & Valle, 2000).

O impacto da doença crônica e da mudança na rotina familiar pode manifestar nos irmãos saudáveis sentimentos de abandono, rejeição, ciúmes, raiva, inferioridade, isolamento, agressividade, privação, ansiedade em relação à própria saúde, sensação de exclusão das relações familiares, tristeza, medo e culpa, uma vez que o foco da atenção dos pais é o filho doente (Melo, & Vale apud Cavicchioli, 2005; Lima et al., 2001; Pedrosa, & Valle, 2000; Bezerra, & Veríssimo, 2002; Spinetta et al., 2009). Com a atenção voltada para esse filho e por considerar os irmãos que não têm câncer, saudáveis, muitas vezes, tanto a família quanto as equipes de saúde podem não perceber a necessidade de ajuda que estes demonstram para elaboração da ausência física e emocional dos pais, dos sentimentos despertados e das fantasias que possam criar (Miceli, & Zornig, 2012).

O sofrimento, combinado com a falta de atenção dos pais, pode repercutir nas relações familiares, sociais, acadêmica, na higiene pessoal, nos hábitos alimentares (Cheron, & Pettengill, 2011), no aparecimento de medos e inseguranças, bem como nos sintomas psicossomáticos e, em muitos casos, a regressão a fases anteriores do desenvolvimento (Miceli, & Zornig, 2012).

Com modificações da dinâmica familiar e de ordem emocional, requer-se adaptação dos irmãos sadios à realidade que estão vivenciando, o que implica a elaboração da própria angústia bem como a dos seus pais e irmão que adoeceu (Cheron, & Pettengill, 2011; Pedrosa & Valle, 2000). O estado emocional dos irmãos saudáveis, muitas vezes, pode ser agravado quando os pais cobram destes mais cuidados com relação ao irmão doente e maior independência quanto aos próprios cuidados (Pedroso, & Valle, 2000). Em alguns casos, vivem a ambiguidade de, por um lado, compreenderem a necessidade do irmão com neoplasia e, por outro, sentirem-se abandonados e desejarem os mesmos cuidados oferecidos.

Em linhas gerais, os irmãos saudáveis vivenciam a experiência do adoecimento de um membro da família de forma singular e, conforme declara Cavicchioli (2005), essas singularidades podem estar relacionadas à sua fase do desenvolvimento, gênero, idade da criança doente, forma de comunicação existente entre pais e irmãos sadios, apoio familiar e social, e a maneira como a família enfrenta a doença.

Tendo em vista que diversos são os aspectos que influenciam na forma como os irmãos saudáveis podem reagir à doença e hospitalização e interferir em seus vínculos, seja no contexto familiar, acadêmico ou social. Objetivou-se analisar, com base na percepção das mães, quais as possíveis mudanças ocorridas nas relações dos irmãos sadios nos contextos acima citados, uma vez que estes também podem sofrer com a nova dinâmica familiar. Sabido que o hospital onde ocorreu a pesquisa é considerado referência regional, ponderou-se a possibilidade de a presença dos irmãos sadios no ambiente hospitalar ser incomum, devido ao fator distância/deslocamento, optou-se, assim, por realizar o estudo sob a ótica das mães.

2. MÉTODO

Esta pesquisa foi realizada em um hospital de alta complexidade em oncologia, localizado na Região Sul do Brasil. O projeto foi previamente submetido à avaliação do Comitê de Ética e Pesquisa da referida instituição, tendo sido aprovada a sua realização sob o protocolo número 2350. As pesquisadoras seguiram os critérios éticos necessários, de acordo com a Resolução CNS 466/2012.

Tratou-se de um estudo transversal, qualitativo e descritivo, realizado no período de novembro de 2014 a abril de 2015, com mães de pacientes menores de 18 anos, em tratamento de algum subtipo de leucemia, no mínimo por seis meses, no departamento de pediatria do referido hospital, com ao menos um filho sadio, entendido, nesta pesquisa, como não portador de neoplasia. Foram excluídas do estudo mães biológicas e adotivas que não eram a cuidadora principal do paciente no hospital e mães que tinham filhos sadios que não residiam com a família.

As participantes do estudo foram triadas previamente, por meio do prontuário eletrônico interno do hospital (Sistema Tasy). O primeiro contato com estas ocorreu na recepção do ambulatório da pediatria, na sala de aplicação de quimioterapia ou junto aos leitos no período de internamento. As mães que concordaram em participar foram esclarecidas quanto aos objetivos da pesquisa e convidadas a assinar o termo de consentimento livre e esclarecido, após leitura conjunta deste, seguindo-se a entrevista. Ocorreu em um único encontro, no mesmo dia do convite, sempre que oportuno para as entrevistadas, ou em data agendada conforme o retorno ao hospital. As entrevistas foram gravadas e transcritas literalmente para posterior análise. Observou-se que algumas participantes mobilizaram discretas reações de ordem emocional, no entanto, sem demanda da intervenção psicológica disponível.

O instrumento de pesquisa escolhido foi a entrevista semiestruturada, com perguntas abertas, o que possibilitou maior expressão das entrevistadas e enriquecimento do resultado deste estudo. Segundo Bleger (1998), esse método possibilita uma investigação mais ampla e profunda, na qual o entrevistador tem liberdade para ampliar questões ou inserir novas.

Com base nos resultados obtidos com as entrevistas, foi realizada a análise de conteúdo do discurso das mães, segundo a teoria de Bardin (1977), entendida como uma associação de técnicas de análise das comunicações que pretende

Obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (Bardin, 1977, p. 42).

Dessa forma, buscou-se decompor os discursos, identificar as unidades de análise, para, na sequência, categorizar os fenômenos, possibilitando uma interpretação mais aprofundada.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Foram entrevistadas 15 mães, entre 24 e 50 anos, de crianças e adolescentes em tratamento de leucemia, estes com idade entre 3 e 18 anos, diagnosticados havia, no mínimo, 6 meses e, no máximo, 4 anos, sendo estes últimos com doença recidivada. Os pacientes deste estudo tinham de 1 a 5 irmãos.

Ressalta-se que algumas famílias residiam na mesma cidade da instituição em que ocorreu a pesquisa, em cidades próximas ou até a 540 km de distância. Esse dado confirmou a dificuldade da presença do irmão sadio no ambiente hospitalar, inviabilizando a pesquisa direta com este, corroborando a decisão sobre a população entrevistada. Houve ainda famílias que mudaram de cidade para facilitar o deslocamento ao hospital e a organização familiar durante o tratamento.

Após realizada a análise, foram encontradas quatro categorias e subcategorias, sendo elas:

a) repercussões do adoecimento: dinâmica familiar e reações/sentimentos;
b) relações familiares: estreitamento das relações e dificuldade de relacionamento;
c) relações sociais: estreitamento das relações e diminuição do convívio; e
d) vida acadêmica: relações e rendimento escolar.

Os dados serão apresentados conforme a faixa etária dos irmãos sadios desta pesquisa, com idades entre 4 e 21 anos. De tal modo, as fases do desenvolvimento dos irmãos sadios elencadas neste estudo compreendem:

a) primeira infância: crianças de 4 anos;
b) segunda infância: de 6 a 11 anos;
c) adolescência: de 13 a 18 anos; e
d) adulto jovem: de 20 e 21 anos.

Os nomes utilizados são fictícios, buscando garantir o anonimato dos participantes da pesquisa.

4. REPERCUSSÕES DO ADOECIMENTO

Em relação à "dinâmica familiar", Lopes e Valle (2001) apontam que o câncer poderá vir a transformar profundamente o cotidiano da família, devido a uma série de ajustamentos que deverão ocorrer para que possam enfrentar a situação. A carga emocional instaurada pelo adoecimento gradativamente será elaborada e, paralelamente, diversos aspectos práticos necessitarão de amparo, processo este que se estenderá pelo tempo e far-se-á mais árduo na etapa inicial da doença. Os autores ponderam que a tarefa-chave desse período de convivência com a doença é a manutenção de uma vida minimamente normal. Ressalta-se que o grau de ajustamento da família dependerá de sua dinâmica e estruturação anterior a doença.

Isso pôde ser observado nos discursos das mães quando descrevem um funcionamento da família antes do diagnóstico e o quanto a notícia e o início do tratamento ocasionaram mudanças na rotina, as quais precisaram ser readaptadas devido ao grande número de idas ao hospital, aos cuidados necessários destinados ao filho com leucemia, a busca por manter as atividades dos irmãos sadios e o cuidado com os mesmos.

Algumas mães relataram preferir não recordar, para evitar o contato com o sentimento de angústia e culpa, situações que ocorreram acerca dessa necessidade de readaptação da dinâmica familiar ou que focaram a atenção no filho com leucemia, permanecendo longos períodos afastadas do lar, devido às hospitalizações, e desligando-se da rotina familiar e das questões dos filhos saudáveis, sendo este último o comportamento mais evidente nesta pesquisa, observado na fala a seguir.

Eu cheguei para ele (filho saudável – 21 anos) e disse: "Olha, filho, agora você vai ter que se virar sozinho". Praticamente eu apaguei para o resto, o mundo assim ficou tudo preto e branco, e o colorido era só a Bruna (filha com leucemia – 6 anos) (Eduarda, 50 anos)

Esse aspecto vai ao encontro das conclusões da pesquisa de Cavicchioli (2005), que também aponta, em seus resultados, que as mães passam a ter mais cautela com o filho com câncer, deixando os irmãos em segundo plano.

Ressalta-se também que, muitas vezes, a criança ou adolescente com sintomas e ainda não diagnosticado pode ir ao hospital para uma primeira consulta e permanecer internado em razão de a doença estar num momento em que o quadro clínico é de risco. Nesse caso, o paciente e sua mãe podem ficar hospitalizados, sem a possibilidade de retorno ao lar a curto prazo, inviabilizando a compreensão dos irmãos; fato este que pode ocorrer durante o período de investigação diagnóstica e ao longo do tratamento.

Os irmãos que permanecem em casa, principalmente os que se encontram nas primeira e segunda infâncias, podem fantasiar acerca do adoecimento, criar sua própria versão dos acontecimentos, culparem-se, entenderem como um castigo, devido a algum comportamento, ou que foram abandonados, enquanto não tiverem suas dúvidas esclarecidas pela família. Em relação à fantasia do abandono, a mãe Olga (42 anos) relatou sua experiência com o filho sadio de 8 anos: "Ele pensou que eu tinha abandonado ele, ele com o pai dele, só ficou ele com o pai dele na casa". Miceli e Zornig (2012) apontam sobre a criação de fantasias acerca do adoecimento, e Pedrosa e Valle (2000) referem que, muitas vezes, as crianças fantasiam baseadas em partes de conversas que ouvem dos pais e por não terem total entendimento da situação atual.

O impedimento para uma melhor compreensão da doença por parte dos irmãos sadios pode estar envolvido com a dificuldade de os pais falarem sobre o assunto. Devido à sua complexidade, estigma que perpassa o câncer, gravidade do quadro clínico, falta de entendimento dos próprios pais ou até mesmo por desconsiderarem que, principalmente as crianças, possam ter capacidade de assimilar a doença e por acharem que não apresentarão nenhuma alteração de comportamento, devido às mudanças geradas pelo adoecimento. A confusão e fantasias criadas pelos irmãos podem ser potencializadas entre os que não têm oportunidade de conviver com o ambiente hospitalar.

Os irmãos do paciente, em sua maioria, não foram ao hospital durante os períodos de internamento e, segundo apontado pelas mães, o contato ocorria via telefone ou internet. Tendo em vista que os hospitais de referência em oncologia, na maior parte, localizam-se nas capitais ou em grandes centros, muitas famílias precisam deslocar-se de sua cidade de origem. Comumente ocorre apenas a mudança da mãe com o filho em tratamento, conforme identificado na pesquisa. Assim, a distância geográfica, por vezes, inviabiliza o convívio da família e as possíveis visitas ao hospital. Pode-se destacar também a questão econômica, pois muitas famílias passam por dificuldades financeiras ao longo do tratamento, haja vista que pelo menos um dos cônjuges interrompe suas atividades laborativas.

Ressalta-se ainda que muitos hospitais não permitem a entrada de crianças menores de 12 anos, restringindo o contato e a participação dos irmãos sadios menores no processo de adoecimento vivenciado pela família. O Ministério da Saúde (2007), em uma de suas cartilhas, pondera que se faz necessário considerar as demandas específicas de cada caso e que visita de crianças "pode ser um fator importante para a reabilitação da pessoa internada" (p. 13), neste cenário da criança ou adolescente, e, consequentemente, benéfico para os irmãos sadios, que sentem a falta do convívio familiar. Vale ressaltar que esse contato com a realidade hospitalar pode auxiliar numa melhor compreensão da doença do irmão e os cuidados de que ele precisa, bem como na elaboração dessa nova rotina familiar. Na impossibilidade de visitas, os recursos audiovisuais podem garantir alguma proximidade entre a família.

Lopes e Valle (2001) apontam que os irmãos sadios continuam tendo suas necessidades de filho, de atenção e cuidados enquanto estão sofrendo, reorganizando-se e contribuindo para lidar com a situação de ter um irmão com câncer. Dessa forma, torna-se fundamental que a família não fique indiferente às necessidades dos outros filhos. Para isso, diante das mudanças na rotina familiar, faz-se necessário que os demais familiares sejam essa rede de apoio.

Tal fato foi encontrado nesta pesquisa quando os irmãos saudáveis continuaram frequentando a creche, escola, universidade ou trabalho e, durante as hospitalizações, ficaram quase sempre sob os cuidados do pai e avós, e, em menor frequência, do irmão mais velho, do atual companheiro da mãe, por alguém contratado ou por vizinhos e amigos da família. Conforme relato de algumas mães, as famílias não tinham muitas opções e, em razão disso, por vezes, precisaram buscar outro cuidador ao longo do tratamento, chegando inclusive à necessidade de ter os filhos separados e assistidos por cuidadores diferentes. Grande parte das mães relatou maior unificação da família após o diagnóstico da doença, e poucas apontaram falta de apoio dos demais membros, em questões emocionais e práticas, principalmente com atenção e auxílio aos irmãos sadios.

As famílias que têm rede de apoio, principalmente a ampliada, como avós, madrinhas e tias, podem apresentar menor dificuldade para lidar com a separação mãe/irmão sadio (Stefen, & Castoldi, 2006), por estarem em companhia de pessoas de sua rede de convívio anterior, as quais têm apego e confiança. Evidencia-se a atenção que deve ser destinada pela equipe de saúde à mãe, quando percebe que esta se desorganiza ante o adoecimento e necessita do apoio da família extensa, tanto para auxiliar nos cuidados da criança/adolescente em tratamento quanto dos irmãos.

Na subcategoria "reações/sentimentos", Sidhu, Passmore e Baker (2005) encontraram, em sua pesquisa que teve por base a percepção dos pais de crianças com câncer, que os irmãos saudáveis apresentaram reações devido às mudanças na estrutura familiar, na dinâmica e rotina, e principalmente devido à separação dos membros da família. Estes expressaram pesar por estas questões culminarem em perda de segurança emocional para os irmãos. Os autores apontaram ainda que os pais discutiram sobre uma ansiedade contínua que, segundo suas percepções, tinham como base a imprevisibilidade da doença, seu prognóstico, tratamento e seus efeitos.

Tal dado foi confirmado nesta pesquisa quando, em sua maioria, os irmãos saudáveis apresentaram, segundo a percepção das mães, reações ou expressaram diferentes sentimentos e comportamentos ante o adoecimento, como tristeza, agressividade, raiva, medo, carinho e, ou, em alguns casos, assumiram postura de esquiva, havendo peculiaridades em relação à fase do desenvolvimento.

Segundo a percepção das mães sobre as crianças na primeira infância, estas ficaram tristes, chorosas devido à ausência da mãe e do irmão, com quem conviviam e brincavam. Deixaram de mostrar interesse por atividades que antes realizavam juntas, principalmente em se tratando dos casos de crianças que tinham apenas o irmão que se encontrava em tratamento. Também se manifestaram agressivas e nervosas, buscaram chamar a atenção, procurando o mesmo zelo despendido ao familiar com câncer, e relato de maior cuidado com a higiene pessoal e de objetos utilizados por este.

A segunda infância, conforme discurso das mães, foi a etapa de desenvolvimento que mais reações apresentou. As crianças ficaram tristes, assustadas, saudosas, chorosas, carentes, sofriam ao ver o irmão apresentando os efeitos colaterais do tratamento, tinham medo de que algo pudesse acontecer com ele, afastaramse, demonstraram receio, evitaram dar carinho, buscaram chamar a atenção e sentiram ciúmes dos cuidados ofertados pelos pais, apontando que as mães não gostavam mais deles. Em alguns casos, mantinham contato via telefone e aceitavam apenas falar com o irmão durante o internamento e não com a mãe. Segundo as participantes, muito embora os filhos saudáveis apresentassem as reações mencionadas acima, o desejo de proteger o irmão com leucemia muitas vezes se sobressaía. Houve casos em que se tornaram agressivos, arrogantes e buscaram expor seus direitos, conforme seu entendimento, por acharem que eram mais repreendidos e recebiam menos atenção.

Os adolescentes, em alguns casos, negaram a doença do irmão e não aceitaram seu afastamento, bem como o da mãe. Tornaram-se introspectivos, revoltados, não aprovaram a condição de ter de ficar na casa de outras pessoas durante as hospitalizações. Ficaram tristes, assustados e com medo do que poderia acontecer. Assim como já retratado na segunda infância, observaramse alguns funcionamentos que se repetiram na adolescência, entre eles os cuidados com o irmão, muitas vezes evitando atividades antes realizadas com este, ou afastando-se de casa para brincar, para que não fossem vistos pelo irmão que, naquele momento, estaria privado de algumas brincadeiras. Os adultos jovens também demonstraram tristeza e preocupação diante do adoecimento. Por vezes, mostraram-se disponíveis para auxiliar nos cuidados e tornaram-se mais próximos durante o tratamento, evitando comentários acerca de questões cotidianas e pessoais para não causar preocupação às mães.

Conforme observado, os irmãos sadios tiveram as mais diversas reações e sentimentos, conforme a faixa etária e, ao mesmo tempo, com algumas semelhanças. Pedroso e Valle (2000) ponderam que a adaptação dos irmãos sadios ao câncer e suas implicações depende de diversos fatores, podendo se relacionar ao apoio e suporte emocional e social, à comunicação dos pais, ao esclarecimento, em todas as fases do tratamento, sobre o que está ocorrendo com o irmão doente e ao repertório psíquico que tinham previamente. Sem o apoio e atenção dos pais, os irmãos sadios podem desenvolver dificuldades emocionais. As crianças mais jovens podem apresentar maiores riscos emocionais nos casos em que não compreendem o afastamento de alguns membros da casa, interpretando como rejeição e acarretando sentimentos de ansiedade e insegurança (Carr-Gregg, & White apud Sidhu, Passmore, & Baker, 2005).

Destaca-se que as reações encontradas neste estudo se mostraram mais intensas no início do tratamento, devido ao impacto e mudanças por vezes abruptos, mas que foram amenizados no decorrer dos internamentos e com maior compreensão e adaptação à doença.

5. RELAÇÕES FAMILIARES

O adoecimento e o afastamento da mãe e do irmão com leucemia, devido ao tratamento e hospitalizações, trouxeram modificações no relacionamento dos irmãos saudáveis com a família, em graus e formas variadas. Ora proporcionaram um estreitamento dos laços familiares, ora trouxeram dificuldades de relacionamento.

Ao pensar na via de aproximação dessas relações, pôde-se perceber, no relato das participantes, que os irmãos adultos jovens passaram a manter um relacionamento de maior proximidade com a família e de postura mais colaborativa. Os adolescentes, por sua vez, mostraram-se mais protetores, amorosos, comunicativos e mais próximos dos familiares. As crianças na segunda infância demonstraram uma preocupação e aproximação maior com o irmão com câncer e, segundo a participante Glória (31 anos), sua filha (7 anos) passou a cuidar do filho com leucemia (4 anos) como se fosse um bebê. "Cuida para não se machucar, dá banho, quer fazer tudo, cuida dele que nem um neném assim [. . .\. Faz ele dormir, ela acha que ele, não sei, que ele é o nenezinho dela [. . .]".

Segundo Cheron e Pettengill (2011), a convivência familiar e os pequenos atos do cotidiano tornam-se mais valorizados pelos irmãos sadios que passam períodos longe da família, em razão das hospitalizações prolongadas. Assim, modificam sua rotina para estarem mais próximos de seu irmão com câncer, quando este está em casa, evitando atividades e comportamentos exercidos anteriormente à doença, principalmente relacionados à recreação, expressando sua forma de apoio (Pedrosa, & Valle, 2000). Esta questão foi observada no discurso de Ana (44 anos): "Ele (irmão sadio – 13 anos) pergunta, [. . .] se o Tiago (irmão com leucemia – 15 anos) pode fazer, o Tiago pode ir no sol. Às vezes, quer ir num pesque-pague: 'Vamos, mãe!', 'Mas o Tiago não pode', 'Está bem, então não vamos'", evidenciando o entendimento de por que não poderia fazer o que desejava, preferindo ficar na companhia do irmão com leucemia. Revelam ainda compreensão do que estava ocorrendo com o irmão ao preocuparem-se com este, mostrando-se mais carinhosos, próximos, cuidadosos e colaborativos com as atividades de casa.

Em relação às crianças na primeira infância, estreitaram suas relações com o pai, que se tornou a figura a quem prestaram maior obediência e buscaram ter atendidas suas necessidades de alimentação, higiene, sono e afeto. Ao considerar que os filhos sadios, de alguma maneira, terão de enfrentar a doença e hospitalização do irmão e, como consequência, a distância da figura materna, caso o pai se mostre disponível, poderá realizar o papel de cuidador principal, dada a necessidade de uma figura de amparo, conforme pôde ser percebido no relato da participante Joana (26 anos).

Ele (irmão sadio – 4 anos) obedece mais ao pai dele do que eu. [. . .] Eu ficava dois meses sem ver ele, então eu ia pra casa [. . .]. Então, tudo, tudo para ele é o pai dele. Hoje ele já pede alguma coisa, mas, no começo, quando eu comecei a ficar mais em casa, era mamá, pai faz mamá, papai troca, papai dá mamá, papai é banho. Ele não me pedia mais nada, tudo era o pai.

Para alguns irmãos sadios, o adoecimento trouxe "dificuldades no relacionamento", evidenciadas pelas crianças da primeira infância, com o aparecimento de uma postura mais agressiva e comportamento de esquiva ante os carinhos dos genitores, acrescido de rebeldia, muitas vezes mais voltada para as mães, segundo suas percepções, como forma de chamar a atenção. O mesmo ocorreu com as crianças da segunda infância que, além disso, tornaram-se mais distantes, brigaram mais com o irmão doente, revoltaram-se com os pais em razão de cobranças por mais autocuidados e por serem mais repreendidos que seus irmãos com leucemia. Essa revolta era escancarada quando declaravam que suas mães não gostavam deles. Os adolescentes também buscaram mais atenção ante a situação vivenciada pela família.

Os que passaram a ter conflitos familiares ou se afastaram podem tê-lo feito por não compreenderem o que estava realmente ocorrendo, por imaginarem que não eram mais amados pelos pais ou pleitearem um tratamento igualitário. Arruda-Colli, Lima, Perina e Santos (2016) também revelam, em sua pesquisa, a dificuldade dos pais em dividir sua atenção, corroborando que o foco se volta para os cuidados do filho doente. O que pode ocorrer por enfatizarem a importância dos cuidados em relação às necessidades físicas, não percebendo o benefício dos cuidados em relação aos aspectos afetivos e emocionais, que se acentuam durante a experiência do adoecimento.

Sidhu et al. (2005) relataram que os pais, em sua pesquisa, declararam que se torna difícil os irmãos sadios acreditarem que os pais os amam da mesma forma, tendo em vista que não estão lhes dando a atenção necessária nem os estão acompanhando em casa durante os internamentos. Miceli e Zornig (2012) ponderam que os pais tornam-se menos acessíveis e cautelosos com as necessidades dos outros filhos, a preocupação com as dificuldades, inquietações e problemas físicos e emocionais são vistos como pequenos ante a angústia que vivem com a doença e devido às mudanças ocasionadas na dinâmica familiar e na vida desses pais.

6. RELAÇÕES SOCIAIS

Na categoria "relações sociais", foi percebido que alguns irmãos sadios passaram a exibir dificuldades sociais. Esse dado corrobora a pesquisa de Labay e Walco (2004), que entrevistaram 29 irmãos sadios e 14 crianças diagnosticadas com leucemia linfoblástica aguda, leucemia mieloide aguda ou linfoma não Hodgkin.

Entre as crianças na primeira infância, uma mãe relatou que o filho não podia ser contrariado pelas pessoas de seu convívio social, pois ficava nervoso. Na segunda infância, as crianças passaram a chamar a atenção quando em contato com pessoas de fora da família, a responderem e gritarem, serem agressivos ou mais comunicativos. Dessa forma, mais acessíveis e expansivos, podem ampliar sua rede de amigos e, consequentemente, de apoio social.

Uma mãe ressaltou que seus filhos sempre falavam sobre a doença do irmão a seus conhecidos, como uma forma de dividir suas angústias e sofrimentos, preferindo compartilhar com amigos do que com sua família, para não lhes trazer outras preocupações além das já existentes. Pedrosa e Valle (2000) também apontam que muitos retraem suas necessidades e não verbalizam suas angústias e necessidades por não quererem preocupar os pais, os quais sentem estar abalados com a doença do irmão. Por outro lado, há aqueles que poderão preferir não falar com seus amigos e conhecidos sobre a doença por não gostarem ou não quererem rememorar a situação pela qual estão passando bem como o sofrimento do paciente e de sua família.

A participante Luana (33 anos) relatou que seu filho, na segunda infância, passou a relacionar-se e brincar com um amigo imaginário:

O Vinícius (irmão sadio – 8 anos) é muito imaginário. É uma criança que ele passou a brincar mais sozinha. Então a gente sempre brinca em casa, que o Vinícius tem um fantasminha, que ele vive brigando com esse fantasminha, [. . .] mas na imaginação dele. Eu acho que esse é o meio de descarrego dele, entendeu, na situação que a gente está vivendo hoje [. . .].

Conforme o caso relatado, os irmãos sadios podem se sentir incompreendidos pelos outros e buscarem o isolamento ou outras formas de relacionamento para enfrentar esse momento, tendo em vista que as mães entrevistadas diziam-se mais permissivas com os filhos que adoeceram, passaram a exigir mais obrigações dos outros filhos e deixaram de levar os adolescentes às suas atividades, alegando falta de tempo ou condições. Estes reivindicaram por serem mais cobrados ou por estarem privados de realizarem algumas de suas atividades, antes rotineiras, com seus amigos.

Houtzager et al. (2004) apontam que, por serem cobradas mais responsabilidades dos irmãos sadios mais velhos, pode ser preciso apoiá-los e viabilizar que estes participem de atividades de lazer sem que se sintam culpados, ao mesmo tempo em que estão envolvidos com o adoecimento. Devido à imprevisibilidade do tratamento, pode ser difícil para os pais planejarem e viabilizarem esses encontros bem como outras atividades de lazer, questão também apontada na pesquisa de Sidhu et al. (2005), que complementa que essa perda de controle, de poder planejar e cumprir, muitas vezes, torna-se especialmente difícil e angustiante para os irmãos sadios.

Em contrapartida, segundo as mães, os adultos jovens optaram por restringir seus momentos de convívio com os amigos e preferiram ficar mais tempo em casa com a família e o irmão doente, para auxiliar nos cuidados.

Importante ressaltar que as crianças, adolescentes e adultos jovens tiveram reações diferenciadas ante os grupos com os quais se relacionavam. Não necessariamente passaram a apresentar alterações após o início do tratamento e diagnóstico do irmão com câncer para com todos os grupos sociais de convívio.

7. VIDA ACADÊMICA

A categoria "vida acadêmica" foi subdivida em "relações" e "rendimento escolar". As relações dos irmãos saudáveis mantidas com os colegas e professores tornaram-se mais agressivas entre as crianças na primeira infância, após o início do tratamento do irmão com leucemia. Sobre essa questão Marta (23 anos) relatou sobre seu filho sadio de 4 anos: "Fica batendo, chutando o brinquedo. Até por maldade, ele escondia chupeta e coisas dos amiguinhos. Eu acho que alguma forma de descarregar essa pressão. Então ele foi se acalmando".

Entre as crianças na segunda infância, foi relatado pelas mães tristeza diante dos colegas, dificuldade de interagir. Elas buscavam ficar isoladas, e um irmão sadio fugia para não ir ao reforço escolar. Na escola, o comportamento de um adolescente foi descrito por sua mãe como de rebeldia após um episódio de discussão com a diretora. Essas ações podem ser entendidas como uma forma de reivindicar ajuda, atenção e compreensão.

Alguns irmãos sadios sugerem, pelo funcionamento, ausência de recursos de enfrentamento diante da situação vivenciada, demonstrando dificuldade em administrar seus sentimentos, mantendo-se introspectivos e reagindo, de forma agressiva, com colegas e professores. Sidhu et al. (2005) ratificaram que estes são incapazes de compartilhar sentimentos com seus pares na escola. A agressividade pode ainda ser usada para manterem-se em evidência e buscar os cuidados no ambiente escolar que, durante o tratamento, podem não receber da família. Pode-se supor que prefiram o isolamento por não se sentirem iguais ao grupo, pela sensação de não pertencimento, tendo em vista que, a maioria de seus colegas, devido à baixa idade, provavelmente não tenha vivenciado uma situação de tanto sofrimento e incertezas, sentindo-se incompreendidos ante as angústias que eles e suas famílias têm enfrentado.

Houve casos em que os irmãos sadios das primeira e segunda infâncias e adolescência não queriam ir à escola e simularam sintomas físicos para conseguirem concretizar seu desejo de faltar ou sair antes do término das aulas. Esses sintomas foram citados pelas entrevistadas como um pretexto. Esse comportamento demonstrou que houve situações em que preferiram estar ao lado da família do que no convívio de outras pessoas e receberem o mesmo cuidado dispensado ao irmão com leucemia, ao menos naquele momento em que se diziam doentes.

Acerca do "rendimento escolar", pode-se apontar que praticamente se equiparou a quantidade de crianças, adolescentes e adultos jovens que apresentaram dificuldade escolar e os que não apresentaram nenhuma alteração nesse quesito, ao longo do afastamento da mãe e irmão doente.

As mães que perceberam alguma alteração e as relacionaram com o momento vivenciado pela família relataram que os filhos tiveram sua capacidade de concentração alterada, perderam o interesse pelas atividades escolares, faziam a tarefa de casa apenas quando cobrados, choravam quando não sabiam fazer a atividade proposta, diminuíram seus rendimentos acadêmicos. Duas crianças, na segunda infância, reprovaram. Todas essas dificuldades foram relatadas em crianças na primeira infância e em adultos jovens cursando a universidade, e foram diminuindo, em sua maioria, conforme a continuidade do tratamento.

Cheron e Pettengill (2011) referem que o sofrimento que os irmãos saudáveis passam, combinado com a falta de atenção dos pais, pode repercutir na escola, com dificuldade de concentração. A preocupação com a doença do irmão e a imprevisibilidade do tratamento pode estar associada a essa questão e, de forma direta, vir a repercutir no rendimento escolar, conforme reitera Labay e Walco (2004).

Salienta-se que foram expostos nos resultados os dados que apresentaram alguma modificação quando comparados ao período anterior ao diagnóstico e tratamento, tendo como base a percepção das mães, manifestadas em seus discursos. Dessa forma, houve crianças, adolescentes e adultos jovens que não apresentaram alterações em todas as relações estudadas ou em nenhuma, conforme foi percebido na fala das participantes da pesquisa.

Muitas mães relataram diversas questões acerca de sua percepção do filho com leucemia durante a entrevista. Uma mãe, inclusive, ressaltou que preferia falar sobre sua filha que estava em tratamento: "Eu gosto muito de falar da Sofia (filha com leucemia – 10 anos)" (Nádia, 45 anos – filhos sadios, 14 anos, 18 anos e 20 anos). Essa questão revela que um contingente de mães oferece maior atenção ao filho em tratamento, restando aos filhos sadios a necessidade de elaboração dessa nova fase, por vezes angustiante, com os próprios recursos psíquicos ou com o auxílio de pessoas que não pertencem à sua família nuclear. Por outro lado, algumas mães, em seu discurso, não conseguiram relatar com detalhes alguns aspectos questionados durante a pesquisa e apontaram que o tempo que estavam com os filhos sadios não lhes parecia suficiente para tanto, restando novamente evidenciado o destino de maior atenção ao filho doente.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O diagnóstico de câncer pode causar um impacto emocional em todos os membros da família, intensificando-se quando se trata de crianças ou adolescentes que ainda são emocionalmente dependentes dos pais, estão em desenvolvimento e desenvolvendo seus recursos de enfrentamento. Os familiares vivenciam esse novo percurso em conformidade com seu repertório psíquico, compreensão acerca da doença, rede de apoio, participação no processo e adaptação à nova dinâmica. Nesse contexto, os irmãos sadios, avaliados sob a ótica das mães neste estudo, quanto às vivências estabelecidas em várias esferas, durante o tratamento do irmão, denunciaram diferentes possibilidades de reagir à situação com formas diversificadas de se relacionar.

Muitas reações, sentimentos e emoções foram mobilizados nos irmãos sem doença oncológica, a partir das novas rotinas impostas em razão do afastamento da mãe e irmão em tratamento. Alguns demonstraram maior fragilidade em viver esse processo de mudança, o que gerou sentimento de revolta, culminando num comportamento atípico. Outros, por sua vez, demonstraram maior proximidade, ao passo que alguns buscaram o isolamento e a introspecção como um possível caminho para elaboração, observando-se que, em todas essas formas diferentes de se relacionar adotadas desde a nova dinâmica familiar estabelecida, estava inerente um pedido de ajuda, de atenção e cuidado. Vale salientar que cada um reage de forma singular, de acordo com suas características individuais, e é dessa forma que precisará ser ouvido por sua família e equipe.

Em muitas instituições, os irmãos sadios ainda não são inclusos e assistidos ao longo do tratamento. Não há uma preocupação específica com o momento que estão vivenciando e de que forma essa experiência está ocorrendo. Pelo que se depreende deste estudo, necessário se faz que as instituições hospitalares, respeitadas suas rotinas e dinâmicas de funcionamento, desenvolvam estratégias de acolhimento e orientação que visem a contemplar também os irmãos sadios, no sentido de auxiliar os pais a informar a situação diagnóstica, bem como estimativa de tempo e terapêuticas a serem aplicadas no seguimento de um protocolo específico.

E, sob um mesmo raciocínio, sempre que possível, viabilizar visitas dos irmãos sadios ao hospital, para que estes possam também compartilhar esse momento com sua família e estreitar um vínculo com a equipe multiprofissional, observadas as demandas apresentadas. Evidencia-se a valia de que os serviços com projetos e ações de apoio ao público dos irmãos sadios divulgue-os, disseminando a experiência para auxiliar e estimular outras instituições a criarem estratégias, de acordo com suas realidades e demandas.

Pensando na amplitude do tema, torna-se imperativo o avanço das pesquisas no que concerne aos irmãos sadios, suas relações e demais aspectos relacionados, principalmente por se tratar de uma população que apresenta necessidades das mais variadas ordens, quando se defronta com uma doença grave que acomete um de seus irmãos. Tendo em vista, os resultados encontrados neste estudo, que teve todo o seu curso sob a ótica das mães, aponta-se que, no futuro, seria de grande relevância desenvolver estudo semelhante sob a ótica dos irmãos saudáveis, viabilizando uma análise comparativa. Tal investigação certamente possibilitará aos profissionais maior conhecimento acerca das peculiaridades e necessidades que surgem por parte dos irmãos do paciente e, dessa forma, fornecer ou indicar algum meio de intervenção, garantindo um tratamento dentro de um princípio holístico e humanizado.

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Texto recebido em 8 de fevereiro de 2017 e aprovado para publicação em 3 de julho de 2018.

 

 

*Psicóloga residente do Hospital Erasto Gaertner, Curitiba, no Programa de Residência Multiprofissional em Cancerologia. Endereço: Rua Dr. Ovande do Amaral, 201 – Jardim das Américas, Curitiba-PR, Brasil. CEP: 81520-060.E-mail: mariliseh@yahoo.com.br.
**Psicóloga clínica e hospitalar, supervisora do Serviço e Preceptora da Residência Multiprofissional em Cancerologia do Hospital Erasto Gaertner, de Curitiba-PR. Endereço: Rua Dr. Ovande do Amaral, 201 – Jardim das Américas, Curitiba-PR, Brasil. CEP: 81520-060.E-mail: iolgalmeister@gmail.com.

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