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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP v.1 n.1 Ribeirão Preto  2000

 

PARTE I - O GRUPO DA INSTITUIÇÃO E O GRUPO NAS INSTITUIÇÕES

 

Relações humanas na instituição causando ansiedade e depressão

 

 

Vera Lúcia Galli1

Núcleo Integrado de Atendimento Preventivo ao Paciente Especial - NIAPE

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do relato de uma experiência vivida pessoalmente pela autora, como supervisora, em equipe multidisciplinar, de alunos do último ano de Odontologia que prestam atendimento em uma clínica-escola a pacientes especiais, este trabalho tem por objetivo pensar acerca das relações humanas nas instituições, causando ansiedade e depressão.


ABSTRACT

From the report of the situation personally experienced by the author, supervising, in a multidisciplinary team, senior dentistry students in the special patients care of a dental school, the aim of this work is to think about the human relationships in the institutions, causing anxiety and depression.


RESUMEN

A partir del relato de una experiencia vivida personalmente por la autora, como supervisora, en equipo multidisciplinario, de alumnos del último año de Odontología que prestan atención en una clínica-escuela a pacientes especiales, este trabajo tiene como objetivo reflexionar sobre las relaciones humanas en las instituciones, causando ansiedad y depresión.


 

 

Quando redigi este trabalho (abril de 1999) tive uma certa dificuldade em iniciá-lo. Elaborei pelo menos umas três versões anteriormente a esta, mas percebia-as como se retratassem um filme em preto e branco, desprovido do colorido das emoções que experimentava. Isto porque passara a viver, como personagem principal, o tema a ser desenvolvido. A ansiedade, com seu sinal característico &– estado afetivo com acentuado caráter de desprazer &– se fazia anunciar. Baseada na contribuição de alguns autores, como Zimerman (1993) e Svartman (1997), concordo que é essencial discriminar a ansiedade que paralisa e leva a evitar situações novas daquela que favorece a autopreservação e a criatividade e que, em certo grau, pode ser  terapeuticamente útil. O meu objetivo com este relato é, portanto, compartilhar com vocês, leitores, a experiência que vivi, recordando inicialmente um acontecimento do ano de 1997, o qual, a meu ver, condensa alguns dos sintomas institucionais; a partir do relato deste episódio, minha  expectativa é pensar o acontecido: o que fazer quando nos encontramos trabalhando em instituições e somos surpreendidos por abruptos imprevistos?

Há alguns anos supervisiono, junto a uma equipe multidisciplinar composta por dentistas, psicólogos e fonoaudiólogos, alunos do último ano de Odontologia que prestam atendimento em uma clínica-escola a pacientes especiais. Os pacientes especiais, crianças e eventualmente adolescentes, apresentam deficiências ou doenças físicas, mentais ou sensoriais e, em função desta condição ou estado, necessitam, do ponto de vista odontológico, de cuidados especiais durante um tempo ou por toda a sua vida. Os alunos, em número de cem, atendem aos pacientes, em duplas, semanalmente, divididos em dois turnos, manhã e tarde.

No ano de 1997, uma de minhas supervisionandas solicitou que eu escrevesse um artigo para o jornal que um grupo de alunos, liderado por ela, estava estruturando. Era um  novo canal de comunicação, fora dos padrões habituais no curso de Odontologia, em que iniciativas desta espécie inexistem. Também Clara (nome fictício) fugia do habitual. Reprovada no ano anterior, era inquieta, desafiava as figuras de autoridade e  utilizava métodos bastante singulares para atender a seus pacientes &– cantava, conversava muito e os acariciava. Com um sério problema de drogadicção, muitas vezes comparecia à clínica completamente “anestesiada”, causando problemas aos professores e aos pacientes.  Em virtude disso, gerava muita polêmica, sendo a estranha e diferente do contexto.

O ano de 1997 terminou, o Jornal dos alunos não existe mais, Clara se formou, porém o estranho e diferente, dos quais ela era protagonista, permaneceram, expressos de forma contundente, nos corpos dos pacientes especiais. Recordando as sensíveis palavras de Amaral (1996, p.262), ...do ponto de vista psíquico, as diferenças significativas jamais passam em ‘brancas nuvens’: desorganizam, ameaçam, mobilizam, pois representam aquilo que foge ao esperado, ao simétrico, ao belo, ao eficiente, ao perfeito... A hegemonia do emocional sobre o racional (mesmo que momentânea) é inexorável.

O encontro com os “diferentes e as diferenças” provoca estranhamento; é como se estivéssemos diante um espelho cujos reflexos, que revelam uma imagem desigual e antiestética, reverberassem o “assustador”. Freud (1919) já nos advertia que todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se,  se reprimido, em ansiedade: portanto, aquilo que nos assusta, e que recebe a denominação de “estranho”, não é nada novo ou alheio e sim o familiar que se alienou através do processo de repressão.  O fundamental em seu pensamento, porém, é que examina a estética não simplesmente como a teoria da beleza, mas como a teoria da qualidade do sentir.   Baseando-me nessas afirmações, creio ser possível  inferir que tudo aquilo que é belo, simétrico e está em ordem, aciona as nossas melhores emoções, ao passo que o inverso acionaria as emoções "pior" sentidas.

A partir dessa linha de pensamento, retornemos então à história de Clara, aos alunos, aos pacientes especiais e à questão da ansiedade. Clara era a expressão do anestesiante, do bloqueio ao processo de “pensar as emoções”, na medida em que a utilização das drogas transportava-a para um mundo ideal no qual se refugiava, tornando-se rainha e prisioneira. Contudo, ela não refletia somente problemas individuais; aparecia como porta-voz das dificuldades grupais, à medida que percebíamos como recorrente essa característica de não querer pensar, compreendido este termo aqui no sentido dado por Bion, e que Fernandes (1997) esclarece, ao recordar que “entre uma necessidade não satisfeita e uma ação que a satisfaça, há um vazio &– de espera &– com algum grau de frustração. O pensar visa a preencher exatamente esse vazio”.  Uma hipótese a ser levantada, nesse sentido, é que a esquiva ao pensar, portanto, pode surgir em decorrência da ansiedade a ser suportada durante este intervalo, este espaço. Em seu lugar, o entorpecimento causaria a sensação ilusória do preenchimento.

Ora, se pensarmos que um vazio nunca pode ser destruído e sim preenchido para que venha a adquirir colorido e significado, tratava-se então de investir na possibilidade de construir um espaço, um continente em que a ansiedade pudesse ser “depositada” e as emoções pensadas. Acreditando nessa possibilidade, aos poucos fomos organizando grupos com os alunos e fomos caminhando: a qualidade dos vínculos entre todos os envolvidos foi se modificando. Discutíamos, dentistas, psicólogos e alunos, as dificuldades que surgiam e a equipe de profissionais se reuniu para discutir seus próprios problemas na comunicação.

Assustadoramente, porém, interrompeu-se todo o movimento, ao ser anunciada a morte súbita, provocada por problemas institucionais. Recebemos, inicialmente, a notícia de que não somente as psicólogas seriam dispensadas, mas também a equipe como um todo iria se desfazer... Mais de trezentas crianças deixariam de ser atendidas e provavelmente teriam dificuldade em encontrar quem o fizesse, pelas condições que possuem. Entretanto, o nocaute apenas deixou o trabalho na lona, bombardeado, sem que pudéssemos saber se era possível o luto ou não. Em uma semana, isso mudou, adquirindo a seguinte oscilação: talvez ficasse alguém da equipe de Psicologia, talvez as coordenadoras de Odontologia fossem substituídas, talvez as condições de atendimento fossem reduzidas e um número menor de crianças passasse a ser atendido, talvez tudo ficasse como antes, ou talvez o serviço oferecido  desaparecesse.

Dos inúmeros desfechos que poderíamos imaginar em relação à situação aqui relatada, uma escolha, que implicou um determinado rumo, se impôs &– o atendimento aos pacientes passou a ser quinzenal, às vezes até mesmo mensal em virtude de eventuais feriados, operando-se um déficit quantitativo e qualitativo. A equipe de profissionais permaneceu praticamente inalterada, embora a possibilidade de comunicação entre os integrantes também tenha se transformado pelas alterações já descritas (junho/2000).

O impacto causado pela notícia abrupta fez brotar todo o tipo de ansiedade que podemos imaginar, inclusive aquelas mais primitivas. Momentaneamente não era possível pensar, pois a frustração era também muito grande. Passei a sofrer do sintoma institucional, dramatizado pelos alunos e me lembrei de Clara e dos pacientes especiais. Expressavam a diferença que, como vimos, aciona o familiar; quando tudo isso aconteceu, pude vivenciar que, numa situação de extrema ansiedade, as “piores” emoções que existem em nós, humanos, são mesmo intensificadas. Quando o  provável corte na equipe foi cogitado, recordo que  houve momentos em que pensei: “caso ingresse em outra instituição, não vou mais me envolver com ninguém; não posso confiar, preciso manter atitude neutra”.  Parece-me, contudo, que essas são  formas sutis de a depressão se insinuar. Não me entorpeci e estruturar este trabalho é uma oportunidade para pensar, criar e compartilhar.

À pergunta inicial do que podemos fazer quando surgem os imprevistos nas instituições, responderia: precisamos considerá-las (as instituições) não alheias a nós mesmos, mas como parte integrante do nosso fazer, que nele interfere, e que nos coloca às voltas com nossas próprias responsabilidades e nossas emoções. A partir dessa perspectiva,  podemos organizar alguns meios para assegurar  que os acontecimentos possam ser pensados  e integrados, ou como lembra Oliveira (1997), podemos construir vínculos ansiolíticos &– indo atrás de supervisão adequada; construindo relações profissionais ricas; participando de congressos, grupos de estudo, grupos de reflexão; fazendo psicoterapia; estando ativamente envolvido no trabalho (e não passivo ou distante); conseguindo ter um  amigo (preferencialmente saudável) dentro da instituição. E eu acrescentaria às idéias da autora &– registrando, realizando e publicando artigos, dissertações, enfim, comunicando aos outros a atividade realizada.

As palavras escritas para Clara, e divulgadas para os alunos, viajaram pelos espaços. Quando ela se formou, decidiu que não seguiria a profissão e me disse: "Estou sempre no mundo da lua e me sinto mais segura lá, mas você é meu fio terra". Sei que Clara precisava de um acompanhamento psicoterapêutico, porém, de alguma forma, ela tocava o estranho/familiar, das emoções "pior" sentidas, que é ativado em situações de muita ansiedade. Para finalizar, compartilho com vocês o artigo a que já me referi, que conta dos sabores e dissabores ao estarmos vivos e vinculados; é o que continuo acreditando.

A Clara solicitou que eu escrevesse um artigo para o Jornal de Odontologia. Tenho pensado desde então: o que escrever, como chegar até vocês? Andando pelos corredores, subindo e descendo as escadas, deparo-me com o mural que diz: “Jornal de Odonto. Participe!”  Percebo que o espaço está basicamente preenchido com comunicados diversos: desde festas até cursos, anúncios de trabalhos que podem ser realizados,  digitação... Comunicação: ouvir, ver, tocar, ler. Outro tempo.

Do ônibus, parado na Avenida Rebouças, olho pela janela e vejo vários mendigos que se ajeitam debaixo do viaduto, preparando as cobertas, às seis horas da tarde. Um deles se destaca do grupo e grita: “O que está olhando? Pare de olhar!”. Apossa-se de um galão de plástico e joga em direção ao ônibus. Continua gritando, enquanto as pessoas vêem e comentam. Abaixa-se para apanhar alguma coisa. Tenho a nítida sensação de que irá atirar  e  faço menção, assim como muitas outras pessoas, de me abaixar. Medo! Vejo, ouço, não toco.... Comunicação, tempo, violência. Outro tempo...

Sou integrante de um tempo em que toda uma geração viveu sob a égide do silêncio -  repressão, ditadura,  AI5, exílio -  e buscou se fazer ouvir, por meio de Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Elis Regina, Jovem Guarda, Beatles, Rolling Stones. Conviviam alienação e tortura, silêncio e denúncia. Poderíamos pensar: tempos difíceis, tempos violentos! Entretanto, que tempos são esses que vivemos? O que existe hoje?

Parece-me difícil, atualmente, buscar compreender, como lembra Maria Valéria Pelosi H.Salles Lima, que recorda R. M. Rilke, esta “floresta dos contrastes”. Tudo aparece fragmentado, como um gigantesco quebra-cabeças do qual tentássemos inutilmente juntar as peças e compor um desenho que não tem forma. Nossa comunicação ocorre via internet, computador, fax, telefone celular... Tudo muito rápido. A cada dia são acumuladas informações, inovações, novas tecnologias, novos medicamentos, novas descobertas. Comunicação virtual, relações virtuais. Corremos, o tempo todo, atrás do tempo, sempre com a sensação de estarmos perdendo. Paradoxalmente, quanto mais obtemos, menos retemos. É como se as informações ganhassem vida e  escapassem por entre nossos dedos ou como se não tivéssemos dedos suficientes para segurá-las. Com tanta fragmentação, aceleração, como parar para olhar um mural, ler o que está escrito, perder tempo?  Como parar para sentir? Há tempo?

Tempos difíceis. A violência hoje se insinua sutil e claramente, impregna os vínculos, está presente no cotidiano. Percorre os viadutos,  se aloja debaixo deles, nos cantos, nas ruas. Penso no mendigo que vi  através da janela do ônibus. Pareceu-me violento. Porém, não é menos violento não existir a mínima distinção entre o que se constitui seu universo público e privado. Sua vida ou, mais do que isso, sua intimidade, está exposta à visitação pública.  Amar, comer, compartilhar?

Esses sentimentos, pensamentos, nos causam medo. Para evitá-los, também evitamos o contato com tantos estímulos que nos tocam no cotidiano: sons, imagens, palavras que ferem; evitamos o caos. Talvez precisemos disso; caso contrário, provavelmente, enlouqueceríamos. Cada um de nós encontra uma maneira: torce por um time de futebol, ouve música, lê, se apaixona, “malha” na academia, toma cerveja num bar, joga futebol, se envolve em mil atividades, estuda, dá aulas.... Por um momento é como se pudéssemos transformar tudo numa bruma branca mistura de todas as cores, neutralizadora, anestesiante, que bloqueasse e bombardeasse os  sentidos. Ocupamos o tempo de pensar e, principalmente, de sentir. E quanto mais ocupamos, mais sentimos e mais tememos. Tememos a falta de tempo ou a possibilidade de encontrá-lo?

Parece ser esta a grande questão: o homem já enveredou por muitos caminhos, numa constante peregrinação para acumular conhecimento acerca de si, do mundo e dos outros. Não deu conta. Talvez lhe falte a possibilidade de estar consigo mesmo e estar com o outro. Pensei em me comunicar com vocês, em chegar até vocês, tocá-los com, e pelas palavras. Comunicar é poder tocar a si e ao outro, compartilhar, estar vivo numa relação. E estar vivo é isto: acarinhar e magoar. Tememos, porque não queremos perder quem amamos ou sofrer com nossas próprias asperezas e a dos outros.

Porém, somos seres “sentintes” e, como tal, humanos, com todas as ambivalências que tal característica comporta. Talvez este tempo implique viver e conviver nesta e para esta complexidade, tornando claro o escuro, compartilhando o caos, a desorganização, o medo, a alegria e a tristeza, o amor e o ódio.

Carpem die!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Amaral, L. A. (1984) - Corpo Desviante/Olhar Perplexo &– Fragmentos da Tese de Doutorado: Espelho Convexo: o corpo desviante no imaginário coletivo, pela voz da Literatura Infanto- Juvenil. Rev.Psicologia USP &– São Paulo, 5 (1/2) p.245-268, 1994.        [ Links ]

Fernandes, W. J. (1998) - Comunicação e Vincularidade &– Apostila do Curso do CEPPV &– Centro de Educação Permanente em Psicanálise dos Vínculos, São Paulo.        [ Links ]

Freud, S. (1919) - O Estranho. Tradução sob a direção geral de Jayme Salomão. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. (17), Rio de Janeiro, Imago,1988.        [ Links ]

Oliveira, N. M. F. M. de (1997) - Vínculos Ansiolíticos - Compilação de trabalhos do II Congresso de Psicanálise das Configurações Vinculares, I Encontro Paulista de Saúde Mental e Psiquiatria &– Serra Negra.        [ Links ]

Svartman, B. (1997) &– A abordagem vincular da ansiedade e a psicoterapia analítica de grupo - Compilação de trabalhos do II Congresso de Psicanálise das Configurações Vinculares, I Encontro Paulista de Saúde Mental e Psiquiatria &– Serra Negra.        [ Links ]

Zimerman, D. E. (1993) - Fundamentos básicos das grupoterapias - Porto Alegre, Artes Médicas Sul, 1993.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Vera Lúcia Galli
Av. Otacílio Tomanik, 211 - Jd.Bonfiglioli
Tel: 3733.0806 - São Paulo/SP
E-mail: veragalli@bol.com.br

 

 

1 Psicóloga clínica (atendimento a crianças, adolescentes, adultos e grupos); Mestre em Educação pela UNIP &– Universidade Paulista; Professora universitária nas disciplinas de Psicologia Geral e Psicologia do Excepcional; Consultora escolar; Supervisora e Psicóloga do NIAPE (Núcleo Integrado de Atendimento Preventivo ao Paciente Especial); Membro do Conselho Editorial do Vinculum e da Área de Grupos do NESME (Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares). Autora de trabalhos publicados, incluindo artigos científicos e capítulos em livros.