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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.27 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2021

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p93-111 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p93-111

 

Os programas de proteção a testemunhas no brasil: a produção do testemunho como peça processual

 

Witness protection programs in brazil: the fabrication of testimonies as pleadings

 

Los programas de protección de testigos en brasil: la producción del testimonio como pieza procesal

 

 

Pâmela Nische Alves*; Neuza Maria de Fátima Guareschi**; Oriana Holsbach Hadler***

 

 


Resumo

Este artigo tem como objetos o Programa Estadual de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas do Estado do Rio Grande do Sul e sua relação com a importância do testemunho para a produção de provas judiciais. Com base em um referencial foucaultiano, busca-se interrogar as condições de possibilidade de emergência dessa política pública nos moldes pelos quais é concebida e pensar sobre as racionalidades de Estado que produzem efeitos no governo das vidas que tal programa intenciona proteger. É utilizado como disparador para a discussão o filme "Quanto vale ou é por quilo?", tratado como materialidade questionadora da lógica de mercado introduzida nas políticas públicas executadas pelo chamado "Terceiro Setor". Em uma análise das formas de execução das políticas públicas, é problematizada a importância de se romper a lógica mercantilista imbuída nesse processo, em especial, a dos programas de proteção às testemunhas, como uma função ético-política da Psicologia.

Palavras-chave: Programas de proteção a testemunhas. Políticas públicas. Testemunho. Violência de Estado.


Abstract

The objects of this study are the State Victim Witness Assistance Program in the state of Rio Grande do Sul and its relation to the importance of testimony to bring forth legal evidence. The conditions for the emergence of the public policy as devised are questioned on the basis of a Foucauldian framework. The State rationalities which have produced effects on the handling of the lives that the program is intended to protect are also pondered over. The movie "Quanto vale ou é por quilo?" [How much or it’s per kilo?] has been used as a trigger in this discussion, adressed as the materiality that questions the market logic introduced by the so-called Third Sector. Examining the ways of implementation of public policies, the importance of disrupting the mercantilist logic in this process has also been put into question, particularly that which concerns witness protection programs, as a Psychology political-ethical role.

Keywords: Witness protection programs. Public policies. Government of life. Testimony. State violence.


Resumen

Este artículo mantiene su enfoque en el Programa Estatal de Protección de Víctimas y Testigos Amenazados del Estado de Rio Grande do Sul y su relación con la importancia del testimonio para la producción de pruebas judiciales. Desde una referencia foucaultiana, se busca investigar las condiciones de posibilidad para la emergencia de esa política pública según está concebida, además de pensar sobre las racionalidades del Estado que producen efectos en el gobierno de las vidas que el programa intenta proteger. Se utilizó como disparador de esta discusión la película "¿Quanto vale ou é por quilo?", comprendida como una materialidad cuestionadora de la lógica de mercado introducida en las políticas públicas ejecutadas por el llamado "Tercer Sector". En el análisis de las formas de ejecución de las políticas públicas, se cuestiona la importancia de romper con la lógica mercantilista inherente a este proceso, en particular la de los programas de protección a testigos, como una función ético-política de la psicología.

Palabras clave: Programas de protección de testigos. Políticas públicas. Testimonio. Violencia de Estado.


1. INTRODUÇÃO

Este artigo tem como materialidade analítica o Programa Estadual de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas do Rio Grande do Sul e sua relação com a importância do testemunho para produção de provas judiciais. As considerações aqui abordadas surgem da atuação na execução de políticas públicas no campo da proteção às testemunhas no Estado do Rio Grande do Sul. A partir dessa experiência, propomo-nos a utilizar, como disparador para a discussão, o filme Quanto vale ou é por quilo?, realizado por Sérgio Luiz Bianchi, no ano de 2005. Na produção, Bianchi expõe a lógica de mercado introduzida nas políticas públicas executadas pelo chamado "Terceiro Setor", geralmente formado por instituições sem fins lucrativos, filantrópicas e, ou, religiosas que executam cada vez mais a função do Estado de garantir direitos fundamentais. Como uma adaptação livre de um conto de Machado de Assis (1906/2001),1Pai contra mãe, o filme traz uma narrativa histórica que inicia no século XVIII abordando o tráfico de escravos e, principalmente, o processo lucrativo envolvido na alforria. De forma ácida, uma amarra historiográfica é traçada onde movimentos de instituições têm expostos o superfaturamento e a contabilização da pobreza como forma de negócio. Quanto vale chama atenção para o quanto práticas terceirizadas, por meio de parcerias público-privadas, negociam vidas como produtos.

Nesse sentido, utilizamos essa produção cinematográfica como disparador para problematizarmos as relações entre terceirizações via parcerias público-privadas e o sucateamento da execução de políticas mediante um investimento de baixo custo, mão de obra barata e o lucro envolvendo vidas. O diretor demonstra, de maneira crítica, o alargamento das políticas sociais como terreno fértil para a corrupção, onde o que menos importará, no fim das contas, será a vida daqueles a quem se destinam as políticas. Esse filme mobiliza-nos como política de escrita, tensionando os modos como se executam as políticas públicas no contexto neoliberal, em que, muitas vezes, as vidas são tomadas como mercadorias por parte do Estado. Em nome dessas vidas, realizam-se inúmeras ações, e, muitas delas, como exporemos no decorrer deste texto, atuam restringindo os direitos daqueles que elas pretendem proteger. Em tal contexto, a Psicologia Social tem como função ético-política buscar estratégias de ruptura com essa lógica neoliberal, problematizando os modos como são executadas as políticas públicas e buscando romper a lógica mercantilista presente nesse processo, em especial nos programas de proteção às testemunhas.

O Protege-RS, atualmente vinculado à Secretaria de Desenvolvimento Social, Trabalho, Justiça e Direitos do Estado do Rio Grande do Sul, teve sua execução realizada pela Secretaria de Segurança Pública desde sua criação, no ano 2000, até meados de 2011, quando ocorreu sua passagem para a atual Secretaria. No que se refere à execução dos programas de proteção no Brasil, cabe ressaltar que o Rio Grande do Sul foi o único Estado Federativo a diferir do modelo de programa estabelecido no restante do País, o qual é executado por organizações da sociedade civil, em geral, vinculadas ao Movimento Nacional de Direitos Humanos.2 A justificativa para a execução descentralizada, constituída em parceria público-privada, deu-se pela necessidade de sigilo absoluto das testemunhas e vítimas, que, muitas vezes, delatavam violações cometidas pelos próprios agentes do Estado, como policiais corruptos, agentes penitenciários, políticos parlamentares e outras figuras que representam o Estado. Dessa forma, viu-se a justificativa para a criação desse modelo de execução de política pública.

Inicialmente, chamou-nos atenção a mudança nos modos de execução do programa no Rio Grande do Sul, que passou a ser feita pelo Estado, além da alteração da abrangência do público ao qual é destinado, que, no restante do Brasil, consiste em vítimas e testemunhas ameaçadas. Já no Protege-RS, o programa abrange unicamente testemunhas ameaçadas que estejam arroladas em processos judiciais e que apresentem alto teor de relevância em seu testemunho, conforme descrito em seu marco legal.3 Isso nos levou a questionar acerca da valoração do testemunho dessas pessoas. Quem define o sujeito que fala? E o quanto vale sua fala? Quais os mecanismos presentes nessa escolha e na supressão da categoria de vítimas do escopo de atendimento dessa política?

Ante o exposto, propomo-nos a interrogar quais são as condições de possibilidade de emergência dessa política pública nos moldes pelos quais é concebida atualmente e, por meio dos estudos foucaultianos, pensar sobre as práticas discursivas que constroem e são construídas por tais racionalidades de Estado, produzindo efeitos no governo das vidas. Para isso, discorreremos sobre a Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, e o Decreto nº 3.518, de 20 de junho de 2000,4 que embasam a criação dos programas no Brasil e o contexto em que essa política pública se constituiu.

2. O TESTEMUNHO COMO DENÚNCIA DA VIOLÊNCIA DE ESTADO

A emergência do testemunho como ferramenta de visibilidade de violações de direitos humanos, como enfrentamento à violência e como potência de memória é abordada principalmente nos períodos Pós-Guerra, diante de um contexto de emudecimento ante as violências e atrocidades vividas nesses períodos. Todavia é após a Segunda Guerra Mundial que vemos uma ampliação na função do testemunho, seja como denúncia, seja como uma função reparadora dos traumas decorrentes do período da guerra. Um dos principais autores que narram seus testemunhos como forma de resistência ao esquecimento é Levi (1988), que faz uso de sua narrativa como sobrevivente do Shoah5 com o intuito de fazer memória ante o ocorrido.

Uma das grandes questões levantadas por Levi (1988) é o caráter indizível do testemunho, uma vez que a testemunha que realmente vivenciou a violência não retornou para contar a história, cabendo a todos os outros a figura de um terceiro que sobreviveu para testemunhar. "A demolição levada a cabo, a obra consumada, ninguém a narrou, assim como ninguém jamais voltou para contar a sua morte" (Levi, 1988, p. 47). Mesmo diante desse caráter de indizibilidade, Levi (1988) levanta a importância ética do testemunho, de modo que, assim, o desejo nazista não se concretizaria; qual seja, o de apagar todos os resquícios das barbáries cometidas durante o período da guerra. Acerca disso, Seligmann-Silva (2010) refere que

O genocida sempre visa à total eliminação do grupo inimigo para impedir as narrativas do terror e qualquer possibilidade de vingança. Os algozes sempre procuram também apagar as marcas do seu crime. Esta é uma questão central, que assombra o testemunho do sobrevivente em mais de um sentido (p. 10).

Portanto, objetivando fazer memória ante a barbárie, Levi (1988), no período Pós-Guerra, ancora sua aposta ética no testemunho como ferramenta de luta por visibilidade e denúncia das inúmeras violências que dizimaram o povo judeu na Segunda Guerra Mundial.

Da mesma maneira, Ansara (2008) refere que, nas últimas décadas, as sociedades latino-americanas vivem uma série de conflitos violentos em seu processo de democratização, considerando as ditaduras militares, que se alastraram simultaneamente na América Latina. Em decorrência disso, a memória e o testemunho desempenham um papel fundamental de fazer resistência política à "história oficial". Nesse sentido, muitos autores dedicaram-se, assim como Levi (1988), à escrita testemunhal, narrando a história sob a perspectiva dos vencidos, em oposição aos grandes processos de anistia e reconciliações nacionais impostos pelo Estado a fim de construir uma memória oficial dos fatos ocorridos.

Assim como no restante da América Latina, no Brasil, temos o testemunho como importante ferramenta de denúncia de violações de Estado ocorridas nos períodos ditatoriais. De 1964 até 1985, vivenciamos um golpe civil-militar que ocasionou um processo de ruptura democrática, de forma que se instaurou um regime de repressão, violência, torturas e, sobretudo, mortes que silenciaram a população durante os 21 anos do regime ditatorial. Segundo Seligmann-Silva (2010), no Brasil, desde a última ditadura, constituiu-se uma sociedade em que uma fração se identifica com o desejo de busca da verdade dos fatos ocorridos sob aquele regime. Esse grupo é formado por vítimas, pelos que são solidários com elas e por muitos que acreditam na importância de se estabelecer justiça como condição de construção de um Estado de Direito autenticamente justo e democrático.

Portanto, a temática sobre o testemunho surge no Brasil, primeiramente, como uma tentativa de impor um fim à impunidade que marcou o período de transição democrática no País. Tal ferramenta passou a ser uma das estratégias utilizadas pelos sobreviventes, exilados e familiares atingidos pela repressão presente no período da ditadura, de modo a dar visibilidade às violações vividas e lutar por justiça.

2.1. OS PROGRAMAS DE PROTEÇÃO A VÍTIMAS E TESTEMUNHAS NO BRASIL

No contexto de redemocratização do País e ampliação das políticas de proteção social, o Grupo de Assessoria Jurídica a Organizações Populares do Estado de Pernambuco (GAJOP), organização não governamental, participou ativamente na construção do primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH),6pautando, entre outras demandas, o grande número de crimes não solucionados, principalmente no que se refere a chacinas, homicídios e retaliações. Muitas vezes, essas violências eram exercidas por grupos de extermínio com vinculação ao próprio Estado, sobre pessoas que optavam por testemunhar e colaborar em processos judiciais. Diante disso, a instituição mostrou-se protagonista na luta pela visibilidade dessa pauta, amparando sua proposta de uma política de proteção a testemunhas e vítimas de violência em textos como o da Conferência das Nações Unidas sobre os Direitos do Homem, ocorrida em Viena, no ano de 1993, bem como o do 8º Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento de Delinquentes, realizado em Havana, em 1990 (Valadão, 2005).

O debate sobre essa pauta contou, também, com o apoio do Movimento Nacional de Direitos Humanos para que fosse garantida a inclusão da temática no PNDH, nas linhas que versam sobre o combate à impunidade,7 visando à implantação desse modelo de programa em âmbito nacional. Portanto a pauta referente à proteção de testemunhas e vítimas ameaçadas foi inserida nas demandas de Direitos Humanos por meio da reivindicação pelo direito à segurança e à preservação da vida, tendo em conta os perigos aos quais os sujeitos estavam expostos e também o perigo que representavam àqueles contra os quais testemunhavam.

Em meados de 1996, em reflexo às proposições do PNDH, o Estado de Pernambuco instituiu uma parceria público-privada com o GAJOP, culminando na criação do Provita-PE, o primeiro Programa Estadual de Proteção a Vítimas, Testemunhas e Familiares de Vítimas de Violência instituído no Brasil, antes ainda da política nacional. A forma de atuação, constituindo uma parceria público-privada, foi justificada, na época, pela grande ocorrência de crimes praticados pelos próprios agentes do Estado; assim, buscava-se garantir a preservação da vida dos sujeitos encaminhados para proteção. É importante demarcar que, no momento em que surgiu a demanda pelos programas de proteção, o ato de testemunhar as violações de Estado estava se disseminando após o período de repressão ditatorial no Brasil. Ou seja, as vidas dos sujeitos eram postas em risco em decorrência do conteúdo de suas denúncias e contra quem estavam testemunhando, uma vez que a prática de chacinas estava se disseminado pelo País, trazendo visibilidade nacional a esses casos de barbárie, muitas vezes executadas pelo próprio Estado. As retaliações e ameaças de morte desferidas a esses sujeitos demonstram, ainda, os resquícios da repressão após a reconstituição do período democrático bem como o crescente aumento da violência, que até então estava sendo estancado pelos efeitos dessa mesma repressão durante o regime ditatorial.

Podemos perceber que a prática de tortura, homicídios e violações de Estado não cessaram após o fim do regime ditatorial e, embora a realização da denúncia pudesse ocorrer livremente, as retaliações não deixaram de acometer os que optavam por denunciar. Por isso, com as recorrentes violações de direitos por parte do Estado e com o protagonismo da sociedade civil no período de redemocratização do País, ao questionar tais práticas, viu-se justificada a criação de um programa que fosse executado por uma organização da sociedade civil organizada, diferentemente dos modelos de programas de proteção de outros países, os quais embasaram a criação do programa pernambucano.

Em um contexto de intensificação da violência, de corrupção, de guerra ao tráfico de drogas e de homicídios que até então não obtinham resolução pela "Justiça comum", mas que, dada a sua visibilidade nacional, também não poderiam ficar impunes, foi criada a lei federal que institui o Programa Federal de Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas. Instaurou-se a Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, que estabeleceu normas para a organização e a manutenção de programas especiais de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas, instituiu o Programa Federal de Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas e dispôs sobre a proteção de acusados ou condenados que tivessem voluntariamente prestado efetiva colaboração com a investigação policial ou o processo criminal. Conforme Rios (2013),

A chamada Lei de Proteção às Testemunhas se insere entre as medidas destinadas a combater a criminalidade no nosso país, relacionando-se com a dificuldade ou a impossibilidade da produção de prova pela acusação, em especial a prova testemunhal contra agentes e autoridades públicas que ameaçam as vítimas e testemunhas, sendo os programas de proteção de que trata a norma em referência, portanto, importantes instrumentos postos à disposição da polícia judiciária, do Ministério Público e do Judiciário para a realização da justiça penal (Rios, 2013, p. 8).

Durante o percurso de desenvolvimento dos programas de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas como política pública de direitos humanos, vemos delinearem-se ao menos três linhas de forças que constituem sua composição: o direito à Justiça, o direito à segurança e a garantia da vida de seus usuários. Contudo, após a implantação dos programas de proteção em todo o território nacional, a partir de sua normatização em lei, vemos a execução da política pública ser direcionada mais fortemente às pautas de segurança pública, ancoradas no discurso do combate à impunidade. Dessa forma, as demais linhas de forças presentes no início da gestão da política perdem agenciamento. Isso porque, no decorrer de sua execução, essa política passa a servir como um importante instrumento de apoio ao trabalho investigativo realizado pelas polícias civis e militares, Ministério Público e Poder Judiciário. Assim, a testemunha que será protegida pelos programas de proteção distancia-se daquelas que surgiram no período da ditadura militar, amplamente defendidas pelos Direitos Humanos, dado o investimento que o Estado realizará nessa política em específico. Diferentemente das políticas de memória e reparação, que visam ao testemunho como ferramenta de visibilidade da violência de Estado, apostando na memória e na ética como reparação dos danos causados às vítimas, os programas de proteção atuarão com vistas ao combate à impunidade, mediante a preservação de prova testemunhal, noção crucial nesta discussão, uma vez que essa política passa a centralizar a resolução dos casos que apresentem grande relevância para o Estado.

3. QUANTO VALE?: O TESTEMUNHO COMO PEÇA PROCESSUAL

Se, no surgimento da pauta de proteção às vítimas de violência e testemunhas ameaçadas, predomina um discurso de garantia de direitos e proteção da vida das pessoas que estavam passando por ameaças e risco de morte, quando ocorre a regulamentação do programa em lei, vemos surgir um forte atravessamento, relativo à importância dos testemunhos como produção de prova para crimes que ficam em aberto, dada a "lei do silêncio" que se instaura sobre tais crimes. Ocorre aí uma inversão da lógica estabelecida com esse mecanismo de proteção ao formular-se uma política pública estatal de proteção às testemunhas: a objetivação do testemunho desses sujeitos, que se tornam importante moeda de troca na produção de prova, bem como peças valiosas para um Poder Judiciário interessado em prender cada vez mais. Conforme Santos (2016, p. 118), isso implica a "construção de um programa que apresenta diversas falhas em seu funcionamento, no que diz respeito à execução daquilo que é prescrito dentro dos decretos e regulamentos que versam sobre o que é e como deve funcionar o programa".

Com o discurso amplamente difundido da impunidade e a necessidade de aprimoramento das técnicas do Estado para dar conta desse déficit apresentado pelos executores da lei, os programas de proteção foram instituídos pela Lei nº 9.807, de 13 de julho de 1999, e regulamentados com o Decreto nº 3.518, de 20 de junho de 2000. Em seu marco legal, ambos os atravessamentos se fazem visíveis, tanto no que se refere à garantia à vida quanto no que concerne à necessidade de produção de prova testemunhal de auxílio ao Poder Judiciário. Porém percebemos que, no decorrer dos anos, os programas de proteção desenvolvem sua execução como ferramenta de combate ao crime, em detrimento da garantia de proteção dos direitos humanos das testemunhas e vítimas atendidas. Importa questionar, nesse sentido, não tanto a efetividade de proteção da vida biológica daqueles que participam do programa, mas o preço cobrado pelo Estado para salvar essas vidas e como elas permanecem vivas; dito de outra forma, colocar em análise o modo como essa política passa a ser executada após a instituição de seu marco legal. Entendemos que, quando a lei passa a ser regulamentada e executada em todo o País como dispositivo legal, emergem mais claramente as linhas de força que a constituem, deixando mais evidente qual o interesse do Estado nessa forma específica de proteção.

Conforme a última versão no Programa Nacional de Direitos Humanos, redigida no ano de 2012, os programas de proteção são considerados programas de segurança pública, resguardando a seus usuários o direito à segurança individual e, em termos de política pública, auxiliando no combate ao crime organizado, incentivando a realização de denúncias e derrubando a chamada "lei do silêncio". Todavia enunciamos que não se trata de qualquer denúncia, como vemos efetuadas no Disque 100,8 política pública também mencionada na terceira edição do PNDH. As denúncias às quais se referem os programas não operam simplesmente de modo a evidenciar alguma situação de violência; é necessário que essa denúncia seja qualificada como uma prova, conforme descrito no artigo 2º da Lei nº 9.807/99:

Art. 2º A proteção concedida pelos programas e as medidas dela decorrentes levarão em conta (I) a gravidade da coação ou da ameaça à integridade física ou psicológica, (II)a dificuldade de preveni-las pelos meios convencionais e (III) a sua importância para a produção de prova (grifos nossos).

Já no artigo 3º do Decreto nº 3.518/00, que regulamenta a lei, o texto ganha um sentido mais claro ao referir-se àqueles a quem a proteção se destina.

Podem ser admitidas no Programa as pessoas que, sendo vítimas ou testemunhas de crime, sofram ameaça ou coação, em virtude de colaborarem com a produção de prova, desde que aceitem e cumpram as normas de conduta estabelecidas em termo de compromisso firmado no momento de sua inclusão (grifos nossos).

Diante do exposto, temos algumas delimitações no que se refere ao exercício da proteção oferecida pelos programas. Quanto aos requisitos de ingresso, considera-se, além da gravidade da coação ou da ameaça, a relação de causalidade com a colaboração prestada ao processo em que o sujeito figure como vítima ou testemunha. Essa relação que articula o ato de testemunhar à ameaça de morte opera restringindo o público ao qual se destina essa política, atrelando a proteção ao ato de colaborar com a Justiça. Dessa maneira, não existe proteção para aqueles que optarem por não falar, ou ainda, para aqueles em quem o Estado não tenha interesse como valor para produção de prova, conforme o requisito referido nos termos da lei. Assim, no próprio texto da lei, vê-se a valoração dada ao testemunho daqueles que serão protegidos. Gilson Roberto de Melo Barbosa, promotor de Justiça de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos em Recife-PE, conforme informações lançadas pelo Ministério Público Federal (Brasil, 2013), refere-se ao Provita como um programa exitoso, pois representa um importante instrumento destinado ao exercício do direito de punir e, por outro lado, garante o direito à vida ao sujeito que se submete ao programa, em razão de sua colaboração com a Justiça. Diante disso, percebemos que, além da proteção, os programas servem também de instrumento para o Poder Judiciário exercer o direito de punir, assim demonstrando o que vem a "justificar" o interesse do Estado em investir nessa política pública.

Quanto à produção de prova, Tourinho Filho (1986) diz que a prova testemunhal, principalmente no processo penal, é de valor extraordinário, pois dificilmente se estabelecem as infrações com outros elementos de prova. Comumente, as infrações penais somente podem ser provadas, em juízo, por pessoas que assistiram ao fato ou que dele tiveram conhecimento ou participaram; portanto, a prova testemunhal é uma necessidade, e nela reside o seu fundamento. Diante disso, podemos ter uma breve noção da importância que a prova testemunhal adquire no contexto do processo penal9 que compõe a maioria dos processos que os programas de proteção acolhem. Porém, indo em passos menos largos, devemos nos perguntar primeiramente por que a importância para a produção de prova passa a ser um dos objetivos principais nos programas de proteção.

Para analisar essas formas de governo exercidas pelo Estado, Foucault (2008) traz o modelo biopolítico para analisar as formas como se exerce o poder após o surgimento da figura do Estado como gestor da população. O poder analisado por Foucault (2008) não se caracteriza como uma entidade em si, representada no Estado como uma figura transcendental, ou seja, nessa perspectiva, o poder é imanente às relações estabelecidas entre si:

O poder é um conjunto de mecanismos e procedimentos que tem papel ou função de manter – mesmo que não o consigam – justamente o poder [. . .] os mecanismos de poder são parte intrínseca de todas as relações, são circularmente o efeito e a causa delas (p. 4).

Olhando por essa perspectiva, vemos que o poder exercido sobre o corpo dos indivíduos respaldará as tecnologias de gestão aplicadas pelo Estado, como é o caso dos programas em questão. No entanto, as relações de poder também se desenvolverão em todas as relações exercidas nesse novo paradigma de governo, inclusive nos modos como as pessoas se relacionam e como vivem em sociedade, conforme determinados contextos históricos e econômicos. Esse fator faz com que o Estado invista no governo da população e nas técnicas de regulamentação dos sujeitos, maximizando suas vidas e garantindo sujeitos saudáveis e, principalmente, produtivos.

Para operacionalizar essa regulamentação exercida no corpo da população, temos o que Foucault (2008) chama de mecanismos de segurança, que surgem mediante inúmeros aparatos de governo, não necessariamente em políticas específicas de segurança pública, por exemplo. Esses mecanismos surgem principalmente atrelados à gestão e organização da população em termos de riscos, o que respalda a ação desses mecanismos, conforme sugerem Ximendes, Reis e Oliveira (2013),

A segurança tem se constituído como um eixo organizador da vida política desde a estruturação da vida coletiva do homem em torno da polis até contemporaneamente, produzindo efeitos na distribuição dos espaços urbanos, nos modos como nos vestimos; como circulamos no dia a dia das cidades, como nos relacionamos com outros, ou mesmo na forma como elegemos nossos representantes políticos (p. 92).

Diante disso, percebemos que o discurso acerca da segurança está presente em toda a organização da população e disseminado fortemente por toda a sociedade, em especial no que concerne aos investimentos do Estado em políticas públicas. No caso da política que colocamos em análise, esse discurso da segurança vai se tornando o principal argumento que respalda a criação dos programas de proteção. Isso no âmbito da segurança, em termos individuais, uma vez que a proteção se estabelece pautada na defesa da vida de seus usuários em um contexto de violência, e também como política voltada para a população, inserida no rol de políticas destinadas à segurança como um direito básico de todo cidadão. Inclusive, ter o direito à segurança citada na Declaração Universal de Direitos Humanos como um direito "natural" do ser humano já nos diz dessa sociedade pautada pela segurança como organizador da vida política.

Todavia, é importante salientar que, para Foucault (2008), na sociedade de segurança, maximizam-se os elementos positivos da sociedade e se minimizam os riscos, sabendo-se que eles jamais serão suprimidos. Essa lógica encontra-se presente nos modos como as políticas serão constituídas; sabe-se que, mesmo que se objetive maximizar a vida, muitos indivíduos escapam a essas formas de governo e ficam à margem da garantia de direitos. Quanto ao recorte específico dos programas de proteção de que tratamos aqui, observa-se que jamais seria possível sanar o problema da impunidade no Brasil, tampouco acolher todas as pessoas vítimas de violência ou ameaçadas. A partir dessa nova racionalidade do Estado, então, vê-se operar o controle dessas populações por meio da liberdade, gerenciando-se os fatores de risco, de modo a intervir cada vez menos nos corpos individuais e focando recursos na gestão da população. Ou seja, é com base no advento da estatística que será calculado o custo de investimento e índice de riscos de cada ação política. O intuito não é sanar o problema, mas chegar a uma média considerada ótima, diante do cálculo da noção de risco versus noção de custos, o que pautará os investimentos realizados pelo Estado. "Trata-se simplesmente de maximizar os elementos positivos, de poder circular da melhor maneira possível e de minimizar, ao contrário, o que é risco e inconveniente, como o roubo, as doenças, sabendo perfeitamente que nunca serão suprimidos" (Foucault, 2008, p. 26).

Sob essa ótica, percebemos mais claramente os mecanismos que sustentam o modo como os programas de proteção passam a ser geridos e executados. Em vista de um cálculo de investimento por parte do Estado, a proteção é destinada somente a uma parcela da população, diferentemente de políticas sociais que se destinam à totalidade da população. Com base nesses mecanismos de segurança, podemos perceber como a valoração de determinados testemunhos em detrimento de outros entra em uma racionalidade do próprio modo como o Estado moderno executa suas políticas, de forma que o objetivo nunca será sanar o problema, mas estabelecer essa média considerada ótima, assim legitimando a oferta de proteção apenas para aqueles com quem é possível estabelecer uma relação de troca que justifique o investimento realizado pelo Estado, como refere Krapf (2014),

Com efeito, deve o magistrado, diante de casos de vítimas e testemunhas ameaçadas, ponderar a real valia dos depoimentos para o processo. Apesar de as coações, normalmente, cingirem-se aos depoentes mais firmes, precisos e detalhistas, deve o magistrado sopesar a essencialidade das declarações. Tratando-se de testemunhas importantes, então, eventualmente deve-se requerer o ingresso nos programas de proteção; mas em vista de testemunhas dispensáveis não se faz necessário tal movimentação (p. 56, grifos nossos).

A autora dirá que o magistrado, ou executor da lei, precisa ter o entendimento de não objetivar proteger todas as testemunhas das quais venha a ter conhecimento, uma vez que tais procedimentos estarão disponíveis apenas a uma parcela de colaboradores, pretendendo-se que estes estejam em graves riscos iminentes para que, assim, justifique-se o desvio do aparelhamento policial e o custo que tal programa representa para o Estado (Krapf, 2014). Desse modo, os testemunhos daqueles que ingressam nos programas de proteção agem como mecanismo de controle dos riscos que se apresentam à sociedade, mantendo os índices de insegurança dentro da medida considerada ótima, a partir da sua finalidade: combater a impunidade no Estado. Conforme explicam Hadler e Guareschi (2018, p. 12), "Trata-se de um cálculo mínimo sobre vidas a serem gerenciadas em um plano de investimento entre baixos custos e a menor repercussão possível combinada com a ampliação e execução de práticas" estatais que acabam dando um preço para o testemunho e um jogo de mais-valia entre testemunha e Estado.

Diante das medidas de proteção oferecidas que têm como objetivo retirar os usuários do local de risco proporcionando, além de proteção nas oitivas judiciais, mudança de moradia, pagamento de auxílio financeiro mensal e assistência médica e psicológica, vemos, muitas vezes, os serviços de proteção à testemunha serem oferecidos por juízes, delegados e promotorias do Ministério Público antes mesmo de o sujeito ser arrolado como testemunha. Garante-se, primeiro, a proteção; posteriormente, procede-se à vinculação do indivíduo como testemunha nos processos penais, dados os "benefícios" que pode conceder. Tais fatores constituem uma moeda de troca para que o Estado possa, em contrapartida, exigir o depoimento judicial. Mediante esse modo de funcionamento dos programas de proteção, observa-se o quanto essa política é criada principalmente para dar conta de interesses do próprio Estado, trazendo-se o discurso de defesa dos Direitos Humanos dessa população como argumento para o uso utilitarista dos sujeitos em proteção.

Cabe salientar, porém, que, com isso, não queremos dizer que a política de proteção é falha ao proteger a vida de vítimas e testemunhas, mas esse objetivo é consequência da garantia da prova processual, interesse primordial do Estado no que tange à criação dos programas de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas. Percebe-se, assim, que não se trata tanto da garantia da vida da testemunha, mas da função do seu testemunho para a garantia da prova testemunhal. Os usuários dos programas de proteção tornam-se, então, sujeito e objeto da política, uma vez que sua vida passa a ser regulamentada e gerida pelo Estado e emerge como parte fundamental do processo penal. Nesses programas, as testemunhas agem promovendo ações para elevação do número de encarceramento e aumento dos índices de punibilidade do Poder Judiciário e Ministério Público, os principais interessados no testemunho produzido pelos sujeitos em proteção.

Assim, por intermédio dos programas de proteção, vão sendo definidos o sujeito que fala e aquele que se cala, a partir da valoração realizada pelo Estado, que efetua a indicação dos casos a serem aprovados e seleciona os que devem ser inseridos nos programas de proteção. Não se trata de garantir a vida em si, tampouco é considerada a gravidade da ameaça exercida sobre a testemunha, já que a vida só passa a ser protegida por intermédio do conteúdo de seu testemunho. Garante-se o testemunho, que é produzido como peça processual como foco de investimento primordial dessa política, de modo que a garantia da vida apenas é resguardada após a qualificação do que os sujeitos têm a dizer.

Tendo em vista o exposto, podemos pensar que os programas de proteção bem como diversas outras políticas públicas são permeados por jogos de interesse intrínsecos à sua operacionalidade e, dessa forma, promovem tanto a vida quanto a morte de determinadas parcelas da população, de acordo com o interesse e as ações que o Estado destinará a diferentes políticas públicas. É importante demarcar que, por intermédio dessa racionalidade, entendemos que as políticas são criadas com base em uma relação de interesse por parte do Estado, sendo a população à qual as políticas se destinam, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da política em questão, como sugere Foucault (2017, p. 425): "A população aparece como sujeito de necessidades, de aspirações, mas também como objeto nas mãos do governo".

Interessa-nos, portanto, pensar sobre as formas de governo exercidas sobre os usuários dessa política de proteção em específico, demonstrando esse jogo permanente dos interesses do Estado em relação à política destinada a testemunhas e vítimas inseridas nos programas de proteção. Dito isso, pudemos ampliar o campo de visão acerca da garantia de direitos no momento em que nos permitimos questionar qual o interesse do Estado em garantir a proteção desses sujeitos e quais direitos são efetivamente garantidos por essa política pública.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS PARA CONTINUAR A PENSAR: OU É POR QUILO?: A EXECUÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E O NEOLIBERALISMO

Um dos aspectos relevantes para analisarmos, quando falamos das formas de poder exercidas pelo Estado no governo das vidas que passam a ser protegidas, tem a ver com os mecanismos de proteção dos programas, que agem cerceando uma série de direitos de seus usuários, como aponta Leão (2013):

Caso seja aceita, a testemunha deve se comprometer a obedecer rigorosamente às regras impostas pelo programa, sob pena de desligamento do mesmo a qualquer momento. Reconhecidas pelo programa como "severíssimas", incluem rigorosas formas de comportamento, tais como: 1) disfarces; 2) adoção daquilo que o Programa denomina "história de cobertura" - uma nova história de vida construída para que ela possa justificar sua inserção em um novo espaço social, o que significa para a testemunha a negação da sua própria história; 3) controle de comunicação, ou seja, todo tipo de comunicação é controlado pelo Programa, o que inclui violação de correspondência recebida e enviada pela testemunha; 4) se necessário (segundo a apreciação do programa), mudança de nome completo; 5) controle da vida individual e social da testemunha; 6) corte imediato, afastamento e isolamento de referências e relações socioafetivas da testemunha; 7) limitação do direito de ir e vir, entre outras (p. 97).

Em contrapartida, segundo o Tribunal de Contas da União (2005), o programa prevê, de modo geral, os seguintes benefícios: moradia devidamente mobiliada, pagamento das despesas com serviços de água e luz, alimentação, vestuário, material escolar, medicamentos, serviços médicos e odontológicos, educação, cursos profissionalizantes e acompanhamento psicológico, social e jurídico. São fornecidos, ainda, recursos financeiros no valor de um salário mínimo para a aquisição de alimentos, bem como bolsa de trabalho, geralmente equivalente a um salário mínimo. Porém, além da promessa de uma vida nova ofertada a essas testemunhas e da garantia de sua vida, para que a proteção se efetive, vemos operar uma proteção que atua restringindo uma série de direitos desses sujeitos. O preço pago pela proteção comumente é a testemunha renunciar à sua vida "antiga", a suas relações pessoais, ao convívio comunitário, à autonomia e à atuação no mercado de trabalho formal, entre outras liberdades individuais. Essas restrições dificultam o processo de construção da reinserção social dos usuários do programa, caracterizada como uma importante ferramenta para garantir sua subsistência após seu desligamento. Sob o argumento da necessidade de sigilo, a vinculação com o mercado formal de trabalho, o acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) e a políticas de assistência social e até o registo no Cadastro Nacional de Habilitação podem representar riscos de identificação do local de moradia desses usuários (Tribunal de Contas da União, 2005). Tais restrições vão agindo na vida desses sujeitos, caracterizando uma espécie de clandestinidade de si mesmo, já que, aliada a tudo isso, é necessária também a criação de uma história de vida pregressa, a fim de resguardar o sigilo sob o qual são compelidos a viver.

Vemos que, para a proteção tornar-se efetiva, é preciso que os sujeitos em proteção abdiquem de sua história, vivendo clandestinamente durante o período em que se encontram inseridos no programa. Com isso, percebemos que a existência como usuário de um programa de proteção a vítimas e testemunhas é muito complexa e permeada de uma série de atravessamentos. Isso porque, em troca da garantia de segurança, os vínculos com o mercado de trabalho formal e o acesso à rede de saúde e assistência são tidos como riscos em potencial para a localização dos usuários, além de o estabelecimento de novos vínculos e a possibilidade de autonomia ficarem submetidos aos procedimentos de segurança definidos pelo Estado. Todas essas práticas visam a garantir a integridade física e psicológica dos usuários, de modo que "os fins justifiquem os meios".

Os programas de proteção vão atuar por meio da invisibilidade de seus usuários, pois, ao mesmo tempo em que os protegem de seus algozes, tornam-nos invisíveis como sujeitos, deixando essa população exposta a outros tipos de violência. Assim, teremos uma testemunha sem voz para si: ela não existe como sujeito, sua história é inventada, seu passado é apagado, sua existência é oculta. Ela passa a existir somente mediante o testemunho que dará. Portanto, paradoxalmente, esse sujeito apenas existirá em razão daquilo que tem a dizer, porém sem nada poder dizer sobre si. Eis que, para nós, essa constitui uma das mais violadoras práticas exercidas nesses programas de proteção. E, nesses termos, podemos lançar as questões: quais seriam os critérios que o Estado deveria seguir para inserir uma pessoa em um programa de proteção?

Ousando responder parcialmente a essa questão, parece-nos possível, então, a proposição de uma política instituída sobre a prerrogativa de proteção e defesa da vida de vítimas e testemunhas ameaçadas que não seja executada considerando primordialmente a produção do testemunho e a valoração dos sujeitos com base no valor que o Estado vê nesse testemunho. Afinal, a racionalidade que permanece é a de que não se trata de proteger vidas, mas sim de garantir o testemunho, utilizado como moeda de troca pelo Poder Judiciário. A proteção dos usuários que se inserem nessa política é realizada restringindo direitos e violando, o que mostra a face mais fria e utilitarista do Estado. Desde realocações de moradia de forma drástica como medida de segurança (para outros Estados), acompanhadas de vigilância constante (onde os técnicos dos programas passam a ter a chave da casa dos sujeitos, por exemplo), impedimentos na comunicação (culminando na ruptura de todos os vínculos), até exigências para mudanças identitárias, essa política atua sob sigilo absoluto e, dessa maneira, garante hegemonia de atuação ao Estado, culminando no ocultamento da vida desses sujeitos, que passam a existir apenas em decorrência do testemunho que têm a dar.

Tais práticas convocaram-nos a traçar analogias com o filme Quanto vale ou é por quilo?, que explicita o contexto neoliberal em que as políticas públicas são executadas atualmente. A lógica de mercado utilitarista à qual os sujeitos são submetidos pauta ações que se tornam possíveis e são efetuadas a partir de um objetivo que justifique os meios empregados para tal. Essa justificativa diz de uma sociedade cada vez mais atravessada pelo discurso do medo e da insegurança que, em contrapartida, justifica a criação de políticas de proteção que transformam vidas a serem protegidas em sujeitos cujas vidas se tornam negociáveis. O discurso da proteção é capturado pelo Estado punitivo, que atrela a defesa da vida à relevância da prova testemunhal. Nesse mecanismo, o sujeito da política é remetido a seu testemunho; ao cumprir sua finalidade, pode ser descartado e excluído dos programas de proteção sem que tenham, necessariamente, cessado os riscos à sua vida. Vemos ocorrer uma apropriação do testemunho desses sujeitos pelos operadores jurídicos, que, no ensejo de fazer justiça, transformam esses indivíduos em peças processuais, tendo a sua existência investida mediante a valoração de seus testemunhos. Nessa apropriação do testemunho dos que se inserem nesses programas, veremos os sujeitos sendo produzidos como vidas-mercadorias, revestidas de valor para aqueles que lucram com seus testemunhos, porém descartáveis após o uso.

REFERÊNCIAS

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Texto recebido em 22 de maio de 2020 e aprovado para publicação em 1º de março de 2021.

 

 

* Mestra em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), como bolsista no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
** Pós-doutorado como bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior (CAPES) no Institute of Education - University College of London (UCL), doutora em Educação pela University of Wisconsin - Madison (WISC), professora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da UFRGS, coordenadora do grupo de pesquisa E-politcs, pesquisadora CNPQ 1B.
***Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, como bolsista da CAPES, pela UFRGS, com período sanduíche na University of Westminster, mestra em Psicologia Social pela PUC-RS e pós-graduada na Goldsmiths College em Londres, psicodramatista pelo IDH, professora no Departamento de Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Endereço: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional. Rua Ramiro Barcelos 2600, sala 300C - Rio Branco, Porto Alegre-RS, Brasil. CEP: 90035-003.

 

 

1 A primeira data indica o ano de publicação da obra, e a segunda, a edição consultada pelo autor, a qual somente será pontuada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data de publicação original.
2 O Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) é um movimento organizado da sociedade civil, sem fins lucrativos, democrático, ecumênico, suprapartidário, presente em todo o território brasileiro, em forma de rede, com mais de 400 entidades filiadas. Fundado em 1982, constitui-se hoje na principal articulação nacional de luta e promoção dos direitos humanos (Movimento Nacional de Direitos Humanos, 2020).
3 Considerando o escopo deste artigo, não será abordada diretamente a análise desse programa estadual; assim, para mais informações sobre os modos de execução do Protege-RS, ver Nische (2018).
4 No Rio Grande do Sul, o Decreto Estadual nº 11.314 instituiu o Protege-RS, tendo sua regulamentação implementada pela Lei nº 40.027/2000 e a Lei nº 13.702/2011, que transferiu o programa para a Secretaria Estadual da Justiça e dos Direitos Humanos.
5 O termo Shoah ("devastação, catástrofe") difere de Holocausto ("todo queimado"), termo que implica alguma positividade, de sacrifício para um deus. Conforme Agamben (2008), o uso da palavra Holocausto designa um desrespeito ou insensibilidade aos sobreviventes da guerra.
6 O objetivo do Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH, elaborado pelo Ministério da Justiça é, identificando os principais obstáculos à promoção e proteção dos direitos humanos no Brasil, eleger prioridades e apresentar propostas concretas de caráter administrativo, legislativo e político-cultural que busquem equacionar os mais graves problemas que hoje impossibilitam ou dificultam a sua plena realização (BRASIL, 1996, p. 3).
7 Apoiar a criação, nos Estados, de programas de proteção de vítimas e testemunhas de crimes, expostas a grave e atual perigo em virtude de colaboração ou declarações prestadas em investigação ou processo penal (Brasil, 1996, p. 9).
8 Diretriz 17, Objetivo estratégico I: Acesso da população à informação sobre seus direitos e sobre como garanti-los. (Brasil, 2010, p.59).
9 Sob o Código de Processo Civil, o depoimento de testemunhas também assume alta relevância, mas, no contexto em questão, sob o argumento da impunidade, falamos no contexto penal.

 

 

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