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Psicologia em Revista

versión impresa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.27 no.1 Belo Horizonte ene./abr. 2021

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p126-144 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p126-144

 

Cartografia de uma escuta clínica do trabalho em uma instituição judiciária federal

 

Cartography of a clinical listening of work in a federal judicial institution

 

Cartografía de una escucha clínica del trabajo en una institución judicial federal

 

 

Maria de Lourdes Cordeiro de Araújo Bezerra*; Ana Lúcia Francisco**

 

 


Resumo

Este artigo trata de uma pesquisa-intervenção em clínica do trabalho realizada em uma instituição do Poder Judiciário Federal, com o objetivo de mapear as experiências no campo laboral, a partir do aporte teórico-metodológico da Psicodinâmica do Trabalho articulada com pressupostos da cartografia. O estudo contou com a participação de sete pessoas, todas servidoras do quadro efetivo da instituição, com as quais foram realizadas oito sessões coletivas e produzidos os registros dessas sessões, diários de campo e memoriais. Na análise clínica do trabalho (ACT), constatou-se que as expressões de sofrimento mais recorrentes estão relacionadas ao modelo de gestão, destacando-se como estratégias defensivas a resignação, o distanciamento e a servidão. A transformação do sofrimento torna-se prejudicada, pois, embora o coletivo de participantes obtenha reconhecimento de colegas e da gestão mais próxima, o prazer aparece bem subtraído em seu conjunto, em razão da falta de autonomia e de valorização institucional.

Palavras-chave: Psicodinâmica do trabalho. Clínica do trabalho. Cartografia.


Abstract

This paper is about a research intervention in the clinic of work held in a Federal Judicial establishment, which aim was to map the experiences in the labour field, with the theoretical and methodological support of psychodynamics of work articulated with cartography postulates. Seven people participated of the study, all of them employees of the institution, and eight collective sessions where held. Records of these sessions, field diaries and memorials were produced. The clinic of work analysis has revealed that the most recurring expressions of suffering are related to the management model, and common defensive strategies were resignation, alienation and servitude. Although the participants achieve recognition from colleagues and their closest supervisors, pleasure is trimmed down due to the lack of autonomy and of institutional appreciation. The transformation of suffering is, therefore, damaged.

Keywords: Psychodynamics of work. Clinic of work. Cartography.


Resumen

Este artículo aborda una investigación-intervención en clínica laboral realizada en una institución del Poder Judicial Federal, con el objetivo de mapear las experiencias en el campo laboral a partir del marco teórico-metodológico de la psicodinámica del trabajo articulada con las premisas de la cartografía. El estudio contó con la participación de siete personas, todos funcionarios del cuadro de personal de la institución, con quienes se realizaron ocho sesiones colectivas. También fueron producidos registros de estas sesiones, diarios de campo y memoriales. En el análisis del trabajo clínico (ACT), se verificó que las expresiones más recurrentes de sufrimiento están relacionadas con el modelo de gestión, destacando como estrategias defensivas la resignación, el distanciamiento y la servidumbre. La transformación del sufrimiento se perjudica, pues, aunque el colectivo de participantes obtenga el reconocimiento de sus colegas y de la gestión más cercana, el placer parece sustraerse en su conjunto, debido a la falta de autonomía y de apreciación institucional.

Palabras clave: Psicodinámica del trabajo. Clínica del trabajo. Cartografía.


1. INTRODUÇÃO

As transformações no mundo do trabalho, impulsionadas pela internacionalização da economia e pela supremacia do capital financeiro, em detrimento do capital produtivo, repercutem na escassez do emprego e, consequentemente, na precarização das relações de trabalho. Segundo Dowbor (2017, p. 31), "Um sistema em que o eixo de motivação se limita ao lucro, sem precisar se envolver nos impactos ambientais e sociais, fica preso na sua própria lógica". O autor afirma que os problemas atuais não são decorrentes da falta de recursos financeiros, mas de sua apropriação e uso, pois, em vez de dinamizar o sistema produtivo, o sistema financeiro passou a drená-lo.

As inseguranças decorrentes dessas metamorfoses parecem direcionar grande parcela da população brasileira em busca de uma vaga no serviço público, setor em que a estabilidade é, ainda, garantida. De acordo com o sistema de informação utilizado na instituição em que se deu a pesquisa-intervenção,1 a cada concurso (nos últimos 36 anos, houve seis concursos públicos nessa instituição), ingressaram pessoas com idades variadas, embora com predominância de pessoas mais jovens, das mais diversas áreas de formação, como Jornalismo, Administração, engenharias diversas, Fisioterapia, Psicologia e Odontologia, entre outras, para exercer serviços administrativos e burocráticos.

É importante assinalar, também, que o aumento do quadro efetivo nos diversos órgãos públicos do Judiciário foi possível graças à redemocratização do País, após 21 anos de ditadura civil-militar (de 1964 a 1985), e à consequente renovação das instituições democráticas brasileiras. Além desses aspectos, houve uma completa modernização nos equipamentos de trabalho, em especial no tocante às ferramentas tecnológicas, melhorando substancialmente as condições operacionais de prestação de serviço à sociedade brasileira.

No bojo das mudanças econômicas e administrativas, os modelos de gestão que estimulam a produção individual e a competição chegaram aos órgãos públicos, por meio das reestruturações empreendidas nas últimas décadas. Segundo Lima, Fraga e Oliveira (2016), esses modelos são inspirados no New Public Management (NPM), movimento de reforma mundial do setor público, iniciado na Grã-Bretanha, desde a década de 1980. Com inspiração no NPM, surgiu o processo de reforma do Estado brasileiro, com a criação do Ministério da Administração Federal e da Reforma do Estado (MARE), em 1995, ficando restrito ao Poder Executivo. A reforma do Judiciário só aconteceria com a aprovação da Emenda Constitucional nº 45, em dezembro de 2004, e a consequente criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), instalado em junho de 2005.

Com o CNJ, vieram os modelos de gestão com foco no planejamento estratégico e as ideias, entre outras, como gestão de riscos, gestão do tempo, a concepção de serviço como um negócio, a instituição de metas e o gerenciamento de programas e projetos. Há de se valorizarem os aspectos positivos trazidos pelo CNJ, em razão de seus atos normativos em benefício da sociedade em geral, inclusive da categoria que ingressou no Judiciário por meio de concurso público. Entre essas mudanças, a transparência, o maior acesso à Justiça, o combate ao nepotismo e a modernização da tecnologia, junto a outras providências, representam ganhos significativos para toda a população. Contudo, a despeito de qualquer crítica às questões ideológicas que sustentam os modelos expandidos para a gestão pública, compreende-se que a implantação de medidas com base em experiências de sociedades tão diversas, com outros acessos a bens e serviços, não pode prescindir de um estudo de impacto criterioso, que considere os aspectos relativos às condições sociais, políticas e culturais de um povo.

É nesse contexto que se insere este estudo. Ante o aumento expressivo em seus quadros efetivos, a partir da década de 1980, e as mudanças no mundo do trabalho com repercussões no Judiciário, os tribunais, de um modo geral, precisam instituir formas de gestão que deem conta das demandas da sociedade de modo mais célere, mas também uma política de atenção à saúde para a classe trabalhadora dessa esfera do Poder Público.

Nessa direção, um grupo de profissionais que atua na área da saúde do Tribunal em comento iniciou, em 2014, a escuta clínica em coletivos de trabalho. Essa escuta se baseia no método da Psicodinâmica do Trabalho, criado por Dejours (2011b), adotando a sistematização proposta por Mendes e Araújo (2012), com algumas adaptações.

Os dados produzidos na pesquisa-intervenção, ora em exposição, são oriundos de um recorte desse trabalho e dizem respeito a uma escuta clínica realizada no ano de 2017. O objetivo do estudo foi o de mapear as experiências no campo laboral, de modo a compreender as relações entre a organização do trabalho, os sofrimentos produzidos e as estratégias defensivas utilizadas para dar conta desse sofrimento. Especificamente, buscou-se descrever aspectos da organização do trabalho na instituição relacionados à gestão, identificar as manifestações e os destinos do sofrimento no trabalho, afora as estratégias defensivas utilizadas para confrontar esse sofrimento. Nesse estudo específico, além das referências já citadas, utilizaram-se de pressupostos da Cartografia extraídos das Pistas do método da Cartografia, segundo Passos, Kastrup e Escóssia (2014) e Passos, Kastrup e Tedesco (2015).

Por outro lado, em investigação realizada na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD), no Periódico Capes e na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), bases de dados referenciadas pelo mundo acadêmico, não se conseguiu encontrar pesquisas ocorridas no Judiciário que tratam de uma experiência em Clínica Psicodinâmica do Trabalho articulada com pressupostos da Cartografia, mesmo que não se estabelecesse limite temporal. Entretanto, há quatro estudos realizados no âmbito do Judiciário com os quais se pode dialogar, pois, embora não abordem a Cartografia, tratam exatamente de experiências clínicas com base na Psicodinâmica do Trabalho, trazendo na estruturação e organização da pesquisa alguns dados similares àqueles produzidos neste estudo, os quais serão reproduzidos em parte, especialmente quanto à organização do trabalho, sofrimento e estratégias defensivas utilizadas.

Optou-se por restringir a revisão da literatura às experiências em clínica do trabalho no Judiciário, por saber que as instituições que compõem esse universo trazem, de uma maneira geral, aspectos relacionados à organização do trabalho bem semelhantes, por exemplo, uma estrutura bem verticalizada com váriosníveis de gestão,2 como é o caso dos órgãos de Justiça Federal. Na instituição em comento, mesmo nas unidades desenhadas de modo diferente (submetidas a menos níveis de gestão), não há indícios de que essa condição produza mudanças significativas, em razão de ser a hierarquia um traço forte da cultura institucional e, desse modo, parece estar internalizada por todas as pessoas que lá trabalham.

Diante dessa condição que espelha alguma semelhança entre as diversas instituições de Justiça, viu-se, em relação à "organização do trabalho", que Moura (2013, p. 6) a apontou como "rigidamente hierárquica, com pouca autonomia para o trabalhador"; Magnus (2015, p. 12) referiu ser a instituição "marcada pelo prescrito das leis, pela antiguidade e hierarquia na subjetividade dos trabalhadores"; em uma terceira, Gomes, Lima e Mendes (2011, item 3.3) abordaram o ritmo intenso de trabalho, a sobrecarga, a ausência de critérios para a ocupação de função gerencial, além de problemas na comunicação; na quarta pesquisa, Garcia (2011, p. 6) revelou que "a organização do trabalho no Judiciário amazonense tem estrutura herdada das relações coloniais de trabalho", além de ressaltar, também, a sobrecarga.

Os "sofrimentos" revelados vão desde a sobrecarga emocional relacionada ao trabalho, passando pelas dificuldades de relacionamento com pares, sensação de injustiça e de impotência, além de falta de reconhecimento, esta última referida em três dessas pesquisas. Em sua pesquisa, Moura (2013, p. 6) menciona a existência de sofrimento patogênico, manifesto por meio de "tensão, fadiga, dores de cabeça e sintomas de burnout, como a despersonalização e o embrutecimento diante dos problemas apresentados pelos usuários".

No tocante às "estratégias de defesa", Garcia (2011) falou da racionalização, das fofocas e ameaças a colegas ou chefes, além do isolamento; Gomes, Lima e Mendes (2011) mencionaram também o isolamento acrescido do individualismo; Moura (2013, p. 6) se referiu à passividade e à resignação; já Magnus (2015, p. 12) listou a racionalização, a negação, o distanciamento, a ironia e a hiperaceleração. Nas conclusões, de modo geral, os estudos apontam para a importância do espaço de palavra propiciado pela clínica do trabalho, como se pode ver, por exemplo, na afirmação de Gomes, Lima e Mendes (2011): "Considera-se que a experiência favoreceu a circulação da palavra no espaço de discussão e, desta forma, contribuiu para o engajamento e a expansão da subjetividade".

Entre essas pesquisas, duas delas foram realizadas com categorias que detêm maior espaço de autonomia (uma com pessoas que ocupam cargo de gestão e outra com pessoas que realizam atividade judicante). Viu-se, portanto, que esse é um aspecto bem importante como moderador de sofrimento e como indicativo de saúde, sendo este último referido por Magnus (2015) na pesquisa realizada com pessoas que exercem cargos de magistratura.

Como já dito, há correspondência entre alguns dados expostos nas pesquisas citadas e aqueles produzidos neste estudo, conforme se poderá observar na Análise Clínica do Trabalho (ACT) apresentada mais à frente e nas reflexões contidas nas considerações finais. Outra conclusão a que se chega de imediato é que os resultados gerais dessas pesquisas apontam para a necessidade de mudança no modelo de gestão no âmbito do Judiciário,além de evidenciar a importância do espaço de fala conferido pela clínica do trabalho, como lugar de potência que pode propiciar novas destinações para o sofrimento no trabalho.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA

A Psicodinâmica do Trabalho, concebida por Dejours (2011a), compreende um corpo teórico-metodológico que entende as psicopatologias do trabalho como decorrentes, sobretudo, das relações intersubjetivas mediadas pela organização do trabalho. Há pessoas, contudo, que escapam do adoecimento por utilizar estratégias de defesa, individuais ou coletivas, que lhes permitem continuar trabalhando sem adoecer. Especialmente quando são coletivas, fruto da cooperação de um grupo que vivencia os mesmos constrangimentos no trabalho, constituem-se um valioso recurso de proteção à saúde.

Entre outras ideias igualmente importantes para a Psicodinâmica do Trabalho, estão as concepções de trabalho prescrito e trabalho real, trazidas da ergonomia. O prescrito, como o próprio nome indica, é aquele previsível (normatizado ou não), mas que nunca alcança a totalidade do real do trabalho; aquilo que convoca o engajamento, o uso da inteligência prática, do saber fazer que é único, oriundo de cada singularidade (Dejours, 2011c).

Feita essa distinção, Dejours entende que não há como se avaliar objetivamente o trabalho, uma vez que, para ele, trabalhar é lidar com o real, e esse real não pode ser alcançado pela observação do resultado de um produto ou serviço, ou mesmo pelo tempo supostamente gasto para obter esse resultado. Aquilo que expõe o fazer de cada pessoa trabalhadora, em sua singularidade, não está acessível ao mundo visível, pois diz respeito à subjetividade, ao engajamento, ao desejo, ao dispêndio de esforço para a realização do trabalho, entre outros aspectos.

Outra acepção de fundamental importância para o criador da Psicodinâmica do Trabalho é a ideia de que todo trabalho gera sofrimento, pois trabalhar é, necessariamente, lidar com o fracasso, com o inesperado, com aquilo que não está prescrito (Dejours, 2011a). Contudo, a destinação desse sofrimento pode produzir saúde ou doença. Quando se consegue resistir, enquanto se procuram as soluções criativas para lidar com aquilo que se desconhece e, sobretudo, quando há reconhecimento por isso, transforma-se o sofrimento em prazer.Do contrário, quando não se tem essas condições no ambiente de trabalho, pode se fazer uso de defesas individuais ou coletivas. Se essas defesas falham, o sofrimento se torna patogênico, levando ao adoecimento psíquico, moderado ou grave.

A destinação do sofrimento no trabalho tem, pois, relação direta com a organização do trabalho, ou seja, com a maneira como as tarefas são definidas, distribuídas em suas dimensões prescritas de tempo, ritmo e atribuições, compreendendo, ainda, a possibilidade de uso da inteligência prática e do reconhecimento, ou seja, da retribuição que se espera pela contribuição no trabalho; uma retribuição segundo os estudos de Dejours (2011a, p. 85), "fundamentalmente de natureza simbólica".

No que concerne à Cartografia, fundamentada nas ideias de Deleuze e Guattari (1995), trata-se de uma abordagem que demarca a possibilidade de construir um caminho para a pesquisa e produção de conhecimento, nas Ciências Humanas e Sociais, com total abertura para as contribuições oriundas da heterogeneidade dos saberes presentes nos campos de força que constituem todo e qualquer universo de pesquisa.

Nessa direção, algumas pistas encontradas na obra Pistas do método da Cartografia, já referida, tiveram mais força no percurso da pesquisa-intervenção, por melhor se articularem com os pressupostos da Psicodinâmica do Trabalho. Em princípio, destaca-se aquela que trata da "Cartografia como método de pesquisa-intervenção", propondo "não mais um caminhar para alcançar metas prefixadas(metá-hódos), mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas",conforme Passos e Barros (2015, p. 17). Trata-se do hódos-metá da pesquisa e, nessa perspectiva, não há separação entre a realização e o conhecimento(conhece-se fazendo, e se faz conhecendo).

A afirmação "cartografar é acompanhar processos", de Barros e Kastrup (2015, p. 52), anuncia mais uma pista utilizada na pesquisa. Baseadas nesse enunciado, as autoras evidenciam que, ao chegar ao campo, encontram-se processos em andamento, e isso exige uma disposição para a integração, para vivenciar o estranhamento ante o que é novo, atitude que ajudará a mapear o campo de forças, atentando para as conexões do objeto e para as modulações e movimentações constantes desse campo.

As pistas seguintes foram denominadas "pista do comum", "pista da formação" e "pista da confiança". Na primeira, Kastrup e Passos (2014, p. 15) trazem a seguinte afirmação: "Cartografar é traçar um plano comum" e, com esse enunciado, defendem que, ao se transitar por um território desconhecido, faz-se necessário traçar um plano comum entre "pesquisadores e pesquisados", considerando as singularidades, ou seja, a heterogeneidade do campo a ser investigado, com vistas a uma construção coletiva e fecunda, em busca de novas realidades.

Pozzana (2014, p. 42), por sua vez, anuncia que "a formação do cartógrafo é o mundo: corporificação e afetabilidade". A autora defende a ideia de "pensar a formação como um movimento de corporificação do conhecimento" (p. 52). Não se trata apenas de uma adesão teórica, mas de uma produção em "regime de afetabilidade" (p. 53). Há um fundamento teórico que acompanha e dialoga com a experiência, mas o resultado desse diálogo se circunscreve no corpo (lugar de corporificação da experiência).

A última pista destacada trata do "ethos da confiança na pesquisa cartográfica", enunciado por Sade, Ferraz e Rocha (2014, p. 66). Diz respeito à construção de vínculos entre a equipe de pesquisa e a comunidade pesquisada, e remete à produção de sentido de forma partilhada por toda a coletividade envolvida com a pesquisa, mesmo ante as concepções e os interesses peculiares de cada grupo. O ethos de confiança se produz e se sustenta na construção de "um plano de experiência compartilhada" (Sade, Ferraz, & Rocha, 2014, p. 68). Aposta-se na ideia de que a confiança, fruto dessa experiência, concorre para o "aumento da potência de agir" (p. 69).

3. METODOLOGIA

A pesquisa-intervenção adotou uma metodologia de orientação qualitativa, utilizando como fundamento teórico-metodológico a Psicodinâmica do Trabalho articulada com pressupostos da Cartografia, conforme já anunciado. Da Cartografia procurou-se assimilar especialmente os principais pressupostos e as pistas já referidas, desde os primeiros contatos com o demandante até o trabalho de campo, com o grupo de participantes. Em relação à Psicodinâmica do Trabalho, utilizou-se a sistematização proposta por Mendes e Araújo (2012), permitindo-se, contudo, soluções adaptativas em vista de questões circunstanciais, técnicas e institucionais. Tal sistematização se refere tanto ao trabalho de pesquisa-intervenção no campo como ao tratamento dos dados produzidos, apresentando como método de compreensão desses dados a ACT.

A primeira parte do trabalho, constituída de "dez condições interdependentes, dinâmicas, não cronológicas e evolutivas para a condução da clínica psicodinâmica" (Mendes, & Araújo, 2012, p. 52), integra as fases da pré-pesquisa e da pesquisa propriamente dita. Na pré-pesquisa, estão a organização da pesquisa e a construção e análise da demanda (pp. 52-55); já a pesquisa reúne instituição das regras de conduta dos coletivos de pesquisa e de clínicos, constituição do espaço da fala e da escuta, estruturação do memorial, restituição e deliberação; diário de campo e registros de dados; supervisão; apresentação do relatório e avaliação(pp. 55-62). Entre os instrumentos utilizados pela Psicodinâmica do Trabalho (diário de campo, registro das sessões e memoriais), o diário de campo é também usado pela Cartografia. Nesta, orienta-se fazer o diário desde as primeiras visitas à unidade demandante, pois se pode vivenciar experiências marcantes para a compreensão e o desenvolvimento do trabalho, as quais correm o risco de se perder da memória ante os novos acontecimentos.

É importante enfatizar que as condições acima mencionadas não obedecem a uma ordem cronológica, conforme evidenciam as autoras. Ademais, uma pesquisa que traz também a Cartografia em seus fundamentos não segue um prescrito de forma rígida (um metá-hódos), pois não há linearidade no campo. Dito de outro modo, uma pesquisa, como qualquer outro fazer, é sempre impactada pelo real do trabalho, exigindo abertura da equipe pesquisadora para as soluções criativas que esse real impõe.

4. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

De antemão, é importante explicitar que o projeto de pesquisa-intervenção, referente a essa experiência específica, foi encaminhado para a Plataforma Brasil e, após aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Católica de Pernambuco, iniciou-se o trabalho, procurando adotar, desde os primeiros contatos, um comportamento cartográfico, mapeando tudo o que se considerasse significativo nos encontros e reuniões preliminares com o demandante e sua equipe auxiliar. Inclusive, desde então, elaborando os diários de campo.

Como a pesquisa-intervenção ocorreu em razão de uma demanda da gestão, houve empenho em traduzi-la para todo o corpo funcional da unidade sob gestão do demandante, explicando sobre os riscos ante expectativas de soluções urgentes. Para tanto, todas as subunidades foram percorridas durante as visitas preliminares ao demandante e, noutro momento, fez-se uma explanação do trabalho para toda a equipe servidora. Após a explanação, abriram-se as inscrições para a participação do trabalho em caráter voluntário.

A amostra foi extraída de um total de 49 inscritos, levando-se em conta critérios de inclusão e de exclusão. Os participantes deveriam pertencer à subunidade com maior número de inscritos, excetuando-se aquela em que se encontrava vinculada uma das clínicas, com o intuito de evitar maiores implicações. Assim, reuniu-se um quantitativo de sete participantes, dois homens e cinco mulheres, com idade entre 27 e 50 anos, e tempo de serviço variando entre 8 e 21 anos, com quem foram realizadas as oito sessões coletivas.

Antes de iniciar as escutas, houve quatro reuniões com esse grupo de participantes, no intuito de informar sobre os objetivos da pesquisa, de definir coletivamente determinadas condições para o desenvolvimento do trabalho e de obter as anuências, por meio do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE); ocasião em que se procurou dirimir dúvidas, explicando, ainda, sobre a possibilidade de desistirem da participação a qualquer momento.

Desde essa fase, o coletivo de participantes teve um papel bem atuante e cooperativo, opinando e deliberando sobre as questões importantes para a realização da pesquisa, fomentando-se, assim, o ethos de confiança e buscando favorecer a construção de um plano comum, em consonância com as pistas do método da Cartografia mencionadas. Ainda nessa etapa, contactou-se com a profissional especialista em Psicodinâmica do Trabalho para fazer a supervisão, de modo presencial ou a distância, on-line. Essas atividades até então descritas fazem parte da fase correspondente à pré-pesquisa, na Psicodinâmica do Trabalho.

As sessões aconteceram no período de março a junho de 2017, com duração de uma hora e meia a duas horas, cada encontro, e ocorreram em horário de trabalho, com periodicidade semanal (as seis primeiras) e em uma sala de treinamento da instituição, sem possibilidades de invasão ou escuta de ruídos externos. Houve um espaçamento maior para a realização das duas últimas sessões, em razão de questões circunstanciais que sempre atravessam o real do trabalho. Na primeira sessão, construíram-se, coletivamente, as regras de conduta que permearam todo o trabalho, enfatizando-se sobre a necessidade de se manter sigilo quanto às exposições e de se respeitarem as formas singulares de expressão, garantindo, também, por parte das clínicas, o sigilo sobre a identidade das pessoas participantes. Iniciou-se a primeira escuta clínica com a seguinte pergunta: como é o trabalho de vocês na unidade?

Ao terminar cada sessão, as clínicas elaboravam seus diários de campo e se reuniam em supervisão para, em seguida, se produzir o memorial. Esses encontros de supervisão ocorreram on-line,com exceção de apenas um deles, realizado presencialmente. O registro das sessões, por meio de anotações, ficou sob a responsabilidade de uma das clínicas, acrescido de notas registradas pelas demais. As leituras dos memoriais (construídos com base nas falas da sessão anterior e da compreensão das clínicas) ocorreram sempre no início das sessões (a partir da segunda sessão), ocasião em que se procurava aproveitar a oportunidade para explorar os conteúdos emergentes e trabalhar as defesas.

É importante ressaltar, ainda, que se procedeu à análise da implicação durante todo o trabalho, condição indispensável a uma pesquisa que se fundamenta, também, na Cartografia, sobretudo em razão dos vínculos empregatícios de todas que constituíram o coletivo de clínicas com a instituição; situação que as colocava, de algum modo, sujeitas a certas condições da organização do trabalho que afetavam o coletivo de participantes.

5. ANÁLISE DOS DADOS

Na ACT, procurou-se examinar os conteúdos produzidos na pesquisa, de modo a investigar os possíveis sentidos dos discursos e dos movimentos do grupo para além dos ditos, captados pelo coletivo de clínicas. Os instrumentos utilizados para proceder à análise foram os registros das sessões, os diários de campo e os memoriais.

Essa análise se constitui de três etapas, conforme a sistematização proposta por Mendes e Araújo (2012, pp. 62-64): análise dos dispositivos clínicos, análise da Psicodinâmica do Trabalho e análise da mobilização do coletivo de trabalho. A análise da Psicodinâmica do Trabalho, por sua vez, se subdivide em três eixos: I – organização do trabalho prescrito e o real do trabalho; II – mobilização subjetiva; e III – sofrimento, defesas e patologias. Cada um desses eixos contém vários tópicos, e alguns destes devem estar relacionados a questões específicas de cada organização a ser pesquisada.

6. ANÁLISE CLÍNICA DO TRABALHO

6.1. ANÁLISE DOS DISPOSITIVOS CLÍNICOS

Viu-se, inicialmente, que os discursos das pessoas participantes convergiam para reclamações em relação à alta gestão. Os temas e as queixas se repetiam nas sessões e eram apropriados pelo coletivo, fazendo-o compreender que o sofrimento era compartilhado. Procurou-se intervir, buscando entender e lançar luz ao que estaria por trás da queixa, ou seja, a demanda, como também explorando as metáforas, os risos e os silêncios, que pareciam anunciar algo. Desse modo, as intervenções possibilitavam a apropriação dos sentimentos e o acesso ao real significado do sofrimento, situações em que eram possíveis as deliberações e os novos acordos para lidar com os desconfortos do trabalho. As leituras dos memoriais também propiciaram ricos momentos de discussão e de elaborações importantes para o grupo.

Os laços afetivos já existentes no coletivo que constituiu a amostra, e fomentados durante a escuta clínica, foram um facilitador. O grupo de participantes parecia sentir o ambiente seguro, o que contribuiu para os processos de simbolização e possibilitou a ressignificação de vivências incômodas. Assim, pôde-se inferir que o manejo da clínica favoreceu as discussões sobre as dificuldades vivenciadas e a busca de saídas mais coletivas para lidar com essas dificuldades, uma vez que, em certos momentos, se conseguiu sair da defesa individual e pensar em possibilidades de enfrentamento de forma criativa e coletiva.

6.2. ANÁLISE DA PSICODINÂMICA DO TRABALHO

6.2.1. ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PRESCRITO E O REAL DO TRABALHO

O coletivo de participantes atendia a pedidos de diversas unidades do Tribunal, em uma situação que lhe favorecia quanto à possibilidade de desenvolver algo mais criativo, mesmo em uma instituição burocrática. A divisão do trabalho pareceu satisfatória nesse grupo, contudo se reclamou do atropelamento sistemático da alta gestão. Mencionou-se que, muitas vezes, "é preciso atender a pedidos que não foram incluídos no planejamento da unidade" e que isso desorganiza e sobrecarrega a equipe, acarretando excedente de horas trabalhadas que vai para um banco de horas. Falou-se sobre a dificuldade de compensar as horas excedentes, em razão da grande demanda de serviço e de uma norma muita rígida para gerir esse banco de horas: "tem pessoas que folgam para não perder essas horas, mas, nessas ocasiões, levam trabalho para fazer em casa".

Essa situação revela uma contradição entre a prescrição normativa e o real do trabalho. De acordo com as narrativas, a própria instituição atropela o planejamento da unidade que, para atendê-la, precisa exceder a jornada de trabalho. Computado o excedente no banco de horas, a norma institui o período em que poderá ser usado, mas não se consegue usar no tempo instituído porque a demanda de serviço não permite e, assim, cria-se um círculo vicioso, resultando em uma sobrecarga de trabalho sem uma contrapartida institucional. Constatou-se que a situação interfere nos tempos e ritmos para a execução das tarefas, pois os "pedidos" intempestivos vêm com prazos exíguos para a execução, levando àaceleração do ritmo de trabalho.

Quanto às relações socioprofissionais com colegas e ocupantes de função de gestão mais próxima, pareceram satisfatórias, com laços afetivos bem constituídos. As queixas eram sempre dirigidas à alta gestão, por não sentirem reconhecimento ante seus esforços.

De acordo com as narrativas, o estilo de gestão que prevalece na instituição é o individualista, predominantemente vertical. Em especial no que se refere à ausência de autonomia para definir as prioridades da unidade e à falta de participação nas decisões gerenciais que lhes afetam. Disseram que, embora consigam levar suas reivindicações às gestões mais próximas, estas parecem não chegar à alta gestão ou, se chegam, não produzem eco. Revelaram passar por grande estresse quando se tomam medidas que atingem toda a instituição, sem escutar as unidades impactadas, pois podem colocar em risco as atividades dessas unidades e arranhar imagens conquistadas com muito esforço.

6.2.2. MOBILIZAÇÃO SUBJETIVA

Compreendeu-se que a possibilidade de desenvolvimento de um trabalho mais criativo, aliado ao incentivo das gestões mais próximas, possibilitava ao coletivo de participantes ouso da inteligência prática; já gratidão expressa por colegas, em razão de algum trabalho desenvolvido, dava-lhe um grande sentimento de utilidade.

Pôde-se observar, ainda, a presença do sofrimento criativo, uma vez que, ante o compartilhamento dos desconfortos e pressões do trabalho, surgiram soluções criativas que podem favorecer a saúde, visto que possibilitam o reconhecimento das necessidades e limites de cada coletivo. Entre as soluções propostas, sugeriram fazer uma atividade de integração de modo que todas as unidades do Tribunal (com suas subdivisões) conhecessem o trabalho umas das outras. Alegaram que, dessa forma, a alta gestão e as demais pessoas servidoras da instituição poderiam entender a necessidade de seguir o planejamento anual e, assim, valorizar todas as atividades, de forma a repercutir na cultura da instituição.

Quanto aos espaços de discussão internos, viu-se que a equipe participante os mantém de modo a auxiliá-la nos enfrentamentos necessários, ainda que não se constitua uma prática rotineira nem propicie o fomento para ações de mudanças significativas no ambiente de trabalho, ao que parece. O clima de cooperação construído na convivência de muitos anos se traduz na afirmação de que sua unidade de trabalho "é um oásis no Tribunal".

Conclui-se esse eixo de análise, enfatizando a existência de uma mobilização subjetiva no coletivo de pesquisa, oriunda da identificação com o trabalho, da possibilidade de uso da inteligência prática e do clima de cooperação existente na unidade. O reconhecimento entre colegas da própria unidade e de outras, além das gestões mais próximas, é outro aspecto que mobiliza e contribui para a transformação do sofrimento em prazer, mesmo que apenas em alguma medida, diante dos atravessamentos institucionais.

6.2.3. SOFRIMENTO, DEFESAS E PATOLOGIAS

As causas de sofrimento mais recorrentes expressas pelo coletivo de participantes estão diretamente relacionadas à forma de gestão individualista. Entre tantas situações que caracterizam esse modo de gestão, referiram-se ao excesso de apego às normas; à falta de autonomia para fazer valer o planejamento das açõesdevidamente validado pela instituição; à mudança nos cargos de gestão de forma abrupta, sem preparação para quem deixa ou assume o cargo; à vulnerabilidade desses cargos, à disposição da presidência da Casa.

Ao discutir sobre esses temas, que revelam aspectos importantes da gestão institucional, expressaram angústia, insatisfação e indignação, diante do estresse e da sobrecarga que essas situações (todas relacionadas à organização do trabalho) acabam gerando. Contudo, a coesão do grupo e os laços afetivos bem consolidados operam como um moderador de sofrimento importante, possivelmente evitando somatizações mais agudas.

Com relação aos recursos defensivos, falaram das estratégias que utilizam para lidar com o sofrimento no trabalho. Algumas pela via da espiritualidade, oferecendo o sofrimento como redenção (prática de fundo cristã) ou se desapegando das causas do sofrimento, como ensina o budismo; outras estratégias mencionadas foram as discussões com colegas sobre o que lhes fazem sofrer e a busca de abrigo nas relações com familiares e com pessoas amigas de fora do Tribunal.

Entre as estratégias de defesa, estão a resignação, o distanciamento ou fuga da realidade, o investimento em relações fora do Tribunal, todas estas de cunho individual. A resignação aparece, além da prática extraída da fé cristã, ante a necessidade de reafirmar o rigor no cumprimento das normas. Torna-se, portanto, uma defesa construída mediante o sentimento de impotência que impede esse coletivo, em certa medida, de atuar como agente de mudança. Já o distanciamento se revela quando alguém diz que gosta do seu trabalho e que o desenvolve da melhor maneira possível, mas, depois que o entrega, desapega-se dele, ou seja, não se preocupa com sua destinação.

Como estratégia coletiva, destaca-se a servidão. Extrapolar a jornada diária para dar conta do que fora demandado é uma experiência comum, mesmo diante da constatação de que a demanda não faz parte do planejamento da unidade e da dificuldade de gozar o excedente de horas trabalhadas. Assim, a servidão tem uma função adaptativa, impedindo que se possa atribuir um maior significado ao trabalho. Outra estratégia coletiva remete à ação de compartilhamento dos desconfortos e angústias sobre as situações e causas dos sofrimentos no trabalho. Constitui-se como uma defesa, visto que esse partilhar traz algum alívio às aflições vivenciadas ou mesmo ajuda na busca de saídas para minorar o sofrimento, porém sem resultar em proposições que tragam mudanças significativas nos contextos de trabalho.

Importante ressaltar, ainda, que, ao discutir sobre as estratégias para lidar com o sofrimento no trabalho, uma das pessoas participantes se voltou para a experiência de o coletivo estar sendo escutado e constatou ser uma grande oportunidade de identificar que o sofrimento era algo comum. Lembrou que poderia se criar uma estratégia para lidar com o sofrimento conjuntamente e fazer frente às injustiças e decisões arbitrárias. Pediu que se pensassem possibilidades de ação concreta, ampliando o debate com as demais pessoas da unidade que não participavam da pesquisa. Na sessão seguinte, surgiu a ideia de formar uma comissão que pudesse representar a categoria servidora da instituição, para fazer interface com a alta gestão, no intuito de discutir os temas que a afetasse (a categoria).

6.3. ANÁLISE DA MOBILIZAÇÃO DO COLETIVO DE TRABALHO

Houve engajamento e presença efetiva nos encontros. A solidariedade existente no grupo facilitou as discussões, de modo que os debates envolveram todo o coletivo indistintamente. Nesse sentido, pode-se dizer que a participação foi bem homogênea, ante a heterogeneidade do grupo. O clima de confiança já existente, e fomentado nas sessões, favoreceu a liberdade de expressão, permitindo a discussão sobre todo o tipo de sofrimento vivido no trabalho, mesmo diante de visões bem distintas em relação a alguns aspectos.

Essa ambiência com relações de afeto bem constituídas e muita confiança assegurava ao coletivo de pesquisa um lugar de pertencimento, facilitando as elaborações e o surgimento de deliberações importantes que podem favorecer às demais pessoas servidoras da instituição, por criar possibilidades para movimentos de passagem para além do grupo. Nessa direção, pôde-se acompanhar o desmonte de defesas individuais e a construção de estratégias defensivas mais coletivas para lidar com as questões que provocam sofrimento no trabalho.

Por outro lado, a mobilização dos participantes se revelou prejudicada, ao se discutir sobre questões que esbarram em medidas institucionais de impacto. Especialmente, segundo as narrativas, por serem adotadas sem escutar a coletividade e, portanto, sem um planejamento que considere o prazo necessário e o número de pessoas disponível para dar conta dessas medidas. Sentem-se, por conseguinte, impotentes para lidar com essas questões.

Nesse contexto, impõe-se à clínica do trabalho em alusão nesta pesquisa uma condição que a limita de alguma forma (motivo de questionamentos e inquietações internas). Trata-se de uma iniciativa de servidoras da própria instituição e, ante essa particularidade, cabe perguntar: como se situar no lugar de promoção de um campo potencial de autonomia e criatividade que pressupõe rupturas, deslocamentos nessas circunstâncias? Como essas servidoras podem se posicionar em uma organização burocrática e hierárquica, fortemente marcada por um modelo de gestão individualista, em consonância com a natureza emancipatória, própria da clínica do trabalho?

Contudo, mesmo diante do grande desafio que se coloca para a equipe responsável pela iniciativa, aposta-se no crescimento da clínica quando se vê, por exemplo, que, apesar do sentimento de impotência expresso, propõe-se a criação de uma comissão representativa da coletividade trabalhadora com poderes para dialogar com a alta gestão. Tal deliberação é reveladora de como a composição de forças, nos espaços de diálogo conferidos pela clínica do trabalho, pode mobilizar o coletivo na busca de soluções criativas para minorar seus sofrimentos no trabalho. Ademais, ante a peculiaridade aqui discutida, a análise da implicação é condição para a existência da clínica, conforme já mencionado, além da discussão sobre os processos de identificação na supervisão (recursos essenciais no intuito de minorar os efeitos dessa implicação).

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A articulação da Psicodinâmica do Trabalho com a Cartografia apontou novas possibilidades compreensivas para a clínica do trabalho. O fomento da solidariedade nos coletivos de trabalho, a partir dessa perspectiva, contribui para a formação de redes, podendo produzir movimentos instituintes em contraposição àqueles instituídos pela organização.

Dito isso, entende-se importante retomar algumas questões. Em primeiro lugar, no que diz respeito à relevância do espaço de palavra instituído no grupo, durante as sessões. Além da compreensão de que o sofrimento era algo comum, partilhar saberes e opiniões oriundos de formas tão diversas de estar no mundo fortaleceu a equipe, visto que se pôde compreender as diferenças expostas e, com essas diferenças, pensar possibilidades de saídas coletivas para os impasses institucionais.

Já em relação aos dados similares produzidos entre a pesquisa em comento e as experiências em clínica do trabalho no Judiciário anteriormente abordadas, sobressaíram a "hierarquia", a "sobrecarga de trabalho" e a "falta de reconhecimento", esta última referida por três dos quatro estudos citados, além de reiteradamente abordada pelo coletivo de participantes tantas vezes citado. Diante desses dados, reafirma-se a necessidade urgente de os órgãos do Judiciário repensarem seus modelos de gestão. E não basta a intenção, pois a mudança envolve aprendizado (corporificação).

Dito de outro modo, a situação exige abertura do Judiciário, pois se trata de uma esfera do Poder Público que comporta organizações muito apegadas ao prescrito das normas, como observado em algumas narrativas aqui expostas. Para tanto, precisa-se de reflexão crítica para empreender as mudanças necessárias nas instituições judiciárias. E como afirma Francisco (2017, p. 43), "É imperioso que essa reflexão crítica se mantenha ao longo de todo o processo de transformação, inacabado por contingência que lhe é própria".

Por fim, é imprescindível abordar uma questão atual que impacta toda a classe trabalhadora brasileira (pública e privada). Trata-se dos rumos políticos e econômicos do País nos últimos tempos e suas consequências, em razão das mudanças já efetuadas pela reforma trabalhista e das demais já bem encaminhadas pelo grupo que assumiu a presidência em 2019. Ante as expectativas, o espaço clínico nos diferentes coletivos do campo laboral, ao colocar exatamente o trabalho em análise, para além de propiciar a discussão sobre as questões visíveis e invisíveis que o circundam (o real do trabalho), constitui-se como um lugar de potência ético-política, podendo fortalecer os movimentos de resistência das múltiplas categorias e contribuir para produções mais fecundas em busca de novas possibilidades de existência.

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Texto recebido em 28 de janeiro de 2019 e aprovado para publicação em 2 de março de 2020.

 

 

* Doutoranda em Psicologia Clínica na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), vinculada à linha de pesquisa Práticas Psicológicas Clínicas e Demandas Sociais Contemporâneas e ao Laboratório de Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial e Psicossocial (Laclifep), especialista em Psicologia Clínica e da Organização pelo Libertas Clínica-Escola, psicóloga, psicoterapeuta, servidora pública de uma instituição do Judiciário Federal. Endereço: Universidade Católica de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica. Rua do Príncipe, 526 - Boa Vista, Recife-PE, Brasil. CEP: 50060-110. E-mail: marialu.cordeiro07@gmail.com.
** Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC São Paulo) e mestra em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), psicóloga, psicoterapeuta, professora titular e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Unicap, vinculada à linha de pesquisa Práticas Psicológicas Clínicas e Demandas Sociais Contemporâneas e ao Laboratório de Psicologia Clínica Fenomenológica Existencial e Psicossocial (Laclifep). Desenvolve pesquisas e orienta dissertações e teses dirigidas ao estudo da teoria e da prática da Psicologia Clínica em diferentes situações e contextos. Endereço: Universidade Católica de Pernambuco, Centro de Teologia e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia. Rua do Príncipe, 526 - Boa Vista, Recife-PE, Brasil. CEP: 50060-110. E-mail: ana.francisco@terra.com.br.

 

 

1 Uma das autoras do artigo é servidora (atualmente aposentada) da instituição em que ocorreu a pesquisa.
2 Alguns tribunais (TRT, TRF e TRE) têm, em seus sítios, os organogramas da instituição, bastando para isso entrar em suas páginas e atentar para as estruturas das secretarias, por exemplo. Não serão indicados aqui, para não priorizar um tribunal em detrimento de outro, já que são muitos, mas são de fácil acesso pela internet.

 

 

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