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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.27 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2021

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p21-38 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p21-38

 

"Trago junto comigo": consequências da violência sexual

 

"I bring it with me": consequences of sexual violence

 

"Lo llevo conmigo": consecuencias de la violencia sexual

 

 

Vanessa Fontana da Costa*; Samara Silva dos Santos**

 

 


Resumo

Este artigo, realizado por meio de um estudo de caso explanatório, teve como objetivo compreender as consequências da violência sexual. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com duas mulheres, sendo uma que vivenciou violência sexual e outra que atua como profissional nos atendimentos a esta questão. Os dados foram analisados qualitativamente, por meio da técnica de análise de conteúdo temática, resultando em duas categorias nomeadas de: "A violência refletida: as consequências da VS" e "Redes de apoio: a busca por suporte e o acolhimento a quem sofreu VS". Os impactos da violência sexual são globais na vida de quem sofre este tipo de violência, atingindo todos os contextos, de forma direta ou indireta. Faz-se necessária a discussão sobre a violência sexual, de modo livre, sem tabus, incentivando a problematização das questões de gênero envolvidas.

Palavras-chave: Violência sexual. Consequências. Gênero.


Abstract

The aim of this article is to understand the consequences of sexual violence, and, for this purpose, an explanatory case study was undertaken. The data were collected from semi-structured interviews with women involved in this issue and were investigated according to the content analysis method, resulting in three categories: "Thinking about violence: consequences of sexual violence on victim's behavior"; "Social support networks: a search for support and an embrace of those who suffered sexual violence" and "Global impact of sexual violence". Finally, one can observe that sexual violence has serious effects on those who have suffered it, affecting all aspects of life, directly or indirectly. The effects and the occurrences of this kind of violence are influenced by social gender issues.

Keywords: Sexual violence. Consequences. Gender.


Resumen

Este artículo fue realizado por medio de un estudio de caso explicativo y tuvo como objetivo comprender las consecuencias de la violencia sexual. Fueron realizadas entrevistas semi estructuradas con dos mujeres, siendo una de ellas víctima de violencia sexual y la otra una profesional que actúa en la atención a estos casos. Los datos fueron analizados cualitativamente por medio de la técnica de análisis de contenido temática, resultando en dos categorías nombradas: "La violencia reflejada: las consecuencias de VS" y "Redes de apoyo: la búsqueda por atención y la acogida a quién sufrió VS". Los impactos de la violencia sexual son globales en la vida de quién la sufre, afectándola en todos los contextos, de modos directos o indirectos. Es necesaria la discusión sobre la violencia sexual de modo libre, sin tabúes, incentivando la discusión de las cuestiones de género relacionadas.

Palabras clave: Violencia sexual. Consecuencias. Género.


1. INTRODUÇÃO

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência é considerada hoje uma questão de saúde pública, devido à sua alta incidência e à gravidade de suas consequências. Enquanto a violência passa a ser considerada como um fenômeno pertinente ao campo da saúde pública, seu enfrentamento exige ações interdisciplinares. Exige, inclusive, investimento em pesquisas que possam capacitar profissionais, auxiliar vítimas e focar na promoção e prevenção, por exemplo, de modo que atinjam não somente as pessoas envolvidas de forma direta, mas a população como um todo. Compreender a violência no campo da saúde pública também possibilita considerá-la um produto da sociedade na qual está inserida, ressaltando a importância de situá-la na realidade social, política, cultural e histórica em que ocorre (Coelho, Silva, & Lindner, 2014; Dahlberg, & Krug, 2007; Krug, Dahlberg, Mercy, Zwi, & Lozano, 2002).

A violência sexual (VS) é uma das expressões da violência, caracterizada como violência interpessoal (Dahlberg, & Krug, 2007). A VS é definida pela OMS como todo e qualquer ato sexual ou tentativa de ato sexual que ocorra de forma indesejada, assim como comentários e investidas voltados à sexualidade de alguém, por meio de coação. Tais ações podem ser praticadas por qualquer pessoa, independentemente da relação desta com quem foi acometido, acometida ou do contexto em que se encontram. A definição da OMS é feita a fim de englobar, de modo mais abrangente, diferentes contextos sociais, porém é importante destacar a influência cultural e social nas ocorrências e na alta incidência de violência sexual (Krug et al., 2002).

De acordo com o Sistema de Informações de Agravos de Notificações Sinan), as mulheres são as maiores vítimas de VS no Brasil. Em 2014, 88% das vítimas foram do sexo feminino. Os números apresentados pelo Sinam revelam que é impossível discorrer sobre tal fenômeno sem que se discutam as questões de gênero envolvidas, visto que tal diferença ocorre justamente pelas relações de gênero atribuídas ao masculino e ao feminino, colocando o homem em posição de poder em relação à figura feminina; esta, por sua vez, vista como frágil e vulnerável (Connell, & Pearse, 2015; Ministério da Saúde, 2014).

O Sinan também aponta um crescimento no número de registros de casos de VS, contudo, apesar desse aumento, estima-se que a real dimensão da ocorrência de VS seja maior. Para Cerqueira e Coelho (2014), apenas 10% dos casos chegam a público, seja por meio de denúncias à polícia ou por atendimentos de saúde, estimando, assim, que a ocorrência real desse tipo de violência chegue a 527 mil pessoas, no mínimo. A subnotificação pode decorrer dos impactos físicos e psicológicos gerados para quem passa por essa situação, pelas percepções sociais sobre esse tipo de violência ou pela falta de estrutura nos serviços de atendimento às pessoas que vivenciaram tais violências.

No que tange ao impacto da VS na vida de quem sofre a violência, as consequências podem ser das mais variadas, ocorrendo de forma imediata ou em longo prazo. Quando perpetrada, pode interferir no processo de desenvolvimento da pessoa permanentemente, atingindo aspectos relacionados à formação identitária e à construção de relações afetivas, por exemplo (Cerqueira, & Coelho, 2014; Coelho, Silva, & Lindner, 2014; Ministério da Saúde, 2014; Waiselfisz, 2015).

A ocorrência ou intensidade das consequências de uma VS dependem de diversos fatores, desde subjetivos até o modo como essa violência foi perpetrada. Por exemplo, há alta incidência de violência física e até mesmo óbitos relacionados à ocorrência de VS, porém não necessariamente a VS é executada mediante violência e lesões físicas. Entre as principais consequências, estão as relacionadas à saúde reprodutiva, mental e bem-estar social (Krug et al., 2002). Assim, este artigo parte da seguinte questão: como a experiência de VS pode impactar a vida de quem as vivenciou.

2. MÉTODO

Esta pesquisa, caracterizada como qualitativa, consiste em um estudo de caso (Yin, 2010) explanatório focado em um fenômeno que, neste caso, são as consequências da VS. O método foi escolhido por ser amplamente utilizado em pesquisas sociais que objetivam perceber, de forma profunda, o fenômeno estudado. É enriquecedor ao estudo que este seja feito utilizando-se de múltiplas fontes de evidências, pois assim é possível percebê-lo sob diferentes aspectos, identificando suas convergências e divergências, já que os dados serão contextualizados em torno das unidades de análise (Freitas, & Jabbour, 2011; Minayo, 2014; Yin, 2010).

Assim, participaram desta pesquisa duas mulheres envolvidas, de diferentes modos, com a questão da VS. Uma mulher, que atualmente realiza pós-graduação em sua área de atuação, 30 anos, e que sofreu VS, chamada "participante 1"; e uma profissional de Psicologia que atua há dois anos em uma equipe multidisciplinar, voltada para o atendimento às vítimas de VS, um serviço que funciona de forma integrada a um hospital universitário de referência no interior do Estado do Rio Grande do Sul, a qual foi chamada, neste artigo, "participante 2". A participante 1, aos 24 anos de idade, quando cursava graduação e estava em mobilidade acadêmica, passou por uma situação de VS perpetrada por um indivíduo na mesma faixa etária e que pertencia a seu círculo social da época. Com ambas as participantes, foi realizada uma entrevista semiestruturada em local e período definidos por elas.

O contato realizado com a primeira participante foi por meio das redes sociais, quando ela se disponibilizou a falar sobre a experiência que vivenciou anos atrás. Após a realização da entrevista e uma análise inicial dos dados obtidos, a entrevista com a profissional foi construída, objetivando um aprofundamento das questões trazidas inicialmente. Cabe ressaltar que a utilização da análise prévia dos dados para guiar a segunda entrevista visa a um aprofundamento do fenômeno estudado, usando, assim, uma triangulação dos dados obtidos, contextualizando-os acerca dos objetivos da pesquisa (Yin, 2010).

A análise dos dados foi realizada por meio da análise de conteúdo, trabalhando assim com o conteúdo das falas do sujeito de forma que se possam analisar as entrelinhas, ou melhor, o que é trazido por aquele sujeito além das palavras em seus significados literais. A execução dessa análise foi dividida em três etapas. Primeiramente, a execução da pré-análise, que consistiu na seleção do material a ser estudado, seguido da leitura flutuante deste, possibilitando, assim, o contato da pesquisadora com todos os dados coletados, fazendo-a ter noção do material como um todo, deixando impregnar-se pelas hipóteses iniciais e pelas hipóteses viáveis aos dados ali expostos (Minayo, 2014; Yin, 2010).

A segunda etapa foi a exploração do material e teve por objetivo a categorização do material a ser analisado, sendo este dividido em duas categorias, denominadas "A violência refletida: as consequências da VS" e "Redes de apoio: a busca por suporte e o acolhimento a quem sofreu VS". Em seguida, foi realizado o tratamento dos resultados obtidos ou interpretação. Nessa etapa, foram executadas a interpretação e a análise dos resultados. Depois de separados categoricamente, a pesquisadora inferiu sobre os significados de tais dados e o que eles representam para a pesquisa e para além dela, como novas informações não previstas no decorrer da investigação (Minayo, 2014). Utilizou-se das contribuições de Connell e Pearse (2015) para compreender as falas das participantes e seus significados ante o problema de pesquisa.

Durante todo esse processo, foram respeitados os preceitos éticos de pesquisa com seres humanos definidos pelo Conselho Nacional de Saúde (Ministério da Saúde, 2016) bem como o Código de Ética Profissional do Psicólogo (Conselho Federal de Psicologia, 2005). Para isso, o projeto tramitou pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), aprovado sob o protocolo CAAE nº 70574917.7.0000.5346. As entrevistas foram gravadas, mediante autorização, e o arquivo de áudio apagado após a transcrição, assegurando o anonimato das participantes. O artigo foi encaminhado para que as participantes lessem o que foi produzido, tendo a possibilidade de sugerirem omissões e, ou, alterações. Ambas as participantes aprovaram a versão final deste artigo bem como sua publicação.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES

Os dados coletados representam a perspectiva de uma profissional de Psicologia que atua em um serviço público de saúde, e de uma mulher que passou por uma situação de VS, sobre as consequências de tal violência. Percebe-se a influência de diversas variáveis na forma como as consequências da VS aparecem. Entre elas, estão a natureza do ato, o acesso à informação, o tempo que passou desde a situação de VS e as questões de gênero. Sendo que, esta última variável influencia não apenas nas consequências da VS, mas em como quem sofreu VS e a sociedade, de forma geral, percebem essa violência, podendo influenciar também na ocorrência desse tipo de violência, fazendo com que esta esteja inclusa na categoria de violência de gênero.

Assim, torna-se importante, ao discutir-se sobre violências na sociedade, incluir as questões de gênero, considerando os sujeitos envolvidos em seus contextos sócio-históricos. Esse contexto que está impregnado com as questões de gênero, influenciando tanto nas construções identitárias quanto nas relações interpessoais estabelecidas. Para Connell e Pearse (2015), as relações de gênero ocorrem em quatro dimensões: poder, produção, catexia e simbolismo. Tais dimensões, tidas como ferramentas de análise mutáveis e fluidas, têm subestruturas distintas das relações de gênero, porém não são separadas, pois se entrelaçam e se condicionam mutuamente.

Quando se remetem às questões de poder, Connell e Pearse (2015) deixam claro que esta não consiste em uma estrutura única e autoritária, mas em relações e estruturas que têm diferentes níveis, operando fluida e difusamente. Como dimensão de gênero, o poder está relacionado às perspectivas sociais que colocam o homem como forte, corajoso, dominante, principalmente em relação à mulher, tida então como passiva e fraca, por exemplo. Papéis que acabam por aumentar a exposição dos homens aos mais variados tipos de violência, uma vez que tal contexto reforça os conceitos atrelados a esse gênero. Quando a violência em questão é de gênero, a alta incidência recai nas mulheres como alvos (Connell, & Pearse, 2015; Foucault, 1987).

A dimensão da produção pode ser vista como a divisão sexual do trabalho, incluindo desde os postos de trabalho condicionados aos conceitos de feminino e masculino até a própria visão do trabalho. O trabalho propriamente dito é visto como uma ação de produção e remuneração e, portanto, difere dos trabalhos domésticos, tidos como tarefas obrigatórias e de cuidado. Historicamente, o trabalho remunerado aparece associado ao masculino, e o trabalho doméstico, ao feminino, mesmo que não corresponda à realidade atual dos postos de trabalho. Já a catexia refere-se às relações emocionais que formamos, fundamentais para a constituição subjetiva do sujeito e suas relações sociais. As relações emocionais podem ser tanto positivas quanto negativas, e dependem diretamente dos vínculos e correlações formadas culturalmente, que passam pelos "modelos" de gênero da sociedade e por suas rupturas (Connell, & Pearse, 2015).

Por fim, a dimensão simbólica permeia todos os âmbitos da vida. Se o ser humano se forma por meio do discurso, este é constituído mediante seus significados e simbolismos. Quando se fala de "homem" e "mulher", por exemplo, para além de seus significados literais, existe uma série de conceitos e estruturas sociais criadas para diferenciar e associar tais conceitos binários. O simbolismo também ultrapassa a palavra e pode ser visto nos padrões de comportamento, de produção, de autopercepção e percepção com o outro, etc. "A sociedade é um mundo de significados. Ao mesmo tempo, significados carregam os traços dos processos sociais por meio dos quais foram produzidos. Sistemas culturais refletem interesses sociais particulares e partem de modos de vida específicos" (Connell, & Pearse, 2015, p. 172).

4. A VIOLÊNCIA REFLETIDA: AS CONSEQUÊNCIAS DA VS

É justamente nesses simbolismos, mencionados no tópico anterior, que se encontram padrões de comportamento e discursos que precisam ser aprofundados e problematizados, quebrando, assim, estereótipos de gênero (Connell, & Pearse, 2015). O entrelaçamento dessas dimensões fica claro a partir do relato da participante 1, que sofreu VS, sobre a forma como passou a identificar padrões de comportamento e categorizar as pessoas:

Não vou mais me relacionar com "esses caras", porque, pra mim, isso é o mínimo, porque nem todos aqueles caras que são mais das [indicação de determinada área de conhecimento] [. . .] Eles são todos dessa forma, e a gente vai estratificando as pessoas, e eu acho que a violência faz com que a gente acabe generalizando o comportamento e que, às vezes, isso não é real, né? Não sei... É muito complicado... Agente acaba, às vezes, por conta de uma violência, reproduzindo um comportamento que é deles... De generalizar... Até o comportamento feminino, de dizer que, por conta de uma saia, você se comporta de uma forma, eu, por conta de uma fivela, acabei olhando e dizendo "Não, você é esse tipo de pessoa, que eu não quero me envolver" (sic) (participante 1).

A estratificação feita pela participante 1 aparece como uma reação de defesa ante a violência que ela sofreu, porém ela mesma identifica os conceitos de poder e catexia, atrelados ao simbolismo trazido. A participante identificou que esse processo de estratificação ou categorização das pessoas é uma forma de lidar com VS, por meio do reconhecimento de um objeto que remeta à experiência vivida e que faz com que se afaste como uma forma de proteção, ou seja, pela "saia" utilizada muitas vezes para julgar o comportamento feminino.

O afastamento dela de certos padrões de comportamento masculinos pode ser entendido como uma ação de autopreservação, feito racional ou irracionalmente. Porém, apesar de representar uma defesa, pode também trazer impactos negativos (Connell, & Pearse, 2015; Oliveira, Assis, Njaine, & Oliveira, 2011). Quando questionada sobre qual a maior consequência após ter sofrido o ato de violência, a participante mencionou:

Confiança. Eu acho que confiança. E confiança na figura masculina. De uma forma geral. Eu tive a tendência de colocar meio que todo mundo em uma mesma caixinha. [. . .] E nisso eu comecei a me esquivar de relações mais profundas. [. . .] Engraçado, como se conscientemente eu não sabia que aquilo era uma violência, mas de forma inconsciente, o meu corpo retraiu. Aqui eu não tive relacionamentos (sic) (participante 1).

Perder a confiança e, ou, a sensação de segurança é uma reação comum a quem sofre qualquer tipo de violência. Principalmente quando esta é cometida por alguém próximo e de confiança ou até mesmo em um ambiente no qual a pessoa se sentia segura e protegida, como é o caso da participante 1. Isso ocorre devido à percepção de vulnerabilidade e exposição constante ao que lhe foi aversivo, que pode estar relacionado ao próprio ambiente, a um objeto, pessoa ou até mesmo a um padrão de comportamento/fala. Toda essa dinâmica pode influenciar a perspectiva da pessoa que sofreu VS sobre suas relações afetivo-amorosas, escolha de parceiros, parceiras, etc. (Connell, & Pearse, 2015; Florentino, 2015; Gomes, 2011). Dinâmica semelhante pode ser identificada no relato da participante 1, que sofreu VS:

Era algo que tava totalmente ditando a forma como eu vivia os outros relacionamentos sem que eu percebesse. Porque era inconsciente, não era de forma consciente. [. . .] Essa violência me fez, hã... lidar com os relacionamentos de uma forma muito mais... dura... Muito mais fechada... E isso tá sendo... superado, agora assim... Ainda não é algo superado... Não é, porque... É como se eu não pudesse confiar em certas pessoas, porque você nunca sabe quem é... Você nunca sabe... [. . .] Porque aí eu me fechei, só que daítambém eu me privei de inúmeras possibilidades com os relacionamentos, por conta de uma violência (sic) (participante 1).

A fala da participante 1 traz justamente a dualidade entre um instinto de proteção, que faz com que ela se preserve e se afaste daquilo que foi associado como aversivo, mas que também define e limita novas experiências, que poderiam ser muito positivas de modo geral. Ao retornar Connell e Pearse (2015), pode-se perceber a aproximação entre a simbologia e a catexia, sendo a primeira feita pela participante por meio de percepções sociais de comportamentos e estereótipos, culturalmente estabelecidos, com o perpetrador da VS e, consequentemente, o sentimento negativo de aversão ao símbolo associado.

O reflexo da VS pode tornar-se visível por meio das relações afetivo-sexuais, ou seja, pelo modo como a pessoa que a sofreu se relaciona e, ou, percebe suas relações. As consequências, portanto, podem ser uma reação ante o ocorrido e se manifestar como uma hipersexualização, como uma atitude de banalização dos relacionamentos de forma geral, ou como uma barreira para novos relacionamentos. De qualquer forma, na descrição do impacto que essa experiência de violência acarreta, é recorrente a identificação de efeitos na vida afetivo-sexual, seja pelos bloqueios gerados, seja pelos riscos de reincidência. O impacto também pode ser mensurado por meio das taxas de incidência de atos de violência, como resposta à violência sofrida (Florentino, 2015; Njaine, Oliveira, Ribeiro, Minayo, & Bodstein, 2011; Oliveira et al., 2011).

De acordo com Oliveira et al. (2011), o uso da violência como forma de enfrentar outros atos de violência é comum entre pares, seja por meio da violência verbal, física, sexual, tornando tais atitudes corriqueiras e até mesmo naturais, se não forem percebidas como um reflexo negativo de violências sofridas e esse ciclo de reprodução não for interrompido. Fato percebido pela participante da pesquisa: "Isso é terrível. Socialmente, você acaba reproduzindo comportamento.Lógico que não na mesma intensidade que a pessoa que te violentou, porque você não vai... hã... realizar a mesma violência que ele, mas você acaba reproduzindo outras violências" (sic) (participante 1).

A referida violência observada pela participante no próprio comportamento se manifesta como consequência, por não ser algo que ela faria normalmente e por afetar suas relações interpessoais. Ao reconhecer a reprodução de violência como um dos possíveis efeitos da VS sofrida, a participante destacou que parte do processo de elaboração dessa experiência envolve prestar atenção e refletir sobre a forma como tende a lidar e estabelecer relações com as pessoas, depois do ocorrido.

Hoje já não afeta mais dessa forma, mas eu ainda tenho a tendência de olhar pro homem e querer estratificar ele. E colocar ele... E isso foi porque eu reconheci que eu sofri um abuso. Talvez se eu não tivesse sofrido aquele abuso, eu não ficaria colocando as pessoas aqui e ali... tentando enquadrar elas em alguma caixinha que eu não quero perto... Aí bem ruim, né... Isso é terrível! (sic) (participante 1)

Nesse sentido, o reconhecimento da violência e de suas consequências é um aspecto importante a ser destacado na fala da participante. Segundo Hohendorff, Habigzang e Koller (2015), o processo terapêutico ocorre justamente por meio do relato de quem passou por uma situação de VS, visto que, assim, a pessoa tem a possibilidade de reelaborar a violência sofrida, reorganizando a memória traumática e tomando ciência dos impactos desse trauma em sua vida.

As reações de hesitação da participante 1 em contar para alguém a VS sofrida mostram-se mais comuns quando quem perpetrou a VS pertence ao mesmo ciclo familiar ou de convívio social, como indicado a seguir pela profissional que participou da pesquisa (Santi, Nakano, & Lettiere, 2010; Santos, & Dell'Aglio, 2010).

O contexto social colabora para naturalizar as violências quando culpabiliza quem sofreu e, ou, quando menospreza o sofrimento de quem viveu. A atribuição de responsabilidade do ocorrido a quem viveu a violência fica evidente quando se questiona como a pessoa não previu que aquilo pudesse ocorrer, diante de determinadas circunstâncias ou riscos, já que era algo recorrente e normalizado. Tal perspectiva não somente gera impacto direto para quem sofreu VS como pode incentivar a ocorrência de outras situações de violência, destacando-se, assim, a importância de se problematizarem as relações de gênero e seus contextos sociais. Uma das reações diante disso pode ser justamente a procura por novos círculos sociais, que não tenham ligação com a pessoa que cometeu o ato de violência ou que não reforcem as consequências vividas pela ocorrência da VS (Cardoso, & Vieira, 2015; Gomes 2011). Tal atitude foi realizada pela participante ao mudar seu círculo de amizades após a violência.

Isso mudou completamente os meus amigos... 90% deles são gays... Eu tô segura no universo gay... Em [nome da cidade onde reside atualmente], eu praticamente... Eu quase não vou em festa, mas, quando vou em festa, eu vou no [nome de uma boate LGBTQ+ local]. Eu não corro o risco de, pelo menos pelo meu imaginário, eu não corro o risco de sofrer nenhum tipo de abuso no [nome de uma boate LGBTQ+ local] (sic) (participante 1).

Tal mudança gera uma sensação de segurança, uma vez que está associada ao simbolismo adotado pela participante como uma defesa, que classifica os sujeitos que ela enquadra por meio da percepção de comportamentos e estereótipos sociais. Fazendo com que ela busque se relacionar com pessoas que contraponham a esse padrão (Connell, & Pearse, 2015). Tal afastamento interfere também na vida profissional, como a participante relata nos trechos a seguir:

E aí você começa, às vezes, a se esquivar inclusive de colegas profissionais que têm em volta de ti, assim... Tu começa a se retirar das situações. Então eu acho que, às vezes, a gente acaba por perder até as oportunidades. Por conta do abuso [. . .]. Em termos profissionais, isso interfere totalmente. Eu me sinto muito mais à vontade trabalhando com mulher e com gays (sic) (participante 1).

O tempo todo, eu tenho essas pessoas das [nome de determinada área de conhecimento] em volta de mim, né... E eu me lembro da forma como anda, da forma como fala... Da forma como se relaciona... Das piadas que fazem... E isso, às vezes, me machuca muito, sabe. Me machuca no sentido que eu sei que outras mulheres também sofrem aqueles abusos, sabe? E aí eu não me coloco mais naquelas situações (sic) (participante 1)

No caso da participante, o contato direto no local de trabalho com o estereótipo masculino, com o qual ela estabeleceu um simbolismo aversivo, gerou o afastamento dela de algumas situações. A reação de esquiva relatada pela participante se estendeu ao contexto profissional, repercutindo em perdas de oportunidades de trabalho. Outro impacto na vida profissional de quem sofreu VS é a necessidade de um tempo, seja para as consultas e atendimentos, seja para a pessoa lidar com a violência sofrida, como traz a psicóloga:

No trabalho, a gente percebe, sabe, o que elas [pessoas que sofreram violência] relatam, assim, de não ter direito a esse afastamento [do trabalho] muitas vezes, e ter esse tempo pra elas ressignificarem, elaborarem... Pra elas irem... porque são atendimentos que, principalmente ali, na primeira semana, elas têm, quase todo dia, um tipo de atendimento: é o infecto, é com a equipe aqui, é a delegacia, no IML. Então muitas acabam não aderindo ou se desorganizam mais ainda. Mas eu acredito que, em todas as esferas, essas consequências [da VS] (sic) (participante 2).

É importante destacar o ponto trazido pela profissional a respeito das consequências da VS. A participante 2 destacou que a VS pode afetar, de forma global, a vida de quem passa por essa situação. O impacto dessa violência pode deixar marcar físicas, psíquicas, sociais, sexuais, entre outras, sendo necessário, deste modo, olhar o indivíduo integralmente no cuidado em saúde, possibilitando também assistência de longo prazo e não apenas emergencial (Florentino, 2015; Garcia, & Trajano, 2018). A participante 1 traz tal violência como algo que estará sempre com ela. Mesmo que consiga elaborar o trauma e amenizar as consequências, o reflexo da violência vivida faz parte dela,

Mas acaba que eu trago junto comigo, eu não tenho como dizer “Ah, não! Agora eu superei... Vou poder deixar esse abuso pra lá”. Isso não existe. Você sofreu o abuso, o abuso vai estar com você pro resto da sua vida... Aquilo vai fazer parte de você, e isso interfere totalmente na relação que você vai viver dali pra frente, por exemplo (sic) (participante 1).

Grande parte desse impacto parece ser resultante do sentimento de culpa, sendo este uma das consequências mais comuns em quem sofreu VS, justamente pelas perspectivas culturais das relações de gênero. A culpa vai muito além do julgamento social, fazendo a pessoa que sofreu VS se considerar culpada pela violência perpetrada, como aponta a participante 1: "E eu, por um longo tempo, pensei isso [que era culpada]. Como eu não vi? Ai, eu deveria realmente estar muito bêbada... Se realmente tivesse, não tinha nem visto a cara" (sic) (participante 1). A culpa está tão enraizada nesta situação que mesmo tendo consciência disso, muitas pessoas repetem atitudes de julgamento normalizando a violência e invisibilizando quem a sofreu (Florentino, 2015; Garcia, & Trajano, 2018).

Elas [pessoas que sofreram VS] se sentem culpadas pelo que aconteceu. Por exemplo, a "eu fui, bebi", "me ofereceram bebida, e eu aceitei, depois eu não lembro mais de nada", então essa culpa assim, "ah, mas vão dizer que eu tava bêbada, vão dizer que eu quis, vão dizer que eu..." né? Elas trazem muito isso assim, como se elas estarem em uma situação de vulnerabilidade, que beber, né? Coloca em si... dá o direito de outra pessoa fazer o que ela quiser, e de ser julgadas mesmo, de ter grupos criados no Facebook falando "viram, que foi ela que quis, que foi ela que bebeu porque quis, entende?". Então, assim, isso constrange muito, faz elas se sentir... Elas trazem muito esse aspecto de culpa, de sujeira, de se sentir... E de ter vergonha. Começam a se isolar em razão disso, né? Todos os sintomas vão aparecendo (sic) (participante 2).

Há uma tendência, num cenário social mais amplo, cultural e historicamente constituído, de reproduzir uma associação da culpa a quem sofre e não a quem perpetra a VS (Florentino, 2015; Garcia, & Trajano, 2018).

No dia em que aconteceu, eu não entendi o que tava acontecendo. No outro dia, eu passei o dia inteiro chorando. Isso foi num sábado. No domingo, eu me sentia a pior pessoa do mundo, a sensação que eu tinha era que eu tinha que engolir detergente, assim, sabe? Pra me limpar daquilo que tinha acontecido, e o tempo todo eu me culpei, o tempo inteiro... Até... Sei lá... ano passado [cinco anos após a violência] (sic) (participante 1).

Porque, até então, eu achava que era minha culpa... Até o ano passado... Até o primeiro semestre do ano passado. E aí eu tive contato com amigas feministas e a... E aí eu entendi o quão importante era você se conhecer, sabe... Se respeitar no sentido de, quando acontecer uma situação dessas, você fazer alguma coisa, porque eu não tô nas estatísticas, porque eu não sabia que era [violência] (sic) (participante 1).

Percebe-se a importância de reconhecer a violência e suas consequências, de apropriar-se disso para conseguir elaborar e lidar com tais questões. Esse entendimento passa também pela compreensão da estrutura social por trás da VS e das reações em diante dela, problematizando as questões de gênero, que contribuem para perpetuar tal fenômeno (Connell, & Pearse, 2015; Garcia, & Trajano, 2018).

5. REDES DE APOIO: A BUSCA POR SUPORTE E ACOLHIMENTO A QUEM SOFREU VS

As consequências da VS podem ser agravadas pela culpabilização e banalização da violência, visto que dificultam a busca por ajuda. É possível que, ao perceber tais consequências, a pessoa que passou por uma situação de VS comece a reestruturar os vínculos de confiança, a fim de reduzir os reflexos dessa violência, minimizando, assim, também o risco de exposição a novos atos de violência. Porém, assim como as consequências dependem de muitos fatores subjetivos, o modo de lidar com a violência também é muito pessoal e precisa ser respeitado, como destaca a psicóloga.

Os sintomas que elas vão apresentar dependem muito da forma como foi [a violência]. A gente percebe isso, mais agressivo assim, nesse sentido, então, tem umas que revivem todo dia aquilo. Às vezes, elas não acordam bem. Tem umas que moram próximo, estudam aqui, elas acabam vindo procurar a gente (sic) (participante 2).

Forçar o relato de alguém sobre sua experiência de VS é o equivalente a reproduzir outro ato de violência nesse sujeito (Hohendorff et al., 2015; Silva, & Gonçalves, 2015). Segundo a psicóloga entrevistada nesta pesquisa, o contato inicial com a pessoa que sofreu violência é de extrema importância por acolher e auxiliar em um momento confuso, no qual ela passará por diversos procedimentos profissionais, mas, principalmente, pela criação de um vínculo de confiança, que faz com que recorram a profissionais, quando necessário: "Se consegue tá junto lá, desde o primeiro atendimento, pra organizar isso, porque elas se desorganizam muito, é bem importante, elas têm a gente [psicóloga e assistente social] como referência" (sic) (participante 2), o que faz com que, segundo a profissional, muitas mulheres a procurem em situações de crise, quando não estão conseguindo lidar com o ocorrido.

É justamente esse acolhimento, assim, elas sentirem que tá aqui [no serviço de saúde] é importante, e que não vai só fazer com que elas se exponham, com que elas se sintam fragilizadas, porque mexe de novo, né, com tudo que tá acontecendo, e delas saberem que é importante falar, que é importante, sim, reviver, elaborar (sic) (participante 2).

A qualidade dos serviços de saúde voltados para o atendimento a quem sofreu VS é crucial justamente por lidar com questões delicadas que podem impactar na saúde, em curto e longo prazos. Tais cuidados vão desde a capacitação da equipe para lidar com os casos, de forma acolhedora, sem julgamentos e, ou, exposição, até as instalações e áreas físicas, que devem ter locais para que os atendimentos sejam realizados em um ambiente separado, garantindo a privacidade necessária. O ideal é que a equipe seja interdisciplinar e trabalhe em consonância, atendendo de forma integral. Todas essas medidas devem ser pensadas para que se crie não só um atendimento de qualidade, mas um local seguro e acolhedor, onde a pessoa que sofreu a violência possa ter autonomia sobre seu tratamento e confiança nos profissionais envolvidos, envolvidas, auxiliando assim na forma como ela vai lidar com as consequências da violência (Ministério da Saúde, 2011; World Health Organization, 2017).

Destaca-se a importância dos serviços de saúde, mas também é fundamental discutir tais aspectos no âmbito social, visto que, muitas vezes, quem sofre VS não procura atendimento profissional e acaba buscando auxílio de outras formas ou, até mesmo, evitando lidar com o assunto. O silêncio sobre a violência sofrida é comum, seja como uma negação do trauma vivido ou devido ao tabu social de se falar sobre o assunto (Hohendorff et al., 2015; Silva, & Gonçalves, 2015). Essa foi a primeira reação da participante desta pesquisa, "Eu fingi [que a violência não tinha acontecido], mas eu não tinha como... Eu fingia pros outros, mas eu não tinha como fingir pra mim. Aquilo tava comigo" (sic) (participante 1).

Mesmo percebendo o impacto da violência em sua vida, a percepção social de tal fato pode fazer com que o silêncio permaneça e, consequentemente, não haja suporte e apoio para lidar com tais questões. De acordo com Santos e Dell'Aglio (2010), a revelação da VS é influenciada por diversos fatores que fazem a pessoa que sofre VS não se sentir segura para contar sobre a violência. Entre esses fatores, está o medo da reação social, de as outras pessoas não acreditarem na veracidade do relato, não darem apoio ou até mesmo culpá-la pela violência sofrida. Tais receios podem ser entendidos pelos simbolismos contidos nas relações de poder em nossa sociedade, que colocam a figura masculina como superior, tendo suas ações muitas vezes justificadas como "normais" e "instintuais"; enquanto a figura feminina, por sua vez, é questionada e responsabilizada pela manutenção de seus status puro e assexuado (Connell, & Pearse, 2015).

Tais temores fizeram com que a participante não relatasse a violência para pessoas próximas: "Eu não me sinto à vontade de falar isso pra minha mãe, para os meus familiares, porque eu sei que eles vão me culpar: 'Imagina, como que tu não viu?', 'Tu tava bêbada também, lógico!'... Aquela coisa que todo mundo fala" (sic) (participante 1).

Mesmo buscando ajuda por conta própria e, hoje, conseguindo perceber os impactos da violência em sua vida, o fato de não falar do ocorrido para algumas pessoas, principalmente para sua família, ainda gera desconforto:

Interfere em tudo [referindo-se à violência sofrida]. Pessoal, pessoal no sentido das relações até com a própria família, no momento em que você não divide algo que é tão duro e... Né?... É horrível... É como se aquelas pessoas que convivem com você, elas não conhecessem você por completo... Elas não sabem o que te motiva a mudar... O que te motiva a fazer determinadas coisas, sabe? Tipo o que me motiva tá aqui [na entrevista], dividindo uma dor... Porque elas nem sabem que eu tive essa dor... Porque ela é bem terrível... (sic) (participante 1).

A reação da participante ao fato de não compartilhar com familiares o que viveu é compreensível, visto que, diante de uma situação de violência, em geral, busca-se o suporte das pessoas mais próximas, sejam elas familiares ou amigas, as quais já têm vínculos de confiança estabelecidos. Porém, frequentemente, esse suporte é permeado por julgamentos e culpabilização, colocando quem sofreu VS novamente em uma posição de vulnerabilidade.

É fundamental o registro e notificações dos casos de violência para que se possa compreender e planejar ações de prevenção e promoção de saúde, mas é ainda mais urgente discutir sobre as noções de gênero implicadas. De acordo com Connell e Pearse (2015), quando se pensa em tais noções como uma estrutura social, abrem-se precedentes para pensar em crise. Pensar as questões de gênero como uma estrutura social possibilita compreender que, a partir de uma crise de contradições e, ou, inadequações, é possível gerar rupturas internas na estrutura, mudando os conceitos e relações que a definem. Os relatos de violências e os crescentes índices de incidência destas já apontam para a crise. Que venham as mudanças e ressignificações.

6. CONCLUSÕES

As consequências da VS na vida de quem a sofreu dependem de muitos fatores, como a forma em que ocorreu, quem perpetrou, o local, etc. Logo, os efeitos são identificados e vividos de forma muito subjetiva e pessoal. A vida de quem sofre esse tipo de violência pode ser impactada de forma global, direta ou indiretamente, podendo atingir, por exemplo, as relações afetivo-sexuais, familiares, sociais, profissionais, seja pela forma como a pessoa se relaciona socialmente, seja pela forma como ela se relaciona socialmente ou pelo modo que passa a ver os outros e a si mesma.

Ao se discutirem as situações de VS, é importante incluir no debate as questões de gênero, pois estas podem influenciar não apenas a ocorrência, como também os possíveis impactos na vida de quem a sofreu, como este estudo demostrou. A ampliação das discussões de gênero pode auxiliar a mediar sentimentos de culpa. Além disso, também podem ajudar a compreender os baixos índices de denúncia, como resultado do tabu gerado em torno do assunto. As funções estereotipadas designadas para as figuras de masculino e feminino acabam por normalizar os atos de violência ao considerar algumas atitudes como instintivas e naturais.

É fundamental perceber o fenômeno da VS como problema de saúde pública e não como uma ação naturalizada. Tal entendimento proporciona a criação de políticas públicas que ampliem e deem suporte para as ações de prevenção e promoção da saúde, do mesmo modo que se tenha uma estrutura adequada para o atendimento a quem a sofre, sendo importante também o treinamento e capacitação de profissionais envolvidos, envolvidas, devido à delicadeza e à complexidade da situação de violência. Porém é preciso ir muito além, para dar conta desse problema social.

Faz-se necessária a discussão sobre a ocorrência e implicações da VS, de modo livre, sem tabus, incentivando a problematização das questões de gênero envolvidas e principalmente desmistificando a VS. A abordagem sobre tal temática objetiva informar sobre a incidência, locais de acolhimento e atendimento, retirando a VS do local velado em que ela é colocada. De qualquer forma, em ações de saúde ou de pesquisa, é importante colocar em primeiro lugar a subjetividade e particularidades das pessoas que a sofreram, respeitando o modo escolhido por elas para lidar com a situação.

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Texto recebido em 10 de setembro de 2018 e aprovado para publicação em 26 de novembro de 2019.

 

 

* Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior (Capes), mestra em Psicologia pela UFSM.
**Doutora e mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), como bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).Endereço: Universidade Federal de Santa Maria, Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSM. Avenida Roraima, 1000, Prédio 74 B, Santa Maria-RS, Brasil. CEP: 97105-900.

 

 

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