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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.27 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2021

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p165-184 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p165-184

 

Atendimentos em saúde na perspectiva de transexuais

 

Transsexual's perspective on health care

 

Atención en salud desde la perspectiva de transexuales

 

 

Carla Ribeiro Cohen*; Rafael De Tilio**

 

 


Resumo

Este artigo teve como objetivo compreender como transexuais significam os atendimentos em saúde, em um hospital público, na microrregião do Triângulo Mineiro. Nove transexuais foram entrevistados, e os conteúdos foram organizados em quatro categorias para análise temática (concepções sobre transexualidade; informações; percepções sobre atenção à saúde; concepções sobre direitos e preconceitos). Os principais resultados apontaram para: a compreensão da transexualidade como experiência identitária discordante com o corpo biológico; a busca por modificações corporais; as insuficiências e ausências de informações e organização para acesso, adesão e permanência naquele serviço de saúde; respeito ao nome social, apesar de pontuais discriminações por parte de alguns profissionais de saúde. A não consolidação das políticas de atenção básica de saúde (especialmente da integralidade) pode afastar e dificultar essa população de um direito que lhe é garantido, porém nem sempre observado.

Palavras-chave: Atendimento em saúde. Transexualidade. Gênero.


Abstract

The aim of this paper is to understand how transsexuals signify health care in a public hospital in the Triângulo Mineiro (Brazil) microregion. Nine transexuals were interviewed about contents which were organized into four categories of thematic analysis (conception on transsexuality, information, perception of health care, conception on rights and prejudices). The main results highlighted: transsexuality as an identity experience dissenting from the biological body; the search for body modification; shortcomings and lack of information regarding access to health services and continuity of attendance; occasional discriminatory attitudes by a few health professionals. We consider that the non-consolidation of the basic health care policies can hinder this population from their rights.

Keywords: Health care. Transsexuality. Gender.


Resumen

Este artículo tuvo como objetivo comprender cómo los transexuales significan la atención en salud en un hospital público en la micro región del Triángulo Minero (Brasil). Se reclutaron nueve transexuales para entrevistas cuyos contenidos se organizaron en cuatro categorías de análisis temático (concepciones sobre transexualidad; información; percepciones sobre la atención en salud; concepciones sobre derechos y prejuicios). Los principales resultados desvelaron una comprensión de la transexualidad como una experiencia identitaria discordante con el cuerpo biológico; la búsqueda por cambios corporales; insuficiencias y faltas de información para acceso y permanencia en los servicios de salud; respeto al nombre social, a pesar de algunas conductas discriminatorias por parte de los profesionales de salud. Si no se consolidan las políticas de atención básica en la salud (especialmente la integralidad) se puede alejar y dificultar que esta población goce de un derecho que es garantizado, pero no siempre observado.

Palabras clave: Atención en salud. Transexualidad. Género.


1. INTRODUÇÃO

Apesar de o sistema binário de gênero se justificar em discursos e práticas consideradas (biologicamente) naturais de homens e mulheres que articulam linearmente sexo atribuído no nascimento, identidade experienciada de gênero e orientação heterossexual, na realidade, ele é historicamente determinado e necessita de reiteração sistemática por parte dos sujeitos (Bento, 2012; Louro, 2015). Assim, o suposto natural para homens e mulheres é resultado de performances (repetições estilizadas de atos que estabelecem relações de poder desiguais) culturalmente determinadas (Rodrigues, 2012).

Para Bento (2012, p. 51), "A capacidade da heterossexualidade apresentar-se como norma, a lei que regula e determina a impossibilidade de vida fora dos seus marcos" recentemente tem sido referida como "cis-heteronormatividade" pautada nos binarismos dos sexos (machos/fêmeas) e dos gêneros (homens/mulheres) (Mattos, & Cidade, 2016). "Cis" (que significa do mesmo lado) designaria a concordância entre o sexo atribuído no nascimento com a identidade experienciada de gênero, e "trans" designaria a discordância entre eles 1; além disso, segundo Reis (2018), não basta ser heterossexual, pois é preciso que o sujeito também reconheça subjetivamente (identidade de gênero) o sexo (biológico) que lhe foi atribuído ao nascer, uma vez que casais compostos por homem e mulher transexuais heterossexuais, por exemplo, não são aceitos por terem identidade de gênero diferente do sexo designado no nascimento.

Assim, uma das dissonâncias das normas de gênero seria a transexualidade, uma das expressões das transgeneridades (que engloba transexuais e travestis, entre outros) categorizada como psicopatologia (Bento, 2012). Dessa forma, "Se a sociedade afirma que o 'normal' é a heterossexualidade [. . .] é como se estivesse evocando a heterossexualidade como um dado natural" (Bento, 2012, p. 19), e a transexualidade seria tanto a "quebra [na] causalidade entre sexo/gênero/desejo e [quanto o que] desnuda os limites desse sistema binário assentado no corpo-sexuado" (Bento, 2012, p. 21).

Nesta perspectiva, o transexual reivindica sua identidade de gênero em discordância com o corpo-sexuado, independentemente da sua orientação sexual (Almeida, & Murta, 2013). Mas as performances dos gêneros que contestam o binarismo são consideradas anormais, sendo alvos de intervenções que pretendem (cis-hétero) normatizá-la; entre elas, há a cirurgia de redesignação sexual visando a coadunar a identidade de gênero ao sexo biológico.

Em reação a essas intervenções, em 2009, iniciou-se um movimento mundial (Stop Trans Pathologization),2 que conseguiu alcançar parte de suas demandas em 2018, quando a World Health Organization (WHO) divulgou que, na 11ª edição do Código Internacional de Doenças (CID),3 a designação transexualidade seria alterada de "transtorno de identidade de gênero" para "condições relacionadas à saúde sexual". A WHO afirmou que alterar a nomenclatura, mas manter o fenômeno (transexualidade) no CID seria uma estratégia para garantir a essa população acesso aos atendimentos nos serviços públicos de saúde (Prado, 2018).

No Brasil, entre os transgêneros, os transexuais ganharam o direito ao denominado processo transexualizador4 a partir de 1997 (Conselho Federal de Medicina, 1997), mas somente em 2008 ele passou a ser realizado no Sistema Único de Saúde (SUS) (Ministério da Saúde, 2008). Antes disso algumas iniciativas governamentais visaram a consolidar atendimentos e tratamentos igualitários (na saúde e na educação) para lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis (Conselho Nacional de Combate à Discriminação, 2004). Em 2011, foi lançada a Política Nacional de Saúde, com o objetivo de ampliar o acesso aos serviços de qualidade, promover o enfrentamento das iniquidades e desigualdades em saúde, e reconhecer os efeitos das discriminações e das exclusões no processo de saúde/doença da população trans (Ministério da Saúde, 2011). Em 2016, foi regularizado o uso do nome social para essa população (Decreto Federal nº 8.727, de 28 de abril de 2016; Supremo Tribunal Federal, 2018). 5

Mas as demandas de saúde transgênera (em geral) e transexual (em específico) não se limitam ao processo transexualizador. Porém, a literatura científica publicada sobre o tema, apesar de crescente, ainda tende a se dedicar às demandas de uso do nome social e às ações de prevenção/tratamento de infecções sexualmente transmissíveis, sendo poucas as investigações que se dedicam às percepções dessa população em relação aos atendimentos recebidos no SUS (Carvalho Pereira, & Chazan, 2019; Cohen, & De Tilio, 2019; Paulino, Rasera, & Teixeira, 2019). Assim, este artigo tem como objetivo compreender como transexuais significam os atendimentos em saúde de um hospital público no Triângulo Mineiro.

2. MÉTODO

Tipo de estudo: esta é uma pesquisa empírica, transversal e qualitativa.

Cenário: a coleta de dados foi realizada em um hospital universitário vinculado ao SUS, de uma universidade federal de uma cidade do interior do Estado de Minas Gerais que atende a 28 municípios que compõem a macrorregião Triângulo do Sul de Minas Gerais, sendo o único que oferece atendimentos de alta complexidade. No momento da coleta dos dados, o hospital oferecia apenas atendimentos ambulatoriais relacionados ao processo transexualizador (não realizava intervenções cirúrgicas), atendendo, em média, 25 transexuais.

Participantes: participaram das entrevistas nove sujeitos que se autodeclaravam transexuais, 6 usuários do hospital e que buscavam por intervenções relacionadas especificamente ao processo transexualizador. As principais características dos participantes (Quadro 1; os participantes foram ordenados conforme a sequência de realização das entrevistas) são: idades entre 19 e 51 anos (média de 33,2 anos); 4 homens transexuais e 5 mulheres transexuais; todos heterossexuais; 2 negros, 1 branco, 4 pardos e 2 brancos/pardos (estes participantes disseram que um dos pais era branco e outro era pardo, e, por isso, não sabiam qual seria sua exata cor de pele); 3 tinham ensino fundamental incompleto, 1 ensino fundamental completo, 1 ensino médio completo, 2 ensino médio completo, 1 ensino superior incompleto e 1 ensino superior completo; em relação ao tempo de atendimento (no momento da coleta dos dados) no hospital, a média era de um ano e um mês, variando entre 2 meses e 2 anos.

 

 

Instrumentos: foi realizada uma entrevista semiestruturada com cada participante, cujos temas abordaram: concepções, informações, percepções acerca do atendimento recebido, percepções sobre atenção à saúde e legislação sobre transexualidade.

Recrutamento dos participantes: o recrutamento foi pautado na estratégia de amostragem bola de neve ou cadeia referenciada (Turato, 2008). O primeiro possível participante foi indicado por um dos profissionais de saúde do hospital, mas somente dois participantes indicaram outros e, dessa forma, os pesquisadores entraram em contato com os profissionais de saúde, solicitando outras indicações. Quando as indicações se esgotaram (quando não foram indicados novos participantes), foi realizada busca ativa por participantes no hospital.7

Aspectos éticos: a pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade dos pesquisadores (CAAE 79684217.9.0000.5154 na Plataforma Brasil).

Procedimentos de coleta e análise dos dados: as entrevistas foram realizadas pela primeira autora deste artigo, entre os meses de julho e dezembro de 2018, em salas reservadas da clínica-escola de Psicologia da universidade dos pesquisadores. As entrevistas foram audiogravadas e transcritas na íntegra pelos autores deste artigo e organizadas a partir da análise de conteúdo temática proposta por Turato (2008), com auxílio do software WebQDA (Souza, Costa, & Moreira, 2019) em quatro categorias: concepções sobre transexualidade (trechos das entrevistas que diziam respeito às concepções sobre transexualidade na perspectiva dos participantes); informações (trechos das entrevistas que diziam respeito às informações a que os transexuais têm acesso); percepções sobre atenção à saúde (trechos das entrevistas que diziam respeito à atenção à saúde recebida pelos transexuais); concepções sobre direitos e preconceitos (trechos das entrevistas que diziam respeito aos direitos dos transexuais e aos preconceitos sofridos). A análise dos dados recorreu à produção científica sobre as relações de/entre gêneros a partir de críticas àsestruturas sociais de dominação cis-heteronormativas.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

As categorias apresentam os temas mais frequentes no conjunto das entrevistas (concepções sobre transexualidade; informações; percepções sobre atenção à saúde; concepções sobre direitos e preconceitos) ilustradas com trechos das respostas dos participantes.

3.1. CATEGORIA 1 – CONCEPÇÕES SOBRE TRANSEXUALIDADE

Nessa categoria, foram destacados trechos que diziam respeito às concepções dos participantes sobre transexualidade. Bento (2012) considera a transexualidade uma experiência identitária que problematiza a cis-heteronormatividade do sistema binário sexo/gênero. Nesse sentido, "percebendo a expressão morfológica do corpo como o mais importante critério definidor do gênero" (Almeida, & Murta, 2013, p. 386), a compreensão sobre os (e, por vezes, dos próprios) transexuais reside na equivalência entre sexo e gênero. Isso pode ser visto quando os participantes alegaram que a transexualidade é uma experiência de estar no corpo errado e, com isso, buscaram harmonizar gênero experenciado e sexo atribuído no nascimento: "Significa, no meu entendimento, nascer no corpo errado, né. Ter um sexo biológico que não condiz com o sexo psicológico. Ser transexual é uma luta terrível pra poder adequar meu corpo de acordo com o que eu sou por dentro" (P1, 51 anos, homem transexual).

De acordo com Salih (2017, p. 67), "Gênero é um processo que não tem origem nem fim, de modo que é algo que 'fazemos', e não algo que 'somos'"; assim, o gênero, para os participantes, seria sempre construído em referência à cis-heteronormatividade (binarismo homem/mulher, macho/fêmea, vagina/pênis, etc.), mesmo que posteriormente recusado. Para Butler (2016, p. 127), "'tornar-se' um gênero é um laborioso processo de tornar-se naturalizado", exigindo tanto dos cisgêneros quanto dos transgêneros repetições (performances) que atestem ou contestem a cisgeneridade e o binarismo, mas cujos significados foram previamente estabelecidos a partir de uma estrutura binária.

Exemplo disso é o trecho de entrevista: "Bem, primeiramente, eu acho que nascer num corpo errado é horrível. Então, um transexual é o que se identifica no sexo oposto. Ele não se identifica com aquilo com o que foi traçado no momento do nascimento" (P3, 26 anos, homem transexual), no qual há repetição dos binarismos. Mesmo que Bento (2012, p. 38) argumente (com razão) que "a transexualidade demostra que não somos predestinados a cumprir os desejos de nossas estruturas corpóreas", as forças e relações de poder dominantes (binárias) são consideráveis, pois "há um controle minucioso na produção da heterossexualidade [e] será através do gênero que se tentará controlar e produzir a heterossexualidade" (Bento, 2012, p. 41).

Por isso, a transexualidade representa perigo para as normas de gênero, visto que questiona a lógica binária, como mostraram os excertos:

Ser transexual, eu acho que, não [. . .] que ela não aceita o corpo dela. Ah eu acho que ter uma cabeça diferente, sabe? Mesmo sendo homem, mas ter a cabeça de mulher. Pensa e age como uma mulher, dentro de um corpo masculino (P6, 24 anos, mulher transexual).

Significa que ela não nasceu com o corpo que deveria ter nascido [risos] mais ou menos, sabe? Que ela tipo, nasceu num corpo, mas com uma cabeça ou com vontade de ter outro corpo. Ela não se adaptou ao corpo ela que ela veio (P9, 19 anos, mulher transexual).


Nesse sentido, Louro (2015, p. 45) relata que "o sujeito não decide sobre o sexo que irá ou não assumir; na verdade, as normas regulatórias de uma sociedade abrem a possibilidades que ele assume, apropria e materializa". Todavia, P3 (26 anos, homem transexual) e P9 (19 anos, mulher transexual), respectivamente, relataram que "não se identifica com aquilo com o que foi traçado” e que o sujeito transexual é "aquele que não se adaptou com o corpo", demonstrando que, mesmo na tentativa de adaptação ao binarismo, há a possibilidade do questionamento da naturalização, uma vez que não se identificam com o imposto socialmente. Outro participante igualmente relatou a não concordância com o binarismo de gênero quando respondeu que o transexual não se identifica com o corpo com o qual nasceu e com o discurso médico, ao utilizar a expressão disforia de gênero:

Pra mim, transexual é toda aquela pessoa que não se identifica com o gênero a qual ele nasceu, né. Ou seja, se, no caso, existe também a disforia de gênero, que geralmente acompanha né, a maioria dos transexuais. Mas ele, assim como eu, nós não nos identificamos com o corpo que a gente nasceu (P7, 35 anos, mulher transexual).


A expressão disforia (sofrimento agudo) de gênero segue os critérios diagnósticos definidos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM):

Como termo descritivo geral, refere-se ao descontentamento afetivo/cognitivo de um indivíduo com o gênero designado, embora seja definida mais especificamente quando utilizada como categoria diagnóstica [. . .] refere-se ao sofrimento que pode acompanhar a incongruência entre o gênero experimentado ou expresso e o gênero designado de uma pessoa (American Psychiatric Association, 2013, p. 451).


Na maioria das unidades de saúde brasileiras, é utilizado o CID que nomeia como transexualismo ou "transtorno de identidade de gênero" a mesma condição definida no DSM. Segundo Bento (2006, p. 44), "'transexualismo' é a nomenclatura oficial para definir as pessoas que vivem uma contradição entre corpo e subjetividade. O sufixo 'ismo' é denotativo de condutas sexuais perversas". De acordo Almeida e Murta (2013, p. 383) "ainda vigora a interpretação patologizada dessas vivências", pois a discordância entre sexo (atribuído no nascimento) e (autodesignação de) gênero tem caráter de anormalidade e, por isso, constitui um transtorno cujo objetivo é a modificação corporal. Arán e Murta (2009) afirmam que considerar a transexualidade uma patologia ou um transtorno mental só pode ser compreendido em referência a um sistema normativo que define como normais os sujeitos que mantêm a linearidade entre sexo, gênero e orientação (hetero) sexual. Por isso, a qualidade dos conhecimentos dos participantes sobre seus direitos (na área de saúde) é importante porque pode lhes permitir tanto exercer quanto ter reconhecida sua cidadania, o que conduz à segunda categoria.

3.2. CATEGORIA 2 – INFORMAÇÕES

Nessa categoria, foram destacadas as informações dos participantes sobre seus direitos na área da saúde. Muitas das informações, segundo os participantes, advieram da troca de conhecimentos com seus pares (outros usuários do hospital). Todavia, a ausência de informações foi destacada por P1 e P3: "Divulgação em primeiro lugar. Não existe divulgação. Tanto que moro em [cidade] há vinte anos e, há dois anos, que eu fiquei sabendo desse projeto né. Tinha que ter uma divulgação e uma acessibilidade mais fácil. Porque é muita burocracia" (P1, 51 anos, homem transexual);

Eu acho que poderia divulgar mais essa assistência que o hospital-escola tá dando pra gente. [Pergunta: Que assistência o hospital escola está dando pra vocês?] Psicólogo, psiquiatra, encaminhamento. A possibilidade de fazer a mamoplastia, que, no meu caso, eu sou um trans homem, então eu preciso fazer essa, essa transição. Então poderia divulgar (P3, 26 anos, homem transexual).


Deve-se reforçar, contudo, que, de acordo com a legislação vigente sobre o processo transexualizador (Brasil, 2013), os procedimentos cirúrgicos somente podem ser iniciados após o paciente completar 21 de idade e ter sido acompanhado durante dois anos por uma equipe multiprofissional do serviço de atenção especializada no processo transexualizador – lembrando que o hospital-cenário desta pesquisa tinha credenciamento para realizar apenas os atendimentos ambulatoriais, e não os cirúrgicos pré ou pós-operatórios.

Conforme ressaltam Rocon, Sodré, Zamboni, Rodrigues e Roseiro (2018), faz-se necessária a oferta de serviços voltados para uma atenção integral em saúde pautada no respeito ao processo de transição no gênero dos transexuais, ou seja, não limitada ao caráter curativo e biomédico de atenção à saúde ilustrado pela cirurgia de redesignação sexual (Prado, 2018). Nesse sentido, alguns participantes relataram inexistir divulgação suficiente para os transexuais: "Não, de divulgação não. A gente fica assim mesmo sabendo assim, pela boca das pessoas, mas de divulgação mesmo pro público transexual não" (P6, 24 anos, mulher transexual); "Eu só acho que falta um pouco de informação, de divulgação. Porque já faz uns anos que eu pensava em nascer transexual, em fazer a mudança. Só que eu não sabia. Eu fiquei sabendo por uma amiga minha" (P9, 19 anos, mulher transexual).

Para Arán e Murta (2009), existem significativas barreiras de acesso/atendimento em saúde por parte dos homens e mulheres transexuais, principalmente por não estarem consolidadas as políticas de atenção básica à saúde voltada para suas necessidades específicas. Nesse sentido, Rocon et al. (2018) relatam a necessidade de implantação de ambulatórios específicos para atendimento dos transexuais, independentemente do processo transexualizador, pois "o diagnóstico [transtorno de identidade de gênero] tem tornado seletivo o acesso a serviços de saúde" (Rocon et al., 2018, p. 48), rompendo com os princípios da universalidade e da integralidade do SUS. Dessa forma, há limites relevantes na prestação de saúde para os transexuais no SUS: tanto os relacionados aos atendimentos em saúde para a população em geral quanto o gender blindness(Ruiz, & De Tilio, 2020) na saúde, que dificulta o acesso e adesão dos usuários (cisgêneros e transgêneros) ao SUS.

Entre os participantes, somente P7 (35 anos, mulher transexual) chegou ao serviço de saúde por indicação de profissional da saúde (médica) da rede privada: "Numa consulta com uma endocrinologista fora do hospital-escola, eu falei com ela da questão da minha transexualidade e tal, e ela me falou que a doutora [nome] tinha um grupo aqui em [local]". Os demais participantes relataram que foram informados sobre os atendimentos no hospital por outros transexuais conhecidos seus que recebiam atendimentos (por psicólogo, médico psiquiatra ou endocrinologista) no hospital: "Eu obtive com uma amiga, que é mulher transexual e tava fazendo parte do processo [transexualizador], que eu nem sabia que tinha um processo no hospital-escola. E no momento que ela me explicou, corri atrás" (P1, 51 anos, homem transexual); e:

Uma amiga minha já conhecia um que tava fazendo tratamento e colocou a gente em contato, e foi muito fácil, inclusive. Doutora [nome] me recebeu muito bem. Só acompanhei esse amigo na consulta que ele tinha um retorno, e ela já me deu encaminhamento (P3, 26 anos, homem transexual).


O P9, além de reafirmar o que identifica como "lacuna de elementos sobre as ofertas do ambiente hospitalar e ambulatorial", apresentou sugestões devido aos problemas na prestação de assistência social por parte do hospital: "Aí, tem um, um negócio de assis... Acho que de assistência social. Acho que facilitaria bastante se a gente tivesse mais... como que eu vou dizer, mais acesso, sabe. Porque é meio complicado até a gente ter acesso" (P9, 19 anos, mulher transexual). Por isso, é essencial o envolvimento dos assistentes sociais na rotina dos serviços, visando ao acolhimento dos transexuais para responder às suas demandas.

Há de se destacar que "possíveis sofrimentos experimentados por transexuais, travestis e mesmo por homossexuais não são decorrentes de qualquer patologia inerente a tais sujeitos, mas de trajetórias de exclusão social" (Almeida, & Murta, 2013, p. 398), pois, para os transexuais, muitas vezes, o acesso à saúde se efetiva quase que exclusivamente por intermédio do processo transexualizador ou pelo tratamento de infecções sexualmente transmissíveis (Cohen, & De Tilio, 2019), havendo necessidade de atenção às suas demandas específicas em serviços especializados (Mello, Perilo, Braz, & Pedrosa, 2011). Por isso, além de conhecer o que lhes é de direito, é igualmente importante compreender como significam os serviços/atendimentos em saúde recebidos, tema da próxima categoria.

3.3. CATEGORIA 3 – PERCEPÇÕES SOBRE ATENÇÃO À SAÚDE

A "atenção à saúde designa a organização estratégica do sistema e das práticas de saúde em resposta às necessidades da população [. . .] expressa em políticas, programas e serviços consoante aos princípios e diretrizes do SUS" (Matta, & Mirosini, 2009). Nessa categoria, foram destacados trechos das entrevistas relacionados às percepções sobre atenção à saúde recebida. Assim, alguns ganharam destaque:"Queria que tivesse mais e viesse o outro, as pessoas, médico [. . .] especializado pra fazer a cirurgia aqui em [cidade]” (P2, 40 anos, mulher transexual); "A questão da mudança de gênero, da cirurgia e tal, nem todo mundo tem acesso à cirurgia. Porque, por exemplo, aqui não faz. Tem que ser aprovado pelo MEC" 8 (P9, 19 anos, mulher transexual).

Com a Constituição Federal do Brasil de 1988, ficou estabelecido que a "saúde é direito de todos e dever do Estado", sendo criado e implementado o SUS, que deveria garantir o acesso integral, universal e gratuito para toda a população. Contudo, além das dificuldades pertinentes ao SUS enfrentadas por parte da população como um todo, aos transexuais são acrescidas outras, haja vista a especificidade das suas reivindicações por atendimentos especializados visando a alterações corporais de redesignação sexual. Além disso, ao contrário da maior parte da população geral usuária do SUS, o acesso da população trans aos serviços de saúde "têm como porta de entrada principal e quase única os ambulatórios especializados em HIV/Aids ou a emergência hospitalar" (Mello et al., 2011, p. 23).

Nesse sentido, faz-se necessário o reconhecimento das especificidades das demandas desses sujeitos com a implantação de políticas de saúde adequadas e específicas. Os atendimentos às demandas dos transexuais deveriam prever suas necessidades de cuidados buscando a necessária ampliação do atendimento em saúde para além do processo transexualizador e, ou, a prevenção/enfrentamento/tratamento das infecções sexualmente transmissíveis (Carvalho Pereira, & Chazan, 2019; Paulino, Rasera, & Teixeira, 2019). Esses constrangimentos dificultam a procura e a adesão aos SUS, como relatou P6 (24 anos, mulher transexual) sobre a necessidade de atendimentos de qualidade para outras demandas em saúde que não a hormonioterapia ou a cirurgia de redesignação sexual.

Mello et al. (2011, p. 11) relatam que "o termo saúde não pode ser reduzido à compreensão mecânica de mera ausência de doença. Saúde e doença são processos que variam culturalmente e não devem ser analisados no âmbito exclusivamente individual". Os transexuais necessitam de serviços que ultrapassem a lógica curativa e a oferta do processo transexualizador, pois "episódios de transfobia [. . .] praticados por profissionais da saúde, nos variados estabelecimentos e níveis de atenção, configuram barreiras para o acesso à saúde pela população trans" (Rocon et al., 2018, p. 49). Esses temas foram relatados por alguns participantes:

Eu acho que deveria ter mais boa vontade. As pessoas, os médicos, os juízes. Tudo que contém poder ajudar os trans pra fazer o, pra o mudar o laboratório aqui [local]. A minha médica, [nome], ela tá brigando pra montar, só que tá muito pouco pessoas, muito pouco ajuda ao lado dela (P2, 40 anos, mulher transexual).

Existindo a questão do corpo... dos médicos durante a sua formação, sendo tratado mais, tratado mais desses assuntos e não só do endocrinologista. Mas que fosse uma formação comum né. Pra que eles compreendessem. Porque, muitas vezes, é... a garota, o rapaz transexual ele vai chegar num clínico geral pra falar que tá com problemas e, e aí a pessoa se sente constrangida ou talvez o médico num... não tá tão preparado pra poder compreender aquela situação. Mas eu acredito que, assim, vai, vai avançar, mas deve demorar um tempo (P7, 35 anos, mulher transexual).


Como afirmam Ferreira, Pedrosa e Nascimento (2018), frequentemente ocorre discriminação por parte dos trabalhadores e profissionais da saúde em relação aos usuários transgêneros e/ou transexuais. Portanto, as entrevistas relataram os impactos dos múltiplos fatores – desde a ineficiência de organização até a ausência de preparo/conhecimento dos profissionais da saúde – nas especificidades e necessidades em saúde dos transexuais:

É, infelizmente, tem profissionais que faz tudo pra te desviar do seu foco, dos seus objetivos, pra te impedir de conseguir marcar as consultas. A primeira consulta é terrivelmente difícil, entendeu. Então acho, assim, tinha que ter mais consciência dentro do próprio hospital, da própria universidade, dos funcionários entender mais. Não aceitar, mas respeitar e colaborar (P1, 51 anos, homem transexual).


Para Mello et al. (2011), a sensibilização dos trabalhadores e profissionais da saúde para um atendimento não discriminatório dos transexuais e da população LGBTIQA+ ainda é um dos principais temas e objetivos nos planos, programas e diretrizes de políticas públicas de saúde. Nas entrevistas, foram evidenciados os entraves para assegurar o atendimento de qualidade, sem preconceitos e discriminações. Como enfatizam Calderaro, Fernandes e Mello (2008), é importante compreender a saúde como direito de acesso, adesão e tratamento para todos, ao mesmo tempo em que se respeite as especificidades dos grupos.

A desorganização do atendimento naquele hospital foi relatada nas entrevistas:"Falta um ambulatório só pra gente. Não que a gente quer ser tratado de uma forma especial ou de forma diferente, mas eu acho que, na forma geral com que está sendo tratado, fica muito desorganizado" (P3, 26 anos, homem transexual). Um dos participantes relatou que, naquele hospital, há profissionais que dificultam o agendamento de consultas, principalmente por desconhecerem o que é um transexual:

Acho que teria que ter assim, um consenso ou talvez de repente orientação pra todos. Porque tem profissional que você procura que parece nem saber, do projeto [processo transexualizador] que existe dentro do próprio hospital. Ele parece não saber o que é trans e dificulta muito a vida da gente. Então acho que, se existe um consenso dos profissionais, fossem bem orientados pra receber a gente com um pouco mais de respeito, e assim, cada profissional cumpre seu papel. Porque, às vezes, você chega lá, no profissional que tá lá para fazer uma marcação, porque você é trans, ele não marca (P1, 51 anos, homem transexual).


Para Mello et al. (2011), é imprescindível assegurar aos transexuais atendimentos de qualidade quando buscam cuidados em saúde, independentemente de sua orientação sexual. Rocon et al. (2018) enfatizam que a formação continuada dos trabalhadores e profissionais da saúde pautada na humanização do SUS pode ser a melhor estratégia para combater as desigualdades nos atendimentos aos transexuais, além do respeito ao nome social.

Com relação ao uso do nome social, todos os participantes afirmaram que, no geral, ele é respeitado no hospital por parte dos profissionais de saúde e demais colaboradores (porteiros, atendentes, secretários, etc.). Para Silva, Silva, Coelho e Martiniano (2017), a permanência nos serviços e a adesão aos cuidados em saúde destes usuários estão correlacionados ao uso do nome social, uma vez que os transexuais se sentem, nessas situações, acolhidos e respeitados pelos serviços de saúde. O respeito às diversidades pretende suprimir a violação de direitos na saúde e reafirmar o compromisso de universalidade e equidade do SUS.

Não à toa, as principais lutas e ativismos políticos dos transexuais têm relação com as reivindicações e efetivações do direito à autodeterminação de identidade de gênero, o respeito à sua condição de ser humano e ao nome social, além do acesso universal, integral e com equidade ao serviço de saúde (similar a todos os cidadãos), temas abordados na próxima categoria.

3.4. CATEGORIA 4 – CONCEPÇÕES SOBRE DIREITOS E PRECONCEITOS SOFRIDOS

Nessa categoria, foram destacados temas das entrevistas referentes àsconcepções sobre direitos e preconceitos sofridos pelos participantes. Trechos das entrevistas ilustraram esses episódios: "Eu tinha que procurar a minha felicidade, independentemente de qualquer preconceito. A gente tá sempre sendo alvo de preconceito. Então eu quis só dar a cara a tapa" (P9, 19 anos, mulher transexual); e: "Do momento que eu tive certeza que era a única forma de eu ser feliz, eu tive que engolir muita coisa, engolir muito sapo, passar por cima de muita burocracia, muita discriminação. E eu retornei. Voltei a procurar de novo" (P1, 51 anos, homem transexual); "Eu, particularmente, como pessoa, não procurava por vergonha do meu corpo mesmo, por odiar ser chamado pelo nome feminino. Então tudo isso impede um pouco a gente, que a gente vá além, entendeu? Agora tá cada vez mais fácil" (P3, 26 anos, homem transexual).

Segundo Silva et al. (2017), quando um transexual se sente reconhecido e respeitado em sua autodeterminação (de identidade) de gênero, ele sente confiança para acessar e permanecer nos serviços de saúde, favorecendo a adesão ao tratamento, a inclusão social e o enfrentamento das adversidades. Contudo, pelo fato de irem contra as normas binárias de gênero e, por vezes, de orientação sexual consideradas normais, destacaram-se nas entrevistas os motivos (discriminação, vergonha e preconceito sofridos) anteriormente citados pelos P1, P3 e P9, que justificaram a pouca procura pelos serviços de saúde ofertados naquele hospital.

Para Louro (2015), nossa sociedade se pauta prioritariamente com base na concepção de que o sexo (aspectos biológicos) determina o gênero que, por sua vez, organiza o desejo (hetero) sexual; assim, quem rompe com essa continuidade (os transgêneros; entre eles, os transexuais) é marginalizado na sociedade cis-heteronormativa. Aliás, os meios de comunicação reforçam esses estereótipos, com a multiplicação dos estigmas e preconceitos quando tratam os transexuais como estranhos ou com zombaria (Nogueira, Aquino, & Cabral, 2017).

Esse não reconhecimento - ou mais apropriadamente: reconhecimento negativo - da transexualidade apareceu em algumas entrevistas que relataram discriminações, repressões e descasos:

Eu chego num lugar, eu apresento minha identidade, aí eles falam "mas isso aqui não é você, é esse aqui. Cê tá me entregando a identidade errada". Tendo essa mudança, a gente tendo autorização pra poder fazer isso sem a cirurgia, é um cem por cento de ganho que a gente vai evitar constrangimento, porque, querendo ou não, a gente passa constrangimento, entendeu? (P4, 24 anos, homem transexual)

Eu acredito que, por ser uma classe muito reprimida e muito pequena, e muito fora do aspecto político e social que a maioria da, das pessoas vivem, é... eles não se interessam, não tomam conta do assunto, e acaba que isso fica excluído. Como se nem existisse... "Ah deixa isso pra lá" (P7, 35 anos, mulher transexual).


P4 relatou uma recente e importante decisão do STF que permite os transexuais solicitarem seu nome social (compatível com a autodesignação de gênero e não com o sexo atribuído ao nascimento) nos documentos civis, em qualquer momento do processo transexualizador e não apenas após a realização da cirurgia de redesignação sexual, facilitando a passabilidade (termo êmico que se refere à possibilidade de ser reconhecido pelo gênero autodesignado) que, se por um lado, reforça os esquemas de dominação do binarismo de gênero, por outro, pode minimizar a exposição às violências (Lucca, & Passaman, 2018; Souza, 2018).

Se os transexuais necessitam de autorização do Estado para mudança de nome nos documentos civis (o que, aliás, é requerido a qualquer cidadão), todavia, a eles é acrescida a submissão ao poder médico para efetivar essa demanda, haja vista que precisam ser enquadrados nos esquemas de binarismo de gênero para terem acesso ao processo transexualizador e adquirirem alguns direitos civis. Em outras palavras, eles precisam ser diagnosticados por um psiquiatra para terem acesso ao processo transexualizador no SUS, dentre os quais, o nome social (Lucca, & Passaman, 2018).

Conforme Mello et al. (2011, p. 20) argumentam, "Em um cenário ideal, todas as pessoas deveriam ser atendidas de forma humanizada e respeitosa em qualquer unidade de saúde, a partir de estrutura de acolhimento construída nos termos propostos pelo SUS". Infelizmente, não é isso que ocorre, embora o governo federal tenha efetuado algumas (poucas) mobilizações desde 2004, estruturando cartilhas e protocolos de atendimentos específicos para os transgêneros e transexuais. Todavia, não se pode desconsiderar, num plano geral, a escassez de políticas de saúde voltadas especificamente para os transexuais principalmente neste governo, mas também nos anteriores.

Os transexuais demandam atendimentos especializados em saúde não somente porque buscam por hormonioterapia e, ou, cirurgia de redesignação sexual, pois, além dessas demandas, eles necessitam de cuidados específicos e humanizados (devido tanto ao sofrimento psíquico gerado pelo preconceito de gênero quanto aos enfrentamentos de saúde não relacionados à transexualidade) (Carvalho Pereira, & Chazan, 2019; Paulino, Rasera, & Teixeira, 2019), e de assistência social (ações de esclarecimentos de direitos), havendo experiências institucionais que atestam essa possibilidade (Prado, 2018).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

São múltiplas as violências que acometem transexuais no âmbito da saúde, motivadas pela convicção de que são inferiores e, ou, doentes. Cruzar os limites dos binarismos dos sexos (machos/fêmeas), dos gêneros (homens/mulheres) e das orientações heterossexuais é colocar-se em uma posição de risco.

Os principais resultados deste estudo foram: a compreensão da transexualidade como uma experiência de identidade de gênero discordante com o corpo biológico; a busca por modificações (não necessariamente a cirurgia de redesignação sexual) como estratégias visando operacionalizar a harmonia entre sexo (corpo) e gênero (subjetividade); a ruptura com o binarismo de gênero, ao mesmo tempo em que consideram a discordância entre sexo/gênero uma anormalidade; as insuficiências e ausências de informações para o acesso/permanência dos transexuais nos serviços de saúde; as posturas, por vezes inadequadas ou discriminatórias, dos trabalhadores e profissionais de saúde (apesar do respeito à utilização do nome social); a desorganização dos serviços (demora nos atendimentos e falta de acessibilidade). Todos esses estabelecem entraves para o acesso, adesão e permanência aos tratamentos, principalmente por não estarem consolidadas as políticas de atenção básica (e, portanto, integrais) de saúde especificamente destinada para transexuais. Assim, os objetivos deste estudo foram atingidos.

Mas é forçoso reiterar que o acesso à saúde dos transexuais deve compreender a necessidade de cuidados ampliados e não limitados ao processo transexualizador. Também é necessário apontar que essa investigação possui algumas limitações, tais como o tamanho reduzido da amostra e sua restrição a um contexto territorial e geográfico específico, além de não diferenciar os relatos apresentados entre homens transexuais e mulheres sexuais que recebem tratamentos (e, portanto, consequências) diferenciados pelo sistema de saúde, sendo necessárias outras pesquisas que considerem estes e outros temas, como as perspectivas das equipes multidisciplinares de saúde que atendem essa população e as perspectivas específicas e distintas dos homens transexuais e das mulheres transexuais sobre os atendimentos recebidos em saúde.

Por fim, faz-se necessário implementar e efetivar políticas públicas específicas para transexuais que abarquem suas saúdes para além das demandas cirúrgicas e que efetivem os direitos ao acesso, adesão e tratamentos de saúde. Isso envolve capacitar os trabalhadores e profissionais da saúde para um acolhimento e atendimento humanizados e com qualidade para todo e qualquer cidadão.

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Texto recebido em 23 de agosto de 2019 e aprovado para publicação em 14 de junho de 2022.


 

 

* Mestra em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).
** Doutor e mestre em Ciências (área de Psicologia) pela Universidade de São Paulo (USP), docente do Departamento de Psicologia da UFTM e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia-UFTM, coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisa em Sexualidades e Gêneros da UFTM. E-mail: rafael.tilio@uftm.edu.br. Endereço: Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Centro de Pesquisas Aluízio Rosa Prata. Rua Vigário Carlos, 100, sala 525 - Abadia, Uberaba-MG. CEP 38025-350.

 

 

1 Resumidamente homens e mulheres cisgêneras se identificam subjetivamente com o sexo biológico com o qual nasceram, enquanto homens transgêneros (originalmente são do sexo feminino, mas discordam dessa atribuição e designam-se como pertencentes ao sexo/gênero masculino) e mulheres transgêneras (originalmente são do sexo masculino, mas discordam desse reconhecimento e designam-se como pertencentes ao sexo/gênero feminino) não se identificam com o sexo com o qual nasceram.
2 Campanha internacional que luta pela despatologização das identidades transgêneras e que reivindica, entre outros, a retirada dos transtornos de identidade de gênero do Manual Internacional Diagnóstico (DSM) e do Código Internacional de Doenças(CID) (Stop Trans Pathologization, 2009).
3 A CID-11 foi apresentada em maio de 2019, durante a Assembleia Mundial da Saúde, entrando em vigor em 1º de janeiro de 2022.
4 Processo transexualizador designa uma série de procedimentos de cuidados na atenção básica e especializada de saúde para transexuais, sendo os mais conhecidos a hormonioterapia e a cirurgia de transgenitalização. Alguns serviços de saúde ofertam apenas cuidados na atenção ambulatorial (acompanhamento clínico, psicoterapia, hormonioterapia), e outros ofertam cuidados na atenção hospitalar (cirurgias e acompanhamentos pré e pós-operatório).
5 Designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida.
6 O termo êmico usualmente utilizado por essa população é "trans". Todavia os participantes desta pesquisa faziam questão de destacar que eram "transexuais" e não travestis (que também são beneficiários de assistência em saúde do SUS, mas não do processo transexualizador). Supomos que eles tenham preferido essa autodesignação como estratégia para garantir acesso ao processo transexualizador oferecido pelo SUS.
7 Foram realizadas buscas ativas em dois momentos. Na primeira, foram encontrados três usuários que, entretanto, não compareceram às entrevistas agendadas. Na segunda, foram encontrados dois usuários, sendo que um deles indicou um terceiro que, no entanto, não compareceu à entrevista agendada. Em decorrência disso, o recrutamento foi encerrado com uma amostragem de nove participantes.
8 O participante se equivocou quando disse "MEC" (Ministério da Educação e Cultura), pois, no caso, o órgão competente seria a Secretaria de Atenção Especializada do Ministério da Saúde.

 

 

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