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Psicologia em Revista

Print version ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.27 no.1 Belo Horizonte Jan./Apr. 2021

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p185-204 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p185-204

 

Isolamento social e sofrimento emocional de mulheres durante a pandemia de covid-19

 

Social isolation and emotional distress in women during the covid-19 pandemic

 

Aislamiento social y angustia emocional de las mujeres durante la pandemia covid-19

 

 

Laura Reichert Dalcin*; João Leite Ferreira Neto**

 

 


Resumo

Algumas pessoas se mostram mais vulneráveis ao sofrimento mental durante o isolamento social imposto pela pandemia de covid-19. Em razão disso, esta pesquisa buscou entender como foi a experiência subjetiva do isolamento para essas pessoas. Foram realizadas sete entrevistas abertas com mulheres que autodeclararam intenso sofrimento mental nesse período. Para a leitura do material, foi empregada a análise temática, conforme proposta por Virginia Braun e Victoria Clarke. Foi possível identificar que episódios de sofrimento mental surgem e também são intensificados durante o isolamento. Foram evidenciados sentimentos de medo diante dos riscos e das incertezas sobre o futuro; desenvolvimento de comportamentos compulsivos e prejudiciais, como uso de substâncias, comer em excesso, compras e limpeza; revolta ante a falta de colaboração social para combater o vírus; sobrecarga devido à dupla jornada de trabalho no home office; dificuldade de concentração e desempenho das funções; e crises de ansiedade agudas.

Palavras-chave: Saúde mental. Dor psíquica. Trabalho feminino. Isolamento social. Covid-19.


Abstract

Some people are more vulnerable to mental distress during the social isolation imposed by the COVID-19 pandemic. Our aim was to understand the subjective experience of isolation of those individuals. Seven open interviews were conducted with women who self-declared to be experimenting intense mental distress during this period. We did a thematic analysis of the interviews, as proposed by Virginia Braun and Victoria Clarke. This method allowed us to verify that mental distress emerges during isolation and is also intensified by it. Were evidenced: fear in the face of risks and uncertainties; compulsive and harmful behaviours such as substance abuse, overeating, pathological buying, and excessive cleaning; resentment with respect to the lack of cooperation to fight the pandemic; overload due to long working hours at home; inability to concentrate; acute panic disorder.

Keywords: Mental health. Psychic pain. Working women. Social isolation. Covid-19.


Resumen

Algunas personas son más vulnerables al sufrimiento mental durante el aislamiento social impuesto por la pandemia de covid-19. Por lo tanto, esta investigación buscó comprender cómo fue la experiencia subjetiva de aislamiento para estas personas. Se realizaron siete entrevistas abiertas con mujeres que informaron haber sufrido un intenso sufrimiento mental durante este período. Para la lectura del material se utilizó el análisis temático propuesto por Virginia Braun y Victoria Clarke. Se pudo identificar que los cuadros de sufrimiento mental surgen y también se intensifican durante el aislamiento. Se evidenciaron los sentimientos de miedo ante los riesgos y las incertidumbres sobre el futuro; el desarrollo de comportamientos compulsivos y dañinos como el uso de sustancias, comer en exceso, hacer compras y limpieza; el enfado por la falta de colaboración social para combatir el virus; el exceso de trabajo debido a la doble presencia en trabajo remoto; dificultades para concentrarse y realizar funciones; y crisis de ansiedad aguda.

Palabras clave: Salud mental. Dolor psíquico. Trabajo de mujeres. Aislamiento social. Covid-19.


1. INTRODUÇÃO

covid-19 é uma doença infecciosa descoberta em dezembro de 2019, em Wuhan, na China. Causada pelo coronavírus, logo se espalhou pelo globo terrestre, causando uma grande pandemia com milhares de mortes, o que exigiu da população uma série de medidas de enfrentamento (Organização Pan-Americana de Saúde, 2020). Até o momento, considerando a data de 25 de agosto de 2021, o Painel Covid-19, com as atualizações epidemiológicas do coronavírus no Brasil, aponta 575.742 óbitos (Ministério da Saúde, 2021). Apesar desse cenário negativo, desde dezembro de 2020, os países começaram a receber vacinas, sendo que, no Brasil, 26,4% da população já foi totalmente imunizada(Our World in Data, 2021).

Entre as estratégias utilizadas para frear o contágio, a principal delas, até que toda a população seja imunizada, ainda é o isolamento social, que tem sido adotado desde março de 2020 no Brasil, logo que os primeiros casos foram registrados no território nacional. Essa estratégia foi implementada em diferentes formatos e momentos em cada região do país, mas tem como ideia central a restrição do movimento e o distanciamento físico entre as pessoas com o objetivo de reduzir a velocidade de transmissão do vírus (Organização Pan-Americana de Saúde, 2020). Embora necessário, o isolamento tem seus efeitos nocivos sobre a sociedade, ao limitar a vida social e econômica das cidades e tolher formas de subsistência (Organização Pan-Americana de Saúde, 2020).

O prolongamento da pandemia no Brasil já tem demandado maior atenção àsaúde mental da população. Uma pesquisa realizada após um ano de pandemia, com 30 países, demonstra que 53% dos entrevistados brasileiros declararam uma piora na saúde mental desde a chegada da covid-19. Isso leva o Brasil a ocupar o quinto lugar na lista dos que mais sentiram consequências no bem-estar emocional (Calliari, & Junqueira, 2021). Dentro desse cenário, alguns grupos se mostram mais vulneráveis ao sofrimento mental, como destaca o estudo de Qiu, Shen,Zhao,Wang,Xie eXu (2020), realizado com 52 mil chineses durante a pandemia. Os autores apontam que mulheres, idosos, pessoas com maior nível educacional e migrantes têm mais chances de desenvolver estados de estresse, ansiedade depressão, comportamentos compulsivos e outros prejuízos no funcionamento social (Qiu et al., 2020). Em casos mais extremos, essas pessoas podem demandar atendimentos de urgência nos serviços de saúde, o que pode sobrecarregar ainda mais esses equipamentos que já se encontram saturados em razão da crise sanitária atual.

Outras inúmeras pesquisas foram feitas e ainda estão sendo realizadas para entender os impactos das medidas restritivas na saúde mental. A maioria desses estudos utilizaram questionários eletrônicos para a obtenção de dados em grandes amostras, o que oferece uma compreensão importante sobre as tendências emergentes dentro desse cenário. No entanto, a subjetividade é um componente fundamental na experiência humana, e o que pode ser uma tendência não deve ser tomado como regra em termos de saúde mental. Dessa forma, buscamos obter relatos pessoais sobre a experiência a ser estudada, para compreender pontos importantes da vivência pandêmica que não são possíveis investigar com outros instrumentos de pesquisa.

Acreditamos que este estudo possa contribuir com a elaboração de intervenções psicossociais e políticas públicas que acolham e ofereçam assistência adequada para as populações com risco de adoecimento psicológico. Tais medidas se mostram necessárias diante de um contexto de crescente adoecimento, a fim de evitar o colapso do sistema de saúde não apenas com os infectados da covid-19, mas também com aqueles que necessitarão dos equipamentos de saúde para enfrentar emergências psicológicas. Assim, o objetivo desta pesquisa consistiu em entender como foi a experiência subjetiva do isolamento social para pessoas que se mostraram mais vulneráveis ao sofrimento mental.

2. METODOLOGIA

Os participantes deste estudo foram selecionados com base numa pesquisa anterior, na qual 566 pessoas responderam a um questionário eletrônico, finalizado em junho de 2020, que buscou investigar os impactos do isolamento social na vida de brasileiros confinados (Dalcin, Ferreira Neto, & Guzella, no prelo). Para chegar aos sete participantes, foram selecionados apenas indivíduos que responderam estarem se sentindo extremamente ansiosos, deprimidos e estressados com o isolamento social. Também foi utilizada como filtro uma questão que avaliava se havia interesse dessas pessoas em participar de uma entrevista futura, e que preencheram corretamente o campo que solicitava um e-mail para contato. A partir disso, foi encontrado um número de 23 respostas. Após várias tentativas de contato sem retorno, sete pessoas mostraram interesse em participar da entrevista, todas mulheres.

As entrevistas foram realizadas entre 30 de setembro e 30 de novembro de 2020, por meio de uma plataforma de videoconferência. Nesse período, o Brasil passava da marca de 171 mil mortes, ainda não havia vacinas para a população (Ministério da Saúde, 2020), e, segundo os depoimentos, todas as participantes estavam há mais de meio ano em isolamento social. A escolha pela entrevista do tipo aberta deve-se à sua riqueza de detalhes, pois "ajuda a compreender e explicar o que está por trás de determinado ponto de vista" (Rosenthal, 2014, p. 170). A forma como foi realizado esse processo consistiu na realização da seguinte questão disparadora: "Conte-me como foi, para você, ficar em isolamento social e o que você acha importante salientar sobre essa experiência". Para a condução da entrevista, não foram feitas interferências durante o relato principal do respondente, sendo estas feitas quando a fala já havia sido finalizada, com o únicoobjetivo de compreender melhor a narrativa e explorar alguns pontos levantados no questionário. Nesses momentos, foram feitas perguntas como: "Como foi o convívio com as pessoas que estavam vivendo o isolamento com você?"; "Como foi ter acesso às notícias sobre a covid-19?", "Como foi sua adaptação ao trabalho remoto?".

Para a análise das entrevistas, foi empregada a análise temática, conforme proposta por Virginia Braun e Victoria Clarke, que consiste em um processo que busca "identificar, analisar, interpretar e relatar padrões (temas)" do material em estudo (Souza, 2019, p. 52).

Para a análise dos dados, inicialmente foi realizada uma leitura ativa, buscando significados e padrões no material transcrito. Após essa etapa, foram definidos códigos que expressassem conteúdos relevantes do material, associados aos objetivos da pesquisa. Esses códigos foram classificados em grandes temas e, posteriormente, passaram por uma revisão, gerando um mapa de temas do conteúdo analisado. Na fase final, os temas foram redefinidos e nomeados de claramente. Por fim, foi criado um relatório em que alguns exemplos foram elencados para expressar os temas definidos (Souza, 2019).

Os dados sociodemográficos das entrevistadas foram retirados do banco de dados oriundos da aplicação do questionário, por meio de um cruzamento de informações com o endereço de e-mail disponibilizado por elas. É importante ressaltar que foram identificados os dados das entrevistadas para não precisar realizar esse levantamento novamente, mas só foi possível ter acesso à identidade das respondentes no momento da entrevista. As informações referentes ao perfil das entrevistadas estão descritas na tabela 1, a seguir. Além das informações apresentadas na tabela, três das participantes (Mia, Lis e Sol) são professoras e mantiveram, de forma remota, suas atividades profissionais. Ju, Ane e Gal são estudantes e seguiram tendo aulas on-line. Ju ficou desempregada em razão da pandemia, Ane manteve sua atividade laboral de vendedora pela internet, e Gal teve seu estágio remunerado interrompido, sem perder a renda.

 

 

Após a leitura dos dados, estes foram divididos em cinco categorias que representam temas presentes nas narrativas das entrevistadas, sendo eles: sofrimento mental pregresso e atual; medos e presságios; revolta e irritação; sobrecarga; e produtividade e desatenção.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1. SOFRIMENTO MENTAL PREGRESSO E ATUAL

As mulheres entrevistadas tinham histórico anterior à pandemia de questões psicológicas importantes, que até então estavam negligenciadas ou eram desconhecidas por elas, mas, diante do isolamento, vieram à tona. Algumas expressões retiradas das narrativas sinalizam essas questões prévias: "olhar doentio", "término de relacionamento", "TOC", "sou uma pessoa um pouquinho depressiva", "ansiosa por natureza", "organização", "limpeza", "há muitos anos, eu tenho isso", "passei já por psicólogo, por várias etapas de minha vida", "sempre fui de explodir", "uns dois anos atrás, eu parei meu tratamento psiquiátrico". Já expressões como: insegurança com o futuro; compulsão; bebia pra relaxar; excesso de comer; fumar como uma fuga; crise de ansiedade; não consigo respirar; falta de ar; emagreci; não conseguir respirar; insônia; comecei a fazer compras; todos os dias, a gente tava bebendo alguma coisa; frágil; crise muito forte; morrer; pronto-socorro; e muito difícil representam pontos que surgiram no confinamento.

No caso de Gal, o término de relacionamento, anterior à pandemia, e o desemprego com a chegada do isolamento, no caso de Ju, são lembrados como fatores que influenciaram na adaptação ao novo cenário de confinamento. Mia falou que seu transtorno obsessivo compulsivo, já diagnosticado havia mais tempo, contribuiu para que, durante esse período, sentisse a necessidade de limpar a casa o tempo todo, "O meu olhar doentio, porque eu tenho consciência que é um olhar doentio, enxergava tudo sujo. Como se, todos os dias, eu tivesse que passar álcool em todos os cantos, em todos os cômodos da casa". Bia também revela que fazia tratamento psiquiátrico desde a adolescência, mas parou havia cerca de dois anos. Sobre essa situação, afirma: "Eu tava me sentindo muito bem, não tinha mais crises, achei que tava resolvido e daí voltou. Daí, durante a pandemia, assim, voltou mais forte". Sol e Lis relatam que sempre foram pessoas deprimidas e ansiosas, mas que até então estavam bem, até precisarem ficar em casa em tempo integral. O relato mais marcante é o de Ane, que diz ter se tratado a vida toda como depressiva, até começar a ter crises de pânico nos últimosmeses, o que a fez descobrir um quadro grave de ansiedade e buscar atendimento de urgência por três vezes.

Conforme o isolamento foi avançando, o sofrimento foi se anunciando por reações corporais e comportamentais. O relato de Lis representa o quadro de dor ao ter seu corpo debilitado pela ansiedade, que posteriormente culminou em uma crise de pânico: "Mas então eu tive crise de ansiedade. Eu perdi muito cabelo, eu tive feridas internas na minha boca, eu tive problemas nas unhas, elas ficavam furadas porque eu ficava muito nervosa". Ane, Bia e Gal passaram por crises intensas de pânico, com falta de ar e sensação de morte. Bia, ao falar dessas crises, lembra que "Eram muito fortes, era de não conseguir respirar. Assim, eu virava o corpo pra ver se entrava o ar e eu tinha vontade de chorar por não conseguir respirar". Nesses casos, todas precisaram de atendimento médico de urgência. Gal lembra como seu corpo foi mudando nesse período: "Eu fico ansiosa, eu perco a fome, né. Então eu emagreci muito nesses meses".

As estratégias para lidar com o sofrimento nem sempre eram adequadas. A maioria falou sobre compulsões adquiridas nesse período. Ane lembra sobre como fazia para enfrentar sua insônia: "Aí, eu bebia pra dormir, porque eu não conseguia relaxar [. . .] quanto mais ansiosa eu ficava, mais eu bebia, e aquilo tudo foi aumentando". Além do álcool, recorreu ao cigarro para se acalmar. Da mesma forma, fez Ju, que desabafou: "Eu tô fazendo uma coisa que eu nunca imaginei que faria na minha vida, eu tô fumando, eu nunca fumei [. . .]. E eu tô bem enlouquecida". Bia, por sua vez, buscou no álcool e nas compras on-line uma forma de refúgio: "Como eu tava muito em casa, eu comecei a fazer compras pela internet. Todos os dias, a gente começou a tomar alguma coisa alcoólica [. . .]. Teve um momento em que eu percebi que, todos os dias, a gente tava bebendo alguma coisa". Para Lis, o comer em excesso aliviava sua ansiedade: "As feridas me incomodavam muito, e os dias de compulsão, assim, teve um dia que eu comi mais de 20 chicletes, um atrás do outro. Então eu via que, assim, eu tinha que tá consumindo aquilo, eram os piores dias [. . .]".

Quando não foi possível mais suportar, a maioria buscou ajuda médica (clínico geral, dermatologista e psiquiatra), e três recorreram à psicoterapia. Algumas retornaram a fazer uso de medicações que haviam parado; outras iniciaram tratamento farmacológico pela primeira vez; duas aumentaram sessões de psicoterapia; e outra começou a fazer tratamento psicológico.

Noal (2020) explica que, diante de uma situação de crise como a que estamos vivendo, é esperado que cerca de 15% a 25% da população necessitem de uma intervenção psicossocial e de saúde mental. Segundo a pesquisadora, essas pessoas que demandam mais cuidado geralmente já têm questões anteriores à pandemia, como instabilidade psíquica ou labilidade emocional. Outros estudos também destacam a piora dos quadros psicológicos preexistentes e o aumento do estresse, ansiedade e depressão em indivíduos saudáveis durante esse período (Araujo, & Machado, 2020; Cirilo, Silva, Cruz, Correia, Maia, & Silva, 2020; Shigemura, Ursano, Morganstein, Kurosawa, & Benedek, 2020).

Como foi verificado entre os relatos, o que mais chamou a atenção foram os estados de pânico desencadeados em meio a esse cenário, pois a gravidade dos sintomas demandou a busca por serviços de urgência médica. Araujo e Machado (2020) afirmam que epidemias podem provocar um excesso de preocupação e ansiedade em relação à saúde, criando uma hipervigilância sobre sinais corporais, como palpitações e frequência respiratória. Esses estados são explicados pelos autores com base no conceito de modelagem da teoria cognitivo-comportamental, processo cognitivo no qual o sujeito interpreta, de forma irracional, algumas sensações corporais com base em crenças equivocadas sobre a própria saúde (Araujo, & Machado, 2020). Caso negligenciados, esses estados podem evoluir para quadros mais intensos, como crises de ansiedade e pânico.

O sofrimento emocional que culmina em crises de ansiedade representa uma reação preocupante em termos de saúde pública, pois exige uma rede de apoio médica e psicológica que acolha essas pessoas. Em tempos pandêmicos, os serviços de urgência podem se encontrar sobrecarregados em razão do atendimento na linha de frente da covid-19, e até com limitações de atendimentos especializados devido às restrições de circulação, deixando os pacientes psiquiátricos desassistidos. Pensando nisso, o cuidado com as pessoas mais vulneráveis do ponto de vista psicológico deve ser redobrado nesses momentos críticos, a fim de oferecer a esses grupos um suporte preventivo que evite agravamentos e buscas por serviços de saúde. Uma das possibilidades mais viáveis para esse suporte são os atendimentos médicos e psicoterápicos por plataformas virtuais, alternativas acessíveis e muito utilizadas durante a pandemia.

3.2. SOBRECARGA

Os relatos das entrevistadas sinalizam uma questão importante sobre o universo feminino. O acúmulo de atividades domésticas e de cuidado com os filhos, aliado ao trabalho formal, estudo tendem a se intensificar durante o período de isolamento em casa. Nessa categoria, termos como "sobrecarregou", "organização", "lavar", "limpar", "organizar", "sobrecarregam", "sobrecarregada", "esgotamento" e "produzir" foram extraídos das narrativas para representar essa sobrecarga expressa pela maioria.

Mia sinaliza essa questão dos afazeres domésticos, identificada na maioria dos relatos. Professora, casada, mas sem filhos, precisou dispensar a funcionária doméstica em um momento crítico, no qual precisava aprender sobre as novas tecnologias virtuais que envolviam seu novo ambiente de trabalho:

A questão do trabalho, da organização doméstica pesou muito. [. . .] Continuamos com a empregada com vínculo, pagando normalmente, mas nós pedimos pra ela ficar em casa, e aí sobrecarregou né, porque era todo o trabalho da instituição, que era algo novo, eu não sabia como fazer e que eu tinha que estudar, que eu tinha que aprender, aliado a toda uma organização da casa nova, e o fato de ter que lavar roupa e limpar a casa, fazer comida, organizar a casa (Mia).


Lis e Ane também relembram o quão difícil foi a adaptação à nova rotina, aliada ao excesso de atividades das quais precisavam dar conta. Lis aponta sua sobrecarga como um dos grandes motivos para seu sofrimento: "Até porque eu tava muito sobrecarregada, eu fazia graduação na sexta e nos sábados. Eu era professora substituta, então tudo tava mudando de uma hora pra outra, então muitas reuniões, inúmeras, e eu tava finalizando o mestrado". Da mesma forma, Ane começa sua narrativa falando sobre o excesso de atividades enviadas pelos professores na faculdade, como se todo o seu sofrimento tivesse se iniciado após esse fator desgastante.

Essas questões sinalizadas parecem se intensificar com a presença de filhos pequenos na casa, como é possível verificar no relato de Ju: "A relação mudou. Eu tô tendo muita dificuldade com a minha filha de 11 anos, porque ela tá inquieta, é... Ela não tá indo pra escola, ela não quer mais estudar, ela tá cansada do estudo, é pela internet". Em uma situação financeira diferente de Mia, essa entrevistada perdeu seu emprego devido à pandemia, mas por estar cursando o mestrado, precisou conciliar aulas, trabalhos e todos os cuidados com a casa. Confessa que, no início, acreditava que, por estar mais em casa, poderia se dedicar mais aos estudos, mas logo percebeu o contrário: "Então eu lavo duas máquinas de roupas todos os dias [. . .] E a gente come demais. Então o tempo todo alguém tá procurando alguma coisinha pra comer, então tem sempre louça na pia [. . .]. Eu não consigo, eu não consigo parar!".

Entre todas, Bia foi a única que não apontou a sobrecarga como um problema. Em vez disso, afirma ter se adaptado bem ao trabalho remoto: "Eu moro perto do escritório, mas, mesmo assim, a questão do deslocamento, a questão de almoçar em casa, pra mim, isso foi... Eu adorei, no início", afirma ela. Épossível perceber em sua narrativa que, em momento algum, cita a necessidade de precisar fazer outras atividades fora as de seu trabalho formal, ou seja, a dupla jornada parece não ter sido uma realidade para Bia. Ser a entrevistada que reside com mais pessoas em casa pode ter contribuído para que as tarefas fossem mais compartilhadas.

O atrelamento dos trabalhos domésticos à mulher é uma questão cultural antiga e que, por muito tempo, encontrou respaldo em teorias sociológicas como a de Pearsons. Seu enfoque reforçava os estereótipos de gênero e da divisão de tarefas, defendendo a ideia de que os trabalhos na sociedade seguiam certo funcionalismo, em que os homens ficavam incumbidos dos papéis instrumentais e de provimento do lar, e as mulheres eram atreladas aos trabalhos mais sensíveis, ligados ao cuidado (Scott, 2010). Embora hoje essas teorias sejam questionadas, principalmente pelos movimentos feministas, tal concepção ainda explica algumas dinâmicas que persistem na organização social e geram grande desigualdade, sobretudo no mercado de trabalho.

A sobrecarga feminina, principalmente em relação aos trabalhos domésticos, não foi uma novidade que surgiu com o atual contexto, mas foi intensificada por ele. Pesquisas do IBGE demonstram que as brasileiras dedicam quase o dobro do tempo em cuidados com a casa em relação aos homens (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019). Em 2018, as taxas de realização de atividades domésticas por mulheres e homens foram, respectivamente, de 92,2% e 78,2%. Já no tocante aos cuidados com residentes da própria casa ou com parentes, esses números são de 37% para mulheres e 26,1% para homens. Somando essas atividades, o levantamento mostrou que mulheres dedicam em média 21,3 horas por semana, enquanto os homens dedicam 10,9 horas (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019).

Precisar conciliar o trabalho formal com as atividades domésticas levou um terço das mulheres a trabalhar em tempo parcial em 2019, enquanto apenas 15,6% dos homens empregados confirmaram passar por isso (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019). Essa desigualdade faz com que mulheres tenham menor inserção no mercado de trabalho e remunerações inferiores aos homens. Em 2018, a ocupação entre homens chegou a 64,3%, enquanto entre mulheres foi de 45,6% (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019). Em relação à remuneração, em 2018, os homens ganharam, em média, 27,1% mais que as mulheres (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019).

Com o novo cenário, esse quadro tende a se agravar, visto que o espaço físico do trabalho formal coabita o ambiente do trabalho, doméstico e de lazer. Ao contrário da rotina antiga, na qual era possível assumir certos papéis em diferentes espaços e horários, agora as funções de mãe, dona de casa, trabalhadora ou estudante misturam-se em uma rotina exaustiva.

É possível identificar o quanto a experiência do isolamento tem se mostrado um grande desafio para as mulheres entrevistadas, que acabaram encontrando, dentro do ambiente doméstico, uma fonte ininterrupta de tarefas e cuidados que até então estavam condicionadas a certos períodos do dia. O desgaste gerado com essa nova modalidade de trabalho é inevitável e acende o alerta para repensarmos ainda mais esses papéis condicionados ao gênero, que tende a gerar desigualdade e sofrimento emocional.

3.3. MEDOS E PRESSÁGIOS

Essa categoria representa o sentimento de medo e insegurança que viviam as participantes deste estudo. Termos como "ameaça", "medo", "incerteza" e "insegurança" foram retiradas das próprias narrativas e refletem a maioria dos sentimentos nesse período.

Preocupações com o trabalho foram relatadas por Bia e por Lis. A primeira temia que, com a onda de demissões em massa que estava acontecendo em razão da pandemia, poderia também perder seu emprego. Sua fala evidencia isso:

Eu tinha certeza: todas as vezes que o RH me ligava, eu tinha certeza de que ia ser a minha vez. Então, no final, acabaram demitindo uma outra pessoa do meu setor, que era muito próxima de mim, era meu amigo, e isso me deixou estabilizada, mas eu senti, senti ameaça (Bia).


Lis, que tinha um vínculo de trabalho provisório, temia por ter de procurar um emprego em meio a um cenário de incertezas; e expressa sua angústia: "Insegurança com o futuro... Em abril então, eu já perco o meu contrato, e como vai ser a partir dali? [. . .] Essa incerteza de não saber o que vai acontecer no dia de amanhã".

Ju, ao expressar esse mesmo sentimento, desabafa: "A gente quer certezas pra poder ter segurança até pra viver, e a pandemia trouxe isso, essas incertezas, e lidar com isso é muito ruim, muito ruim mesmo".

Segundo dados do IBGE sobre o ano de 2018, "As mulheres eram maioria nas três componentes da subutilização da força de trabalho, chegando a representar 59,3% da força de trabalho potencial" (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019, p. 36). Essa mesma pesquisa indicou que 19,7% das entrevistadas afirmaram não ter procurado trabalho devido aos afazeres domésticos, aos cuidados com os filhos e familiares. No entanto, apenas 2,2% das respostas dos homens indicaram o mesmo motivo. Collins, Landivar, Ruppanner e Scarborough (2021) apontam que o aumento na demanda de tempo com os filhos e nos trabalhos domésticos na pandemia fez com que mulheres, especialmente as que têm filhos, tenham reduzido sua carga de trabalho formal 4 a 5 vezes mais do que os homens, criando desafios adicionais para elas em termos de empregabilidade, acarretando consequências em sua saúde mental.

O futuro também é alvo de incertezas e angústias na vida de Gal: "Ninguém sabia o que ia acontecer, se iam voltar as aulas ou não, como ia enfrentar o semestre, se o semestre ia ser on-line ou presencial, se eu ia conseguir terminar o estágio, tudo isso. Eram muitas coisas que me deixavam angustiadas, né". Além desse futuro incerto o medo de que algo ruim pudesse acontecer a qualquer momento permeava a rotina das entrevistadas. Sol expressa esse sentimento ao temer o contágio do vírus em si e nas pessoas próximas. Narra um momento após ficar meses distante dos pais, em que cedeu ao impulso de dar-lhes um abraço: "Quando eu os vi... Eu tentei ficar afastada, tentei até não ter muita proximidade, mas foi uma coisa que eu não aguentei, que eu abracei, agarrei... Depois fui lá tomar banho, enfim, jogar álcool em gel em todo o corpo". Após esse episódio, lembra ter sentido uma grande preocupação com o risco de ter contaminado os próprios pais. Por estar passando por uma crise depressiva, relata que o medo de ser contaminada a levou a ficar isolada a ponto de não sair do próprio quarto: "Não queria sair nem mesmo no meu corredor. Eu não queria olhar pra nada. Eu tinha medo. Parecia que a pessoa já era um monstrinho".

Durante situações de calamidade, como em uma pandemia, o medo tende a aumentar estados de ansiedade e estresse, tanto em pessoas saudáveis quando naquelas que já têm um transtorno psiquiátrico (Shigemura et al., 2020). Eventos como grandes epidemias causam a sensação de que não é possível controlar a própria vida, visto que há uma constante confrontação com o risco da morte ou da morte das pessoas próximas. Isso desperta um funcionamento de ressignificação da própria vida e das relações, que passam a ser mais valorizadas em momentos de sofrimento (Noal, 2020).

Também é possível identificar, no relato de Ane e de Gal, o quanto as notícias despertavam sentimentos temidos, como relembra Ane: "Todas aquelas conversas, aquelas entrevistas, tudo aumentando, tudo apavorando, e tudo aquilo começou a apavorar [. . .]. Eu queria saber e fui atrás de muita coisa, e aquilo tudo foi me deixando preocupada, com medo". O excesso de informações negativas sobre contágios e mortes, e a imprecisão e exagero dessas informações influenciam no aumento de estados de ansiedade e depressão (Araujo & Machado, 2020;Shigemura et al., 2020; Silva, Santos, & Oliveira, 2020). Além disso, a forma como essas informações chegam às pessoas pode provocar raiva e influenciar comportamentos sociais agressivos e prejudiciais (Wang, McKee, Torbica, & Stuckler, 2019).

O medo e a sensação de que algo ruim possa acontecer é uma sensação esperada ante um cenário pandêmico, repleto de riscos e incertezas. A insegurança trabalhista, principalmente das mulheres, que tiveram seu rendimento prejudicado pela dupla jornada de trabalho, a preocupação constante em ter sido contaminada ou contaminar pessoas próximas e as informações sobre mortes e sofrimento amplamente divulgadas pela mídia são considerados importantes gatilhos para o sofrimento emocional vivenciado pelas entrevistas.

3.4. REVOLTA E IRRITAÇÃO

Outro elemento presente nos relatos é a indignação, pelo fato de que todas aderiram a uma modalidade de isolamento rígida, com várias privações pessoais, mas observavam outras pessoas vivendo normalmente suas vidas e até tentando uma aproximação forçada. Termos como "revolta", "revoltada", "maldoso", "desrespeitada", "decepções", "errado", "irritada", "frustrada", "raiva", "estressada" sinalizam esse sentimento ante a conduta das outras pessoas.

Mia relata que, por precisar ficar em casa, não conseguia mais praticar exercícios físicos, e isso foi extremamente difícil para ela, mas que o pior era ver seus colegas "Que estão em isolamento, mas eles vão ao supermercado, eles vão à farmácia, eles vão buscar um bolo na cafeteria [. . .], vão ao banco! Eu não, eu não vou a lugar nenhum, e aí pesa". Ainda lembra um episódio de decepção, em suas palavras, gigantesca, com um familiar que, não compreendendo a posição de Mia, insistiu para visitá-la. Mia reagiu dizendo: "Não, eu não vou abrir a porta de minha casa!".

Essa mesma comparação e revolta aparece na fala de Bia, ao contar sobre a contaminação da sogra pelo coronavírus, que precisou ser hospitalizada: "Não pode que as pessoas que não estão cuidando tão ok e a gente que tá cuidando, a gente que tá com privações, tá pior ainda. Daí eu fiquei mais revoltada ainda". Lembra ainda como sentia raiva ao entrar nas redes sociais e ver outras pessoas descumprindo o isolamento. Ela se pergunta: "Por que a pessoa tá fazendo alguma coisa, e eu não posso?!".

Sol afirma ter percebido um lado maldoso nas pessoas, "Aquele lado que não pensa em nada. Só em si". Gal sentia-se cada vez mais ansiosa e estressada, pois não via nas outras pessoas a mesma colaboração para combater a pandemia, o que a fazia ter uma sensação de que aquele momento nunca acabaria: "Eu via um péssimo futuro, que iam morrer muitas pessoas, que eu nunca ia voltar à rotina normal".

Ao considerarmos a necessidade de adesão das medidas restritivas durante a pandemia, é possível identificar que alguns grupos demonstram resistência em seguir as orientações impostas aos coletivos, adotando comportamentos mais individualistas. Noal (2020) destaca que as várias tentativas de fazer o isolamento social na China somente foi possível após uma mudança de discurso ante a população, convidando todos a praticarem o altruísmo. No momento em que a população foi convidada a ficar em casa, foi solicitado que fizessem isso não apenas para si mesmo, mas para as pessoas em volta. Ao compararmos essa estratégia utilizada com o Brasil, é necessário considerarmos a influência da filosofia budista na cultura oriental como uma variável potente para mobilizar os coletivos. De acordo com Gyatso (2001), o budismo tem como base elementar a prática do altruísmo, da compaixão e da superação do ego, diferentemente da cultura mais individualista que marca a cultura ocidental.

Fazer com que a população siga as medidas restritivas é, sem dúvida, o maior desafio dos gestores em saúde. A baixa adesão ao isolamento não resulta apenas no aumento de infectados, que pode sobrecarregar os serviços de saúde, mas também no aumento da revolta e da desesperança daqueles que estão assumindo, de forma rigorosa, as determinações sanitárias. As inúmeras privações advindas com o isolamento acabam se tornando ainda piores quando defrontadas ao fato de que várias pessoas estão seguindo normalmente suas vidas. É possível perceber que essa colaboração coletiva é esperada pelas entrevistadas, como um elemento de conforto diante das privações e de esperança ante um futuro repleto de medos.

3.5. PRODUTIVIDADE E DESATENÇÃO

O trabalho no ambiente doméstico se tornou um empecilho para o trabalho formal, uma vez que há sempre outras atividades a serem feitas, o que ocasiona constante preocupação e desatenção. Expressões como "concentração", "vontade", "concentrar em nada", "fazer nada", "não queria produzir", "me senti burra", e "duvidar da minha capacidade" simbolizam esse cenário de desgaste mental e dificuldades para produzir.

O desabafo de Ju sintetiza o sentimento da maioria das entrevistadas:

Como mexeu com a concentração, com a vontade de fazer as coisas... [. . .] As atividades que tem dentro de casa me sobrecarregam muito, porque eu tô aqui o tempo todo, eu tô vendo tudo o que eu tenho que fazer, pra mim foi muito difícil, né... (Ju).


Da mesma forma, Gal também destaca sua dificuldade de concentração. "No início, eu não conseguia me concentrar em nada, porque eu sempre tive muita dificuldade em estudar em casa, eu sempre ia na biblioteca da universidade. Daí eu tive que me adaptar a estudar em casa".

Em relação a essa sobrecarga, aliada à baixa produtividade, a entrevistada Lis, professora, relembra: "Então eu tava num esgotamento já muito grande, assim [. . .]. E eu não queria ir pra reunião, eu não queria fazer nada, eu não queria produzir. Porque tu sabe que, como eu tava finalizando o mestrado, eu precisava produzir alguma coisa...". Ela apresenta grande sofrimento por perder o ambiente de trabalho antigo, no qual tinha grandes amizades, e por precisar se adequar à realidade virtual.

A baixa autoestima também foi caracterizada em dois relatos. Mia, ao falar sobre suas dificuldades de adaptação ao trabalho remoto, desabafa:

Nós não tivemos, em termos institucionais, uma orientação para esse novo período [. . .] cada um por si, naquela coisa de erro e acerto né... [. . .]. E aí fomos indo. E isso psicologicamente me abalou muito [. . .]. E aí eu já comecei a duvidar da minha capacidade profissional (Mia).


Ane é aluna da graduação, vive com a mãe e manteve suas aulas à distância e avalia:

Quando os professores começaram a mandar muita coisa [. . .], eles mandavam muitos arquivos e atividades pra fazer, e aquilo começou a me de deixar muito angustiada, porque eu começava a ler meu material, e era como se eu não tivesse lido nada né. Eu comecei a... Até eu comecei a me sentir uma pessoa bem burra (Ane).


Esse sentimento de baixa produtividade acadêmica extrapola o universo desta pesquisa e ganha proporções globais, como apontam estudos que já evidenciam uma grande baixa na produção científica de mulheres confinadas devido àpandemia (Flaherty, 2020; Kitchener, 2020).

Em entrevista à jornalista Analía Llorente (2020), Elke Van Hoof afirmou que a primeira consequência psicológica da quarentena pode ser a sensação de sobrecarga e de não ser capaz de lidar com as obrigações. A autora destaca que a falta de atenção à assistência psicológica por parte das autoridades trará consequências tanto na área da saúde quanto no setor econômico, após o fim do isolamento. A razão disso é que o sofrimento decorrente do estresse e esgotamento durante o isolamento será responsável pelo adoecimento da população, afetando a disponibilidade para o trabalho e consequentemente a retomada da economia após a pandemia (Llorente, 2020).

Com o isolamento, o ambiente doméstico tem se mostrado um dificultador para o trabalho formal. A mudança abrupta na rotina exigiu da população uma adaptação repentina e complexa. No caso das entrevistadas, o acúmulo de trabalho formal e doméstico, assim como a aquisição de novas funções, como aprender a utilizar as plataformas digitais e estudar à distância, trouxe sobrecarga e esgotamento, além da dificuldade de atenção e baixa produtividade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste estudo, de entender como foi experiência subjetiva do isolamento social para as pessoas mais vulneráveis ao sofrimento mental, foi atingido. Com base nos relatos das entrevistadas, foi possível identificar que o isolamento social imposto com a chegada da pandemia de covid-19 não apenas intensificou quadros de sofrimento emocional já existentes, como revelou preocupações e sentimentos até então desconhecidos. Os relatos evidenciam a presença de medos diante dos riscos e das incertezas sobre o futuro, desenvolvimento de comportamentos compulsivos e prejudiciais, como o uso de substâncias, o comer em excesso, compras e limpeza, revolta ante a falta de colaboração social para combater o vírus, sobrecarga devido à dupla jornada de trabalho em home office, dificuldades de concentração e desempenho das funções, e crises de ansiedade agudas.

Esta pesquisa trouxe elementos importantes sobre a vivência de pessoas que admitiram grande sofrimento mental durante o isolamento social e que necessitaram de assistência médica e psicológica para enfrentar esse momento de crise. No entanto, esses depoimentos representam uma parcela muito específica da população brasileira, de mulheres, com alto nível de instrução e que pouco ou nada foram afetadas financeiramente com a pandemia (com uma exceção).

As características das participantes têm similaridades com o perfil apresentado no estudo de Qiu et al. (2020), como sendo característico de pessoas mais vulneráveis a desenvolver quadros de estresse, ansiedade, depressão e comportamentos compulsivos. Pensando nisso, os dados apresentados justificam a necessidade de maior atenção aos indivíduos com perfis análogos aos encontrados nessa pesquisa. A assistência em saúde mental nesse período deve prezar pela proteção física do indivíduo, não o expondo aos riscos de contaminação viral, além de buscar preservar a suficiência dos serviços de saúde com os cuidados aos pacientes contaminados.

Dessa forma, a melhor estratégia é a utilização do teleatendimento, que tem sido uma alternativa eficaz diante desse contexto. Além disso, é necessário ampliar a discussão sobre as condições laborais de mulheres no trabalho remoto, principalmente mães, a fim de prestar apoio, assessorias e, ou, subsídios para tornar a atividade laboral uma realidade possível, com menos sofrimento e inseguranças quanto a possíveis demissões.

Por fim, entende-se que os desafios vividos nesse período representam experiências muito singulares e subjetivas da realidade dessas mulheres, e que, obviamente, não seriam as mesmas de grupos com características diferentes. Com base nisso, acredita-se ser necessário estudar outros perfis populacionais, para compreender outras questões que possam produzir adoecimento e que não foram anunciadas nestes relatos.

REFERÊNCIAS

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Texto recebido em 5 de junho de 2020 e aprovado para publicação em 12 de fevereiro de 2021.

Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.


 

 

* Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestra em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Endereço: Rua Gonçalves Dias, 354 - Funcionários, Belo Horizonte-MG, Brasil. CEP: 30140-090. E-mail: lauradalcin9@gmail.com.
** Pós-doutorado em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e bolsista de produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2 Doutor, professor no Departamento de Psicologia na PUC Minas.

 

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