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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP v.1 n.1 Ribeirão Preto  2000

 

PARTE II - O GRUPO FAMILIAR - DIFERENTES ASPECTOS E ABORDAGENS

 

Palavras trocadas: o mal-entendido em um atendimento de casal1

 

Fernanda Maria Donato Gomes2

Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares - NESME

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora neste trabalho pretende mostrar alguns dos aspectos do mal-entendido nas relações conjugais, que impedem a troca e o crescimento do casal.

Expõe algumas das fantasias que ocorrem nos inícios destes vínculos, para compreender o mal entendido, quando as palavras não são trocadas e levam a momentos de solidão.

O texto é entrecortado com fragmentos de sessões de um atendimento de casal a fim de ilustrar a teoria apresentada.


ABSTRACT

The author in this paper intends to show some aspects of the ill understanding in the couple relationship that obstructs the change and the growing for the couple.

Exposes some of the fantasies that interfere in the beginning of this vinculum, in order to comprehends the ill understanding, when the words are not changed and brings moments of loneliness.

The work is intersecting with fragments of a couple therapies in order to illustration the theory exposed.


RESUMEN

La autora in el presente trabajo demostrará algunos de los aspectos del mal entendido en las relaciones conyugales, que impiden el cambio e el desarrollo de la pareja.

Expone algunas de las fantasías que ocurren en el inicio del relacionamiento para comprender los males entendidos cuando las palabras nones son intercambiadas e llevan a momentos de soledad.

El trabajo es entrecortado com fragmentos de uno atendimiento de terapia de pareja, con el objetivo de ilustrar la teoría presentada.


 

 

No telefone uma voz aflita pedia, com urgência, uma consulta para o casal. Marcamos para o dia seguinte.

Chego ao consultório com antecedência e encontro-os sentados na escada. A acomodação um tanto informal, ilustra a juventude do par. Impressionam-me, ainda, pela fisionomia perfeita e harmônica, agradável aos sentidos.

Esta primeira sensação é contrastada com o que me contam a seguir:

Ela - Estar aqui é a ultima tentativa de ficarmos juntos.

Ele - Ontem ela teve um de seus ataques, dizia que ia se matar.

Ela - Ele colocou as crianças no carro e saiu dizendo que eu nunca mais as veria.

 

Seguem arremessando mútuas acusações.

Ela - Ele não liga para a família, só o que interessa é o trabalho. Chega tarde em casa e vai direto para o computador. Combinamos tomar café com as crianças, mas ele não acorda.

Ele - Ela é louca, histérica, já acorda gritando. E tudo o que eu faço está errado. Se mudo de emprego, fiz besteira. Se sirvo o leite para as crianças é o leite errado.

Mas, eu, vou com o carro velho para o trabalho para ela ficar com o novo. E, é porque eu trabalho tanto que ela pode correr, jogar tênis, fazer aula de pintura.

Ela - Nós combinamos isto, eu iria parar de trabalhar para ficar mais tempo com as crianças. Mas ele é sempre assim, agora me culpa. Ele resolve as coisas do jeito dele. Outro dia disse ter uma ótima idéia, montar um negócio na Internet para mim. Mas ele não pergunta se eu queria, se eu gostaria.

 

O diálogo entre duas pessoas é um ato comunicativo complexo. A pretensão é comunicar um significado a um outro, presumindo-se que este entenderá.

A complexidade deste ato leva alguns autores a compará-lo a uma equação de incógnitas.

Segundo Puget e Berenstein (1988), “no casal qualquer ato comunicativo propõe uma incógnita ao outro, exigindo, portanto, descobri-la, isolá-la, para que se possa entender o que e como cada um entende o que vem do outro... Dessa maneira, poderão ser feitas inferências a respeito de como foi o processo de entendimento entre um ego e o outro... A concordância nunca será completa, só são possíveis aproximações sucessivas.”

No fragmento de entrevista acima, os diálogos são substituídos por monólogos, variando o gênero do autor.

As palavras são utilizadas como disparadores de um discurso da culpabilidade alheia, e sua serventia como hipótese de compreensão fica descartada.

É necessário, portanto, entender a incompreensão e a sua função no cotidiano deste casal. Consideram o cônjuge o autor do próprio sofrimento, isentando-se da necessidade de reparar os danos que cometeram em si mesmos.

 

Iniciada a terapia, pergunto como se conheceram.

Ela - Fomos apresentados em uma viagem e foi amor a primeira vista. Não desgrudamos mais, casamos em cinco meses.

Ele - Mas as brigas começaram quando fomos morar juntos, ela ficava louca porque eu deixei cair licor no carpete e porque eu roncava.

 

Pergunto por quais encantos do outro ficaram atraídos.

Ela - Foi a calma dele, o jeito quieto e sereno de resolver as coisas.

Ele - A agitação dela, a quantidade de coisas que conseguia fazer ao mesmo tempo.

 

As fantasias de fusão permeiam o início dos vínculos. O enamoramento parece realizar o desejo infindo de completude.

A vivência do desamparo, o medo da solidão e do vazio, leva o indivíduo em direção ao outro e para se relacionarem é preciso comunicar-se. Ato que sempre será incompleto e ambíguo.

O mal-entendido ocorre quando um ou outro ego, despreza esta condição limitada do ato comunicativo, amparados na ilusão do entendimento. Afastando-se assim da vivência da falta.

A comunicação fica apoiada nos desejos inconscientes e a relação se dá com objeto imaginado. Quando isto perdura muito tempo, o ego vive a experiência de solidão, atribui esta dor ao outro, e a recebe como agressão.

Na história deste casal, ambos viveram em suas famílias de origem experiências de abandono e desinvestimento. E agora, clamam no vínculo conjugal a referencia faltante na infância. No entanto, este pedido é enviado de maneira canhestra, e não chega ao seu destinatário. Ao invés de ouvirem e emitirem a necessidade do outro, escutam e produzem acusações.

A terapia de casal é uma possibilidade de transformação deste modelo de comunicação.

Cabe ao terapeuta “outorgar outra significação ao conteúdo manifesto do paciente individual ou casal” - Puget e Berenstein (1988).

Percebia neste atendimento um modelo de comunicação em que eles só se esbarravam, mas não trocavam. As trocas eram consideradas apropriações indevidas das qualidades individuais. Tomavam de empréstimo algo na fala de um e desviavam para outro caminho, evitando entrar em contato com as próprias mágoas e com as do parceiro.

Alternavam-se imputando culpas no outro, driblando as próprias dores. Não percebiam no próprio discurso e nem no alheio, os sentimentos que a fala continha.

Minha maneira de atuar foi tentar pensar com e muitas vezes por eles, detectando e esclarecendo outras maneiras de se ouvirem. Ocupava o lugar de um tradutor e intérprete das emoções contidas em seus dialetos.

 

Ele - Eu gosto muito de pintar, agora ela começou a fazer pintura e encheu a parede da sala. Tem um quadro meu que eu adoro e ela não quer colocar lá.

Ela - O quadro é feio. É uma questão estética. Eu não o quero lá na sala. Lá em cima no corredor tem uma parede cheia dos quadros dele.

Eu - Qual o sentimento que desperta esta situação?

Ele - De rejeição, de não ter lugar, como se eu não tivesse um lugar de destaque na casa. Preciso ficar nos fundos.

Eu adoro pintar, e sei que ela começou a pintar por minha causa. Eu fico muito orgulhoso, agora seus quadros são melhores que os meus. Mas eu queria o meu lá na sala.

Ela começa a chorar e diz: - Eu não sabia disto, você nunca me falou. Comecei isto para te agradar, mas a sensação que eu tinha é que nunca conseguia, não ouvia um elogio.

 

Este momento marca o início de palavras trocadas durante uma sessão. Vale lembrar que o significado da palavra trocar é: “dar ou substituir uma coisa por outra; alterar, modificar; permutar entre si.”

A partir destas substituições experimentam uma possibilidade de construir um espaço vincular próprio.

Para finalizar, gostaria ainda de fazer uma breve observação sobre os aspectos contratransferenciais deste atendimento.

Na terapia de casal, as respostas contratransferenciais são intensas, permitem uma extensa gama de sentimentos, que ora auxiliam a compreensão do casal, ora tornam nebulosa a capacidade empática do terapeuta.

No começo deste trabalho, fica registrado, sem estar explicitado, as primeiras reações contratransferenciais que tive.

Sou seduzida pela beleza e capturada pela ideologia do casal de permanecerem juntos. Com o desenrolar das sessões, buscam com tenacidade um juiz, esperam que eu defina quem ocupa o lugar de réu e de vítima. No entanto, minhas intervenções são guiadas pelas minhas impressões iniciais na tentativa de ajudá-los a pensar, a dizer e suportar os sentimentos encobertos pelos mal-entendidos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Person, E. (1997). O Poder da Fantasia: como construímos nossas vidas, Rocco, Rio de Janeiro, 1997.        [ Links ]

Puget, J. e Berenstein, I. (1988). Psicanálise do Casal, Artes Médicas, Porto Alegre, 1994.         [ Links ]

Puget, J. org. (1996). La Pareja. Encuentros, desencuentros, reencuentros, Paidós, Buenos Aires, 1996.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Fernanda Maria Donato Gomes
R. Rouxinol, 84 conj. 34 - Fone 543 8954
E-mail: gomesfm@uol.com.br

 

 

1 Trabalho apresentado na IV Jornada da SPAGESP - Abril/00 - Ribeirão Preto
2 Psicóloga, Terapeuta Familiar, Membro Efetivo e Secretária do NESME, Membro Associado da Spagesp e Docente do NUF-SPAGESP.