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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.27 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2021

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p205-223 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2021v27n1p205-223

 

Psicologia social comunitária na escola: um projeto de extensão mediado por oficinas estéticas

 

Community psychology in schools: an extension project mediated by art workshops

 

La psicología comunitaria en la escuela: un proyecto de extensión mediado por talleres de arte

 

 

Gabriel Bueno*; Letícia de Cisne Branco**; Amanda Ferreira da Silva***; Simone do Prado Pólido****

 

 


Resumo

Este trabalho articula possíveis aproximações entre a Psicologia Social Comunitária e o espaço escolar, a partir da experiência obtida em um projeto de extensão realizado em uma escola pública de Florianópolis. Por meio de embasamentos teóricos da Psicologia Social Crítica e da Psicologia Social Comunitária, o projeto desenvolveu atividades com crianças do 4º ano do ensino fundamental. Com base nos pressupostos teóricos e ancorados por aspectos éticos e políticos, visamos a problematizar a demanda trazida pela escola no que tange à necessidade de trabalhar com os chamados "alunos-problema" e, consequentemente, com a "turma-problema". Demonstramos como foi possível promover um movimento para desconstruir estereótipos, promover (res)significações e afrouxar as amarras do controle e da disciplina, utilizando como ferramentas o Teatro do Oprimido, oficinas estéticas e elementos lúdicos da história infantil. Por fim, o texto problematiza o papel da Psicologia nas dinâmicas das relações de poder no contexto escolar.

Palavras-chave: Psicologia Social Comunitária. Escola. Oficinas estéticas. Teatro do Oprimido. Relato de experiência.


Abstract

This article articulates approaches between Community Psychology and the educational context, based on the experience gained on an academic extension project held in a state school in Florianópolis. Through the theoretical basis of Critical Social Psychology and Social-Community Psychology, the project carried out activities with 4th grade elementary school children. Hinged on the theoretical postulates and rooted in the ethical and political aspects, we aim to problematize the demand brought by the school in the need to work with the so-called "problematic students" and consequently with the "problematic class". We have demonstrated how it was possible to promote a movement to deconstruct stereotypes, promote (re)significations and loosen the bonds of control and discipline, using, as tools, the Theatre of the Oppressed, photographic workshops and ludic elements of the child’s story. Finally, the text proposes a reflection about the responsibility of Psychology in the dynamics of power relations in the educational context.

Keywords: Community Psychology. School. Art workshops. Theatre of the Oppressed. Experience report.


Resumen

Este artículo articula los posibles diálogos de la Psicología Comunitaria con el ámbito escolar, a partir de una experiencia obtenida en un proyecto de extensión realizado en una escuela pública de Florianópolis. Desde las bases teóricas de la Psicología Social Crítica y de la psicología comunitaria, el proyecto desarrolló sus actividades con niños del 4o grado de la escuela primaria. A partir de estas referencias, reflexionamos sobre la demanda traída por la escuela de trabajar con los dichos "alumnos problemáticos" y consecuentemente con la "clase problemática". Demostramos en nuestro relato de experiencia como fue posible promover un movimiento para deconstruir estereotipos, promover (re)significaciones y aflojar las amarras del control y de la disciplina, utilizando como herramientas el Teatro del Oprimido, talleres fotográficos y elementos lúdicos de la historia infantil. Por último, el texto piensa sobre la Psicología en las dinámicas de las relaciones de poder en ese contexto.

Palabras clave: Psicología Comunitaria. Escuela. Talleres de arte. Teatro del Oprimido. Relato de experiencia.


1. INTRODUÇÃO

O projeto de extensão que é objeto de análise deste artigo procurou lançar-se no desafio de tensionar as demandas colocadas pela equipe pedagógica de uma escola municipal, considerando os pressupostos éticos e críticos da Psicologia Social Comunitária. As questões colocadas por parte da escola para os graduandos do Curso de Psicologia foram, em sua maioria, no sentido de auxiliar na contenção de uma "turma-problema", na qual o mau comportamento dos alunos era o principal sintoma a ser trabalhado. No entanto, nosso grupo caminhou noutra direção, buscando abordar, junto às crianças, a maneira como estavam estabelecidas as relações de pertencimento na instituição e como as relações entre os sujeitos dessa comunidade escolar eram percebidas por eles.

O projeto de extensão foi realizado pelo Grupo de Pesquisa e Extensão de Psicologia Social Comunitária da Faculdade Cesusc (GPSC), em parceria com uma escola da rede pública municipal de Florianópolis, Estado de Santa Catarina, Brasil, no decorrer do ano de 2017. O primeiro semestre teve como foco a aproximação do campo e a criação de vínculos, enquanto o segundo foi dedicado às atividades com as crianças, etapa durante a qual foram realizados encontros semanais, ao longo de um período de três meses, com 21 alunos do 4º ano do ensino fundamental. A metodologia escolhida para essa finalidade foi a promoção de oficinas estéticas e dinâmicas de grupo fundamentadas nos paradigmas da Psicologia Comunitária (Freitas, 1998; Martín-Baró, 1996), na teoria da Psicologia Sócio-histórica (Bock, Gonçalves, & Furtado, 2007), inspiradas em técnicas do Teatro do Oprimido (Boal, 2002; 2005) e no favorecimento de bons encontros (Sawaia, 1999).

Ao longo do texto, e a partir da experiência de campo, procuramos abordar os pontos em que as teorias da Psicologia Social Crítica e da Psicologia Social Comunitária encontram resistências da instituição escolar para se efetivar em sua práxis, mas também destacando aquelas experiências nas quais foi possível dar passos significativos em direção aos paradigmas éticos e políticos contemplados por tais perspectivas de trabalho da Psicologia. Inicialmente, será apresentado um panorama histórico e teórico da instituição escolar e da Psicologia inserida nesse espaço. Na sequência, demarca-se um lugar de fala assentado na Psicologia Social Crítica, na qual fundamos a análise e a intervenção, seguido pela exposição do relato da experiência. Por fim, convocamos um debate acerca das atividades realizadas na instituição escolar, com ênfase nos encontros e desencontros entre as demandas escolares e os pressupostos éticos e teóricos da Psicologia Social Comunitária nesse contexto.

Qual a real finalidade da instituição escolar? É com essa questão que iniciamos os apontamentos sobre o meio escolar e, para respondê-la, enfatizamos primeiramente o que podemos chamar pedagogia dos corpos. Para Foucault (1991), existe uma relação bastante próxima entre a criação de corpos dóceis e a instituição escolar. A coletivização de um padrão hegemônico de comportamentos ditos normais é fundamento para a sobrevivência de um sistema econômico e social criado pela burguesia, durante e após a Revolução Industrial. Dessa forma, entende-se que, ao buscar a normalização, exerce-se certo poder sobre os pensamentos e as ações, instituindo formas de ser e pensar. Segundo Heckert e Rocha (2012, p. 87), "A operação de normalização consiste em partir do normal e do estudo das normalidades, ou seja, será em função do normal que as normas serão fixadas, distribuídas".

Confirmando essa hipótese, a história demonstra que a instituição escolar formal está diretamente vinculada à manutenção de um sistema social e econômico. Coimbra (1989), ao analisar as funções da instituição escolar, afirma que, a partir do século XVII, a escola surge em moldes muito aproximados aos que ainda vigoram, cuja finalidade é o mercado de trabalho, e que, já naquele período, o objetivo da educação não se reduzia à necessidade de mão de obra para a indústria, pois a burguesia, ao formar "bons cidadãos", também pretendia disciplinar e garantir a manutenção das funções sociais.

Para Patto (1997, p. 55), "Persiste na escola a ideologia do dom e a defesa da meritocracia", e, principalmente em países durante muito tempo denominados subdesenvolvidos, ocorre uma diferenciação nítida entre as escolas que servem à população pobre e aquelas que servem às elites econômicas. A autora deixa claro que o mecanismo dessa polarização do saber leva a dois únicos caminhos: um que prioriza o fracasso, e outro que tem como finalidade o sucesso, este legitimado somente pelo ensino formal, recusando outras formas de conhecer e pensar que extrapolem a razão produtivista.

Assim, demarcando, desde seu surgimento, uma divisão social, a instituição escolar propagou a cultura dominante com base no modelo ideal de ser, considerando a capacidade produtiva dos corpos (Heckert, & Rocha, 2012). Paulo Freire situa a Pedagogia no foco do debate político, ao introduzir a discussão em torno da educação libertária, apontando uma saída à padronização na qual os papéis sociais de professor e aluno se tornem dialéticos, em que ambos aprendam e ensinem, colocando-se como sujeitos do processo:

O antagonismo entre as duas concepções, uma, a "bancária", que serve à dominação; outra, a problematizadora, que serve à libertação, toma corpo exatamente aí. Enquanto a primeira, necessariamente, mantém a contradição educador-educandos, a segunda realiza a superação. Para manter a contradição, a concepção "bancária" nega a dialogicidade como essência da educação e se faz antidialógica (Freire, 1970, p. 71).


A crítica de Freire ao modelo de educação bancária revela-se análoga à análise da presença da Psicologia nos espaços educacionais. Em seus primórdios, a Psicologia Escolar deteve-se sobre a teoria da privação cultural (Freire, 1997), cujo objetivo era a adaptação do aluno ao contexto escolar, com o uso de instrumentos para avaliação psicológica. A busca pelo diagnóstico e a ânsia pela correção dos que extrapolavam a normatividade estabelecida eram as principais premissas consideradas (Oliveira, & Marinho-Araújo, 2009), recaindo principalmente sobre os chamados deficientes culturais (Patto, 1997), entendidos como crianças que não correspondiam aos padrões hegemônicos culturais e intelectuais. As dificuldades dessas crianças eram creditadas às suas características individuais, sem considerar as condições histórico-culturais de desenvolvimento e as relações de poder existentes, e reforçadas no espaço escolar:

A aplicação desse modelo médico de intervenção na escola conduziu à patologização e psicologização do espaço escolar por atribuir ao próprio aluno a culpa por suas dificuldades de aprendizagem e por isentar outras instâncias das suas responsabilidades educativas (Oliveira & Marinho-Araújo, 2009, p. 649).


Em outras palavras, a construção da relação Psicologia-escola é historicamente marcada pela finalidade de corrigir condutas desviantes, sendo os primeiros passos da Psicologia no âmbito escolar alinhados a um caminhar positivista. Não é raro encontrarmos psicólogos que apliquem testes com o propósito de homogeneizar as turmas, de verificar se os alunos estão maduros para serem alfabetizados ou até mesmo de diagnosticar déficits de inteligência (Coimbra, 1989). Logo, a atuação da Psicologia em escolas consideradas de ensino tradicional, praticantes de uma educação bancária e de uma lógica essencialmente produtivista, tende a se aproximar de práticas excludentes e normatizadoras.

As amarras do sistema escolar, no entanto, podem se mostrar flexíveis se o profissional da educação estiver advertido das relações de poder historicamente presentes nesses espaços e, contrário a elas, sustentar uma práxis orientada àformação crítica e emancipada daqueles que frequentam tais instituições. A atuação da Psicologia, quando alinhada com a Pedagogia libertária ou com outras vertentes epistemológicas que tenham como base perspectivas socialmente engajadas no exercício da ética e da formação crítica, pode mediar processos de educação que se alicerçam no acolhimento da diferença, na valorização das histórias coletivas e individuais e no exercício da autonomia. Tal práxis pode, por sua vez, favorecer movimentos de emancipação social ao incentivar a cidadania e socializar o conhecimento, corroborando com uma perspectiva ética e política de superação de antagonismos e desigualdades sociais (Zanella, 2003). Nesse sentido, a escola pode operar na desconstrução de uma ideologia que exclui sujeitos e designa lugares cristalizados na dinâmica social.

Para se contrapor às expectativas de "responder às demandas escolares a partir de um modelo psicoterápico clínico" (Alves, & Silva, 2006, p. 191) e suscitar uma atuação mais abrangente, ética e consciente, a Psicologia Escolar pode estabelecer pontos de encontro com os pressupostos teóricos da Psicologia Social, a qual prioriza um olhar crítico para as relações escolares, articulando-as também com a realidade brasileira.

Apesar das relações de poder existentes em todo sistema de educação (Foucault, 2014) e da hierarquia de saberes no contexto da escola, com a prevalência do saber pedagógico sobre o saber psicológico, nosso foco nesta análise não está em polarizar o papel do psicólogo ou em valorar as práticas das diferentes abordagens. O ponto central de onde parte nosso projeto é a discussão que aponta para a necessidade de a Psicologia refletir a favor "do que" e "de quem" está sua atuação na instituição escolar, pois é certo que o clamor por diagnósticos e por padronização de comportamentos ainda está no repertório de muitas equipes pedagógicas. Por outro lado, nossa reflexão demonstra que a Psicologia, quando consciente de "seu lugar de fala", pode amenizar desencontros com relação àsexpectativas do corpo escolar e as reais possibilidades éticas de sua atuação, conforme relataremos mais adiante.

2. MÉTODO

O projeto de extensão foi realizado a partir do encontro de diferentes frentes teóricas da Psicologia que, no entanto, reúnem perspectivas éticase epistemológicas capazes de dialogar entre si, para se pensar produção de conhecimento e processos de intervenção em Psicologia Social. Partindo dos preceitos éticos e políticos da Psicologia Social Comunitária, estivemos sempre nos questionando "para que" e "para quem" cada atividade no espaço escolar era realizada, deixando para os sujeitos participantes os processos decisórios e a definição das demandas. Como inspiração para realizar os encontros semanais com as crianças, utilizamos o protagonismo da ação do Teatro do Oprimido, o qual também oferece técnicas de trabalho com grupos comunitários. Por fim, cada encontro realizado e cada acontecimento a ser analisado e refletido contou com a base teórica da Psicologia Social Crítica.

Introduzido por Martín-Baró (1996), um importante questionamento problematiza o papel da Psicologia e a serviço "de quem" e "de que" ela está engajada. Nos espaços institucionais ou comunitários, onde há diferentes hierarquias e interesses conflitantes em jogo, é difícil para a Psicologia abster-se de um posicionamento, o que acaba por favorecer algum grupo em detrimento de outros. Na escola (esse microcosmo das formas de relação presentes em nossa sociedade e lugar de sustentação dos valores e das práticas que a constituem), as demandas e necessidades de cada segmento que a compõem são muito díspares e, por vezes, antagônicas.

Em nosso campo de inserção, não foi diferente. As demandas apresentadas pela equipe pedagógica não eram necessariamente as mesmas vividas pelas crianças. Enquanto a primeira tinha como questionamento o mau comportamento apresentado por uma turma de 4º ano do ensino fundamental, o que as crianças apresentaram foram dificuldades em lidar com as relações de violência perpetradas na escola, como bullying, estereótipos enclausurantes e racismo.

Para que essas questões viessem à tona, ao mesmo tempo em que nosso grupo elaborava um planejamento para a viabilização de cada um dos encontros, as atividades eram pensadas como dispositivos para o surgimento de acontecimentos, abrindo para que a comunidade fosse a propositora das demandas e, junto com ela, definíssemos o ritmo e a metodologia de trabalho. Ou seja, embora previamente pensados, os encontros também permaneciam abertos a um vir a ser imprevisível. Dessa forma, os objetivos estabelecidos não eram cumpridos na maior parte das vezes, pois o que se esperava era, de fato, que novos objetivos surgissem no movimento do grupo, sustentando o paradigma de que é o grupo quem define e sabe de suas necessidades e como quer ou consegue abordá-las (Freitas, 1998).

As oficinas foram realizadas entre agosto e dezembro de 2017 e tiveram frequência semanal, com encontros todas as segundas-feiras, logo após o horário do intervalo, com início às 15h40min e término às 17h. As atividades ocupavam diferentes locais da escola: sala de aula, biblioteca, refeitório e quadra de esportes. Cada encontro teve como mote norteador atividades vinculadas à produção de uma peça teatral, tais como a criação do roteiro, a elaboração de personagens, figurinos, cenários e momentos de ensaios. As crianças se organizavam em pequenos grupos de interesse, estes mediados pelas estudantes de Psicologia, e tinham a possibilidade de mudarem de atividades e de papel na peça conforme desejassem.

O roteiro desenvolvido pelas crianças teve como seu eixo balizador as relações afetivas que faziam parte do cotidiano compartilhado entre elas. As personagens da história criada estavam associadas a afetos como ciúmes, inveja, cobiça e gestos de reconciliação e amizade. A narrativa se desenrolou com base nas relações estabelecidas entre um casal de irmãos gigantes que brigam entre si, uma bruxa e uma princesa conciliadoras, uma competição musical, um grupo de ninjas. Como os papéis estavam disponíveis a todos, as crianças podiam se experimentar na atuação das diversas personagens, experienciando, assim, afetos e lugares distintos no desenrolar do enredo.

Os temas debatidos na peça, o vínculo entre as personagens e as atividades de cada encontro foram concebidas como processos mediadores para se trabalharem as relações entre as próprias crianças e o contexto escolar. A professora da turma era descolada de seu lugar habitual para conceder espaço para que as crianças organizassem as atividades; algumas relações estereotipadas e hostis entre os estudantes puderam ser ressignificadas ao experimentarem outros devires; espaços de fala e de criação se estabeleceram conforme as oficinas aconteciam. Pautar a formulação desses encontros segundo o Teatro do Oprimido possibilitou que questões do cotidiano daquela comunidade fossem debatidas, exploradas e ressignificadas, concebendo a experiência teatral como uma ação de (re)configuração do espaço comunitário, do espaço político (Boal, 2002).

Na relação com as crianças, foi necessário estarmos sensíveis a escutar demandas não elaboradas formalmente, as quais surgiam conforme era estabelecido o vínculo conosco. As atividades inspiradas nas técnicas do Teatro do Oprimido favoreceram a espontaneidade no grupo, abrindo caminhos para que conteúdos velados se manifestassem. Os encontros, que podiam ser interpretados pela equipe pedagógica como "bagunça" ou "perda do controle", suscitavam justamente o caos (Deleuze, & Guattari, 2010b), este entendido como abertura para um leque de possibilidades que, por vezes, são reprimidas pela ordem dos regimes disciplinares. O projeto de extensão procurou sustentar como método essa disponibilidade para o imprevisível decorrente dos encontros e da experiência humana compartilhada, inspirando-se também, para tanto, nos paradigmas da pesquisa-intervenção:

O acontecimento em foco na pesquisa-intervenção não se explica pelo estado de coisa que o suscita, mas pelo momento marcado por uma espontaneidade rebelde. Vai, por isso, sempre além daquelas condições que o criaram, produz a diferença, o inédito, um novo espaço-tempo (Paulon, 2005, p. 21).


Assim, a metodologia escolhida para esse projeto de extensão se alia aos pressupostos éticos, políticos e estéticos das referências epistemológicas que basearam tal experiência. Ao não abdicar de problematizar as relações de poder presentes no espaço escolar, o método orientou-se pela sensibilidade às histórias singulares que se apresentavam, compreendendo essas histórias na dinâmica daquela comunidade escolar. Sentidos e significados foram acolhidos como balizadores das experiências vividas pelas crianças participantes, não como instituintes de identidades fixas, mas em um contínuo devir na produção dos sujeitos em questão, movimento autopoiético com vistas para um recriar-se constante (Fonseca, Kirst, Oliveira, D’Ávila, & Marsilac, 2006).

3. DISCUSSÃO

Adentrar no lócus escolar tendo como principais instrumentos os aparatos éticos e políticos da Psicologia Social Comunitária indicou ao grupo um caminho peculiar a ser traçado no que diz respeito à posição ocupada por nós naquele contexto e às intervenções que seriam elaboradas junto àquela comunidade. Assim, orientados pelos paradigmas epistemológicos da Psicologia Social Comunitária, podemos apontar três pontos fortes de ancoragem que marcaram nossas intervenções:

1) caminhar entre as demandas oriundas da equipe pedagógica e os movimentos desejantes das crianças;

2) estar sensível para a necessidade de abdicar dos objetivos previamente estabeleci-dos e criar outros com a participação das crianças; e

3) transformar algumas relações de controle e disciplina em situações que favore-cessem bons encontros.


4. CAMINHAR ENTRE DEMANDAS, DESEJO E PROTAGONISMO

As primeiras práticas foram planejadas com base na demanda da coordenação pedagógica, por parte de quem o rótulo de turma-problema era anunciado explicitamente. Nesse aspecto, questões como discriminação, agressividade e desrespeito foram apontados como características presentes no grupo do 4º ano. A coordenação pedagógica e a diretoria inicialmente deixaram claro suas intenções com relação à necessidade de trabalhar o "comportamento" dos alunos que engendravam a bagunça em sala.

No primeiro encontro de atividade com as crianças, já questionamos se a demanda trazida pela coordenação correspondia à dinâmica e às relações estabelecidas dentro do grupo, as quais sem dúvidas apresentavam conflitos. Trabalhar o conflito era nossa base inicial, porém moldar comportamentos e individualizar o problema não seria nosso objetivo. Em outras palavras, foi possível perceber que qualquer processo de transformação do grupo somente seria viável se escolhêssemos algumas demandas advindas de questões e necessidades apresentadas pelas crianças, e se, além disso, trabalhássemos as relações estabelecidas entre elas. Destaca-se assim o primeiro momento importante da práxis, no qual o foco deveria estar na relação e não no comportamento individual, e em que o conflito se mostrava não como um problema a ser sanado, mas como um acontecimento para processos de ressignificações (Rocha, & Aguiar, 2003).

Desse modo, conflitos entre alunos foram os primeiros desafios e oportunidades a serem encarados por nós, processo durante o qual se tornaram fundamentais as ferramentas para ressignificar as relações dadas naquela turma de 4º ano, problematizando os papéis sociais projetados sobre alguns alunos apontados como "problema" para o grupo. Destaca-se, assim, a escolha do Teatro do Oprimido, método estético e político que questiona lugares sociais cristalizados, as dinâmicas das relações de poder e aproxima as intervenções da Psicologia com a potência criadora e de resistência da arte (Boal, 2002).

Na dinâmica dos encontros, o foco foi o exercício do protagonismo das crianças, desde a construção do roteiro, produção do cenário e figurino, até a escolha das personagens que gostariam de interpretar ao longo das oficinas e na apresentação final. Importante destacar que a escolha das personagens não era fixa: as crianças puderam trocar de papéis ao longo das oficinas, conforme desejassem. Percebemos que o processo de ressignificação das relações aluno-aluno passou a se evidenciar no exercício das multiplicidades de papéis experimentados, com as crianças transitando das personagens principais às coadjuvantes ou figurantes. O protagonismo vivenciado não foi a da personagem de destaque ou do exercício do poder, mas o protagonismo da escolha e a diversidade de experiências, pois as crianças puderam vivenciar diversas posições sociais ao longo dos encontros.

Essa dinâmica de experimentação por parte das crianças, possibilitou o que podemos chamar práticas de liberdade. Para Ribas (2017), as ideias de Foucault acerca das práticas de liberdade são movimentos dentro das relações de poder, movimentos estes que levam a um novo possível, a outras formas de ser, fugindo das normatizações ou estigmas. Na prática, isso ocorreu com a flexibilização da função de cada um na construção da peça. O roteiro sofreu alterações do início ao fim do processo, assim como as crianças também circulavam conforme o desejo de serem atores ou produtores, posições sempre em aberto.

Favorecendo que algumas tradicionais amarras do espaço escolar fossem afrouxadas a partir dos movimentos das práticas de liberdade que as oficinas estéticas foram propiciando às crianças participantes, percebemos que alguns desses estudantes passaram a transitar de forma mais espontânea por entre desejos. Compreendemos desejo aqui como "todas as formas de vontade de viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma outra sociedade, outra percepção de mundo, outros sistemas de valores" (Guattari, & Rolnik, 1996, p. 215). Segundo os autores, o desejo é um conceito que impulsiona o sujeito a lançar-se na produção e na criação do seu vivido; é fonte de movimento e experimentação que pode se posicionar como resistência àsformas de poder que procuram estagnar as possibilidades de vir a ser. Logo, o desejo não é estanque ou propriedade, mas circulação e produção das/nas relações vividas (Deleuze, & Guattari, 2010a).

Dessa maneira, processos de ressignificação e de liberdade se deram justamente quando as crianças se esquivaram das normas, ou seja, quando subverteram os estereótipos, ocupando posições outras no espaço escolar. Pontua-se aqui a importância da medição no processo de ampliação de autonomia e, consequentemente, na maneira de as crianças ressignificarem suas possibilidades de ser. Neste recorte, é possível exemplificar o caso de Antônia (nome fictício), uma aluna que quase não falava, interagia pouco com a turma, durante as aulas e intervalos, tinha contato restrito com os colegas. Sua permanência na sala, às vezes, era difícil por queixar-se de muita dor no corpo e, em decorrência desse fato, era recorrente sua presença na sala da orientação pedagógica, onde passava tempo considerável. Antônia frequentemente faltava, e sua participação, quando ocorria, era desmotivada, não demonstrando interesse pelas atividades propostas. A maneira como as professoras a tratavam, por conta de suas dificuldades de aprendizagem, distanciavam-na da turma, ou seja, a metodologia e a didática usadas com Antônia favoreciam sua exclusão por deixá-la ainda mais isolada, favorecendo a cristalização de sua identidade em torno de uma imagem estigmatizada, em razão dessa distância que havia na relação entre ela e os demais alunos e professores.

Durante o desenvolvimento das atividades propostas pelo grupo de extensão, inicialmente, Antônia interagia pouco; às vezes, não comparecia aos encontros e, quando comparecia, participava timidamente. Depois de algumas semanas, no entanto, Antônia passou a demonstrar interesse pelos figurinos e demais atividades envolvidas na produção da peça, iniciando, dessa maneira, um movimento no grupo e, com ele, protagonizando seu espaço de pertencimento. Manifestava seus gostos, e sua aproximação com a turma se dava, pouco a pouco, durante a execução das atividades. Nesses momentos, a timidez já não era mais tão marcante, pois vinha demonstrando interesse e disposição para as atividades, participando assiduamente da montagem dos figurinos, pedindo e dando sua opinião a respeito. Antônia então passou também a manifestar interesse pelas personagens da peça e pela possibilidade de experimentar-se como atriz. No fim, acabou sendo uma das personagens da história, no caso, uma "apresentadora" de um evento musical (personagem simbólico para quem, a princípio, tinha muita dificuldade de se "apresentar" no grupo).

Pudemos notar que Antônia foi, então, ressignificando seu papel no grupo, experimentando diversas atividades, cada uma de acordo com as suas possibilidades e, ou, disposição momentâneas. Importante reforçar que em nenhum momento Antônia foi direcionada a ser uma ou outra personagem, assim como também não foi conduzida a escolher determinada atividade. Nossa mediação se deu em incentivar Antônia a partir de seu próprio movimento, contribuindo para que se sentisse segura e cada vez mais distante dos estigmas que podavam suas possibilidades de ser.

Concomitantemente, conforme relato da professora, diminuiu a ausência de Antônia nas atividades em aula, e as dores em seu corpo já não apareciam com tanta frequência. O processo pelo qual passou Antônia teve repercussão na turma, pois, devido a essa construção coletiva, da qual em alguns momentos a professora também se fez participante, o grupo tornou-se mais acolhedor das diferenças, reduzindo a frequência dos comportamentos discriminatórios e de exclusão. Percebemos que o lugar de Antônia na escola foi ressignificado após as atividades vivenciadas nas oficinas, e esse movimento se deu tanto de Antônia para com suas possibilidades de ser quanto do grupo para com ela.

5. O ABRIR MÃO DE RESULTADOS ESPERADOS

O posicionamento ético de primar pela produção e circulação dos desejos entre as crianças e possibilitar relações flexibilizadas pelas práticas de liberdade (Ribas, 2017) não nos privou de continuar planejando e organizando os encontros. Entretanto, esse modo de abordar a prática se potencializou também como um exercício para o nosso grupo (de estudantes de Psicologia), no sentido de desenvolver um olhar para o desdobrar e o desnudar das expectativas. Por vezes, nós nos questionamos sobre como continuaríamos a manter uma proposta baseada em resultados práticos, por exemplo, a espera de uma apresentação final de uma peça teatral, já que as crianças, quanto mais envolvidas na experimentação de novos lugares possíveis, mais se distanciavam de um engajamento para a apresentação. Abrir mão de resultados garantidos nesse sentido foi, portanto, primordial.

O improviso tomou conta de nossas atividades e se fez presente como método, justamente por ser uma maneira de advir o desejo no processo de experimentar novos possíveis. Percebemos que a apresentação da peça era um detalhe quase esquecido pelas crianças; e o que, de fato, as envolvia era justamente a flexibilidade de não precisarem se manter na posição de aluno, experimentando outras formas de ser naquele espaço.

Ao aluno Enzo (nome fictício), por exemplo, os colegas designaram um dos papéis principais no enredo, atribuição que ele acatou e assim permaneceu por grande parte dos ensaios e oficinas. Enzoé considerado pelos colegas e pela equipe pedagógica uma criança "popular", extrovertida e um pouco indisciplinada. Porém, durante os ensaios, passou a demonstrar timidez e resistência em realizar as tarefas propostas, sugerindo até mesmo o uso de uma máscara para cobrir seu rosto durante a apresentação. Enzo,enfim, pediu para trocar de personagem, e o novo papel que desejava interpretar era o de um ninja, uma personagem coadjuvante que não tinha nenhuma fala e trazia o rosto coberto por uma máscara.

Enzo relatou certo desconforto em ocupar esse lugar designado pelo contexto escolar: de aluno popular, responsável pela bagunça e centro da atenção dos colegas e dos professores. O contexto sustentava um discurso estigmatizante que o cristalizava em uma identidade estagnada em seu devir. As relações estabelecidas naquela situação impediam que outros olhares fossem tecidos sobre a singularidade de alguns alunos, inibindo-os perante o lançar-se em experiências de criação e produção de seu próprio vir a ser.

Como a montagem da peça era um processo aberto, Enzo pôde explorar outras personagens e outras formas de participar dos encontros. A personagem que havia sido criado para ele, reforçando a maneira como o viam na escola, foi sendo desconstruída, assim como o lugar que Enzo ocupava no grupo. Aquela personagem principal deixou de existir, e o enredo que vinha sendo ensaiado teve de ser modificado, ou seja, renunciou-se ao que estava previamente planejado para dar lugar à oportunidade de experimentar lugares subjetivos menos impregnados de significados.

Com a aluna Jana (nome fictício), temos uma situação oposta: ela foi apontada como sendo tímida e introvertida, iniciando as oficinas na produção do figurino e do cenário. Com o passar dos encontros, demonstrou interesse em assistir aos ensaios e acabou por se incluir na peça, inicialmente como narradora. Com a desistência de Enzo do papel principal, Jana se ofereceu para ocupar seu lugar, a princípio provisoriamente e atuando como um menino. No entanto, no decorrer de um processo, Jana apropriou-se do papel, sugerindo modificações e engajando-se nos ensaios, até que, por fim, a personagem se transformou em outra totalmente nova.

Ao perceber que as crianças experienciavam um jogo de vir a ser pelo uso da máquina fotográfica (material utilizado por nós para registrar as oficinas), produzindo autorretratos e fotografando o movimento dos colegas, incluímos nas oficinas o exercício da fotografia como devir e como possibilidade de ter um produto final para apresentarmos à comunidade escolar, de forma a celebrar o fim dos encontros. A partir desse momento, trabalhamos também com a fotografia, de forma espontânea e improvisada, tendo em vista que a ideia somente surgiu no momento em que uma das crianças, ao olhar para a câmera, perguntou: "Posso usar também?".

Com essa mediação das fotografias clicadas pelas crianças, iniciamos uma dinâmica ainda maior nas experiências de faz de conta e na alternância de papéis. Os figurinos receberam mais destaque, e as crianças se experimentaram tanto no ato de fotografar quanto de serem fotografadas, como um processo dialético de autores e atores de suas vivências.

É possível ver, por esses exemplos, que a mediação de práticas com caráter mais espontâneo, aberto e atento aos desejos circulantes proporcionou aos alunos uma oportunidade de liberdade e de experiências outras, assim como uma ocasião de ressignificação de seus próprios lugares no grupo. Em contraponto, havíamos assumido um compromisso com a coordenação pedagógica, e as expectativas da escola giravam em torno de resultados para uma apresentação final. Entendemos que precisávamos de um fechamento das atividades, porém o interesse das crianças não circulava mais em torno de uma apresentação nos moldes esperados pela escola. Então, uma forma de conciliar as duas demandas foi propor ao grupo a criação de um livro que narrasse o enredo da peça baseado nas fotos realizadas por eles.

As oficinas propostas, o cronograma elaborado e os objetivos previamente traçados por nós serviram apenas como dispositivos para irmos ao encontro das questões que ainda não haviam sido visibilizadas ou debatidas pela comunidade escolar. A demanda precisava ser formulada por aqueles que ocupavam o espaço escolar e viviam sua rotina. Não tínhamos como saber quais questões eram as mais relevantes para os alunos. Assim, é caro às inserções da Psicologia Social Comunitária abdicar de planejamentos para abrir condições à comunidade de definir os rumos do que será pertinente ao trabalho. As demandas precisam ser constantemente revistas com a comunidade e por ela elaborada (Freitas, 1998; 2015).

6. DO CONTROLE E DISCIPLINA AOS BONS ENCONTROS

Importante retomar a problemática encontrada por nosso grupo com relação às expectativas manifestadas pela direção e pela coordenação pedagógica. Os pontos de entrave começaram a se tornar mais evidentes conforme as atividades ganhavam corpo e desviavam-se de aspectos característicos da disciplinarização em sala de aula. Era nítido, para nós, que nossa mediação precisava fugir de práticas autoritárias e que, por esse motivo, nosso objetivo com as atividades e os ensaios não era domesticar os corpos, mas ampliar a potência desses corpos por meio das relações ali presentes.

Por diversas vezes, foi necessário ratificar nosso propósito, a exemplo dos encontros de supervisão e planejamento, para evitar a repetição e a armadilha de tentar conter os acontecimentos ou de interpretar o movimento das crianças como um problema a ser sanado; chegamos inclusive a cogitar um acordo com as crianças para "harmonizar" o grupo, todavia se tratava de mais uma contradição, dessa vez advinda de nossa parte. Deparamo-nos, então, com o clássico questionamento apontado por Martín-Baró (1996): qual o papel do psicólogo?

Assim, para evitar a reprodução de modelos disciplinares, procuramos entender a desordem como um movimento próprio do processo de protagonismo das crianças, uma vez que, naquele espaço, não era habitual, para elas, conviver sem as amarras de normas disciplinadoras. Carnavalizar a ordem (Bakhtin, 2010), nesse cenário, apresentava-se como um recurso de resistência contra a autoridade da instituição escolar.

Em dado momento, fomos convidadas pela coordenação pedagógica da escola para uma conversa, cuja finalidade era esclarecer a metodologia e o propósito de nosso trabalho. Em uma de suas falas, a coordenadora revelou impressões que lhe causavam certa preocupação: a de que estávamos dando muito destaque aos ditos "alunos-problema" e perdendo o controle sobre os alunos de um modo geral. De fato, controlar os alunos não era nossa intenção. Amparadas pelo paradigma teórico-metodológico que, desde o princípio, orientava o projeto, esclarecemos os fatos, argumentando que nossa mediação não tinha o propósito de reforçar estigmas, mas de trabalhar potencialidades e ressignificações nas relações do grupo. Apontamos também as mudanças percebidas nos alunos, salientando que a coordenação não poderia esperar de nossa atuação um método que trabalhasse aspectos específicos de forma individualizada, reafirmando que nossa presença não pretendia, de maneira alguma, favorecer os discursos patologizantes de uma clínica psicológica tradicional. Argumentamos, por fim, que a proposta do projeto de intervenção se limitava a mediar a ressignificação dos lugares "ditos" ocupados pelas crianças, movimento que não se daria pela nossa orientação direta, muito menos por meio de um discurso moralizante, mas pelas experiências éticas e estéticas vividas pelas crianças, as quais poderiam então transitar por novos possíveis e experimentar sentidos outros, intersubjetivos e intrassubjetivos, nas relações de alteridade.

Assim, buscamos orientar a mediação das oficinas pela potência dosbons encontros, favorecendo relações mediadas por uma ética de valorização das diversidades e de enaltecimento da descoberta de um outro por vezes despercebido devido a relações de poder desiguais (Sawaia, 1999). Após quatro meses de oficinas, as crianças elaboraram um pequeno livro com a história por elas criada, o qual foi ilustrado pelas fotografias produzidas durante os encontros. Foram impressos exemplares para cada aluno, para a equipe pedagógica, para os professores e para a biblioteca da escola. O fechamento das atividades ocorreu com uma sessão de autógrafos, ocasião em que as crianças participantes puderam assinar o livro de autoria coletiva. Além disso, ocorreu a narração da história para todos os alunos, pais e professores presentes. Esse encerramento apresentou-se como um importante momento "provocador" de afetos e potências, no qual as crianças (com base nos bons encontros tecidos ao longo do tempo) partilharam com a sua comunidade um pouco das experiências vividas nas oficinas ao longo do semestre.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência obtida por nosso caminhar nos apresentou um panorama histórico, teórico e prático sobre a atuação da Psicologia no lócus escolar. Historicamente, é possível concluir que a Psicologia alcança novos espaços e novas práticas ao entender a escola não apenas como instituição em seu sentido cristalizado, mas sobretudo como meio de produção de saberes historicamente construídos, produzindo sentidos e significados. Todavia, o olhar pedagógico sobre as "psicologias possíveis" ainda aponta para perspectivas que almejam a cura do indivíduo-problema, o que nos faz questionar sobre as dissonâncias envolvendo teoria e prática em relação à Pedagogia e à Psicologia no contexto escolar.

Nossa experiência aponta que, por vezes, a demanda escolar, no que tange àsperspectivas dos docentes ante a práxis do profissional da Psicologia, ainda clama pela manutenção da ordem. Essa ordem, interrompida pelo comportamento do "mau aluno", é também responsável por criar estereótipos e engessar formas de aprender e ensinar. Em outras palavras, o estereótipo do aluno-problema ou mesmo da turma-problema continua a compor o cenário escolar, como explicitou a primeira demanda apresentada pela escola ao grupo de alunos de Psicologia: "Temos uma turma-problema e precisamos de soluções". Assim, persiste no imaginário do espaço escolar um ideal de aluno almejado por professores e pela equipe pedagógica (Fonseca, & Kirst, 2004).

Questionar essa demanda foi o maior desafio que vivenciamos, pois, para além das críticas que desenvolvíamos naquele espaço, precisávamos colocar em pauta o que a Psicologia Social Crítica e Comunitária nos indica como exercício ético e político. Foi necessário criar junto àquelas crianças e àquela escola, pois nenhuma metodologia previamente traçada daria conta de acolher toda a vicissitude que emanava do campo. Conforme apontam Arantes, Lobo e Fonseca (2004, p. 58), "nos situamos como que provocados pelo necessário exercício de uma imaginação radical para novas modalidades de resistência e criação de novos modos de subjetivação". E nesse aspecto as perguntas de ancoragem que guiaram nossas práticas na escola foram: quais demandas estão sendo acolhidas pela Psicologia? A serviço "de quem" e "do que" está a Psicologia? Tais questões aqui, no entanto, não são tomadas como dúvidas a serem sanadas, e sim como uma proposição crítica que visa a manter-nos advertidos sobre nosso fazer.

Entender e amparar nosso caminhar a partir da produção e circulação dos desejos foi importante para sustentar o compromisso da Psicologia Social Comunitária (Freitas, 1998; 2015), possibilitando, dessa maneira, um desvio em relação às armadilhas do sistema, deslocando-nos para o lugar de coadjuvantes e colocando em cena as crianças como protagonistas. Aliar Psicologia e Arte, por meio de oficinas estéticas, foi essencial nesse processo, a fim de estabelecer um percurso metodológico mais espontâneo e mais estético, com a ajuda da fotografia, do teatro, das artes plásticas e da literatura infantil. Diferentemente da Educação Artística tradicional, na qual são ensinadas as técnicas oriundas das Artes, as crianças se colocaram como autoras do processo e experimentaram outros possíveis e outras práticas de liberdade, driblando a ordem normativa de seu cotidiano escolar.

A partir do caos, foram ampliadas as formas de vir a ser naquele espaço e, nesse movimento, as crianças experimentaram-se em diferentes papéis na peça de teatro, deixaram-se autoimaginar com a fotografia e distanciaram-se cada vez mais dos estereótipos que rondavam seus corpos, vivenciando subjetivações outras conforme se reconfiguravam as relações no coletivo. Ressignificar papéis, brincar com eles, fazer da dita "personalidade" apenas uma personagem, enfim, promoveu mudanças nas relações estabelecidas no grupo e nos próprios processos de subjetivação.

Assim, procuramos orientar a presença da Psicologia no espaço escolar em razão dos desejos e dos movimentos provenientes dos estudantes. Não negamos que existissem demandas importantes provenientes da equipe pedagógica, mas entendemos que continuar insistindo na domesticação dos corpos, no exercício hierárquico de poder e na tentativa de silenciar os desejos não condiz com uma Psicologia que se oriente eticamente no exercício da liberdade e dos bons encontros. Percebemos que o problema previamente levantado pela escola não eram as crianças, mas sim uma teia de relações que cristalizavam comportamentos e papéis bem definidos em sala de aula.

Concluímos que não é profícuo criar movimentos de resistência, a ponto de inviabilizar o diálogo com os agentes do espaço escolar. O que nossa experiência nos suscita é a necessidade de a Psicologia se fazer presente não como ferramenta de controle, mas como possibilidade de ampliação das práticas de liberdade. Para tal, esse movimento não deve ocorrer somente no âmbito dos estudantes, mas também das equipes docente e pedagógica, uma vez que os estereótipos de bons e maus alunos tanto cristalizam a potência das crianças quanto limitam as possibilidades de reinvenção e de ressignificação da própria escola e de seu cotidiano.

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Texto recebido em 12 de dezembro de 2018 e aprovado para publicação em 8 de outubro de 2019.

 

 

* Doutor em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); professor da Faculdade Cesusc. E-mail: gbapsi@gmail.com.
** Graduanda em Psicologia pela Faculdade Cesusc. E-mail: lecisnebranco@gmail.com.
*** Graduanda em Psicologia pela Faculdade Cesusc. E-mail: amanda.ween@gmail.com.
**** Graduanda em Psicologia pela Faculdade Cesusc. E-mail: si_prado06@hotmail.com.

 

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