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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP v.1 n.1 Ribeirão Preto  2000

 

PARTE II - O GRUPO FAMILIAR - DIFERENTES ASPECTOS E ABORDAGENS

 

Terapia familiar - elos entre as concepções analíticas e sistêmicas1

 

Maria Imaculada de Carvalho Anacleto2

Centro de Estudos de Psicoterapia Analítica de Grupo - CEPAG

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora procura, neste artigo, refletir sobre sua prática clínica no atendimento de família, utilizando-se de técnicas analíticas e sistêmicas, correlacionando as duas concepções dentro de um embasamento teórico, onde demonstra que embora sejam métodos distintos, não se excluem, podendo ser muitas vezes complementares.


ABSTRACT

The author tries in this article, to reflect about her clinical practice in the attendance of families, using analytical and systemic technics, linking both conceptions under a teorical idea and shows that, even being different methods, they don’t exclude themselves, and can be complementary.


RESUMEN

La autora busca, en este artículo, reflexionar acerca de su práctica clínica en el atendimiento de familia, utilizándose de técnicas analíticas y sistémicas, correlacionando las dos concepciones dentro de un basamento teórico, donde demostra que aunque sean métodos distintos, no se excluyen, pudiendo ser muchas veces complementares.


 

 

Falar de Terapia Familiar sem falar da prática clínica às vezes se torna difícil. Ao escrever este artigo, pensei muito em como colocar minhas idéias sem me preocupar em ficar muito presa à teoria. Minha intenção é a de mostrar um modelo de trabalho que demonstre minhas características pessoais enquanto terapeuta e como procuro preservar conhecimentos adquiridos, com a aquisição de novos conhecimentos. Nunca pretendi, ao fazer minha formação em terapia familiar, ser um mero repetidor de modelos.

Como diz Maturana (1990): “Conhecer o conhecer nos obriga a reflexão ética”. A partir de reflexões como esta que resolvi buscar os elos, pontes, ou ligações das concepções psicanalítica e sistêmica.

Para iniciar, gostaria de relatar a alegoria de Anderson que Peggy Papp enviou por carta à S. Minuchin:

“No começo do mundo havia dois vastos continentes divididos por um oceano. Em um dos continentes estavam todos os habitantes do mundo. No outro estavam todas as verdades. As pessoas viviam observando as verdades e esperando possui-las. Portanto, construíram uma ponte que cruzava o oceano. As pessoas começaram a caminhar através da ponte de um dos lados e as verdades do outro lado e se encontraram no meio. À medida que avançavam cada pessoa alcançou ansiosamente uma verdade e se aferrou a ela. Mas a estreitaram com tanta força e se aferraram a ela com tanto desespero que todas as verdades se retorceram, se distorceram e fugiu-lhes o brilho, até que deixaram de ser reconhecíveis”

Foi através desse e outros pensamentos, que me permiti ser um tanto eclética, encontrando um jeito de trabalhar e aproximar-me cada vez mais de meu paciente, no caso, das famílias que me procuram. Começarei a abordar aquilo que julgo mais importante no dia a dia de minha prática clínica, e o que encontro de correlação entre as duas concepções: psicanalítica e sistêmica.

Os conceitos sistêmicos em Terapia Familiar, advindos da teoria da comunicação, da cibernética, da biologia e da química, não vêm de terapeutas de família como a princípio poderíamos imaginar. Podemos citar, por exemplo, o biólogo Humberto Maturana, o antropólogo e ciberneticista Gregory Bateson.

Em psicanálise, consideramos Sigmund Freud como primeiro terapeuta familiar pelo atendimento na época do caso do pequeno Hans, publicado em 1909, onde descreveu a dinâmica da família que contribuiu para a fobia do garoto. Há cem anos introduziu o que chamamos em terapia sistêmica, “um novo paradigma”, quando demonstrou em sua teoria que as origens das patologias psicológicas estariam ligadas a processos ocorridos nos primeiros anos de vida, sobre a sexualidade e desenvolvimento da libido. Através dos sonhos e dos atos falhos provou a existência do inconsciente, permitindo grande avanço na psicologia durante o século XX. Este trabalho, tinha uma visão linear pensando sempre no desenvolvimento do indivíduo desde sua infância.

Com o passar do tempo alguns autores psicanalíticos passaram a se preocupar mais com o sistema relacional. Desde os estudos de D. W. Winnicott, quando se preocupa com a relação mãe - bebê, até os mais atuais que se preocupam cada vez mais com o contexto familiar e social, colocando-os como parte integrante no desenvolvimento do indivíduo, justificando a partir daí suas patologias. Estes estudos permitiram revisão dos clássicos conceitos psicanalíticos que levou-nos a uma mudança de foco, saindo do intrapsíquico para o interpessoal, do pensamento linear para o pensamento circular; essas mudanças de pensamento viriam alterar a teoria de que para cada sintoma (efeito) existe uma causa (inconsciente), fazendo-nos pensar que cada efeito pode retroativamente alterar a “causa”. Podemos então, relacionar esta visão interpessoal com a visão interacional sistêmica.

Nathan Ackerman diz que a psicoterapia familiar sistêmica e a terapia analítica, são métodos distintos, mas que não se excluem, podendo muitas vezes ser complementares; esses dois métodos poderão se tornar mais claros quando tivermos condições de maior compreensão das relações existentes entre os aspectos internos e externos da experiência humana. Também descreve o processo de terapia familiar como verdadeira experiência social onde se devem correlacionar:

1. Os conhecimentos intrapsíquicos e os interpessoais.

2. A organização da experiência consciente e da inconsciente.

3. O real e o irreal, a transferencia e a realidade.

4. O passado e o presente.

5. O indivíduo e o grupo

Para Falicov e seu grupo (EUA), “cada família tem seu próprio caminho de desenvolvimento, traçado a partir de toda sua historia”. Diz, também, “que o ciclo vital e os processos evolutivos se superpõem e interatuam ora em forma sintônica ora assintonicamente”.

O conceito de ciclo vital valoriza a história dos indivíduos em sua família, possibilitando seu resgate. Esse conceito é fundamental na visão atual dos sistemas familiares em desenvolvimento. Para o modelo psicanalítico a história da família encontra-se na estruturação psíquica bem como na patologia do indivíduo. Para pensarmos o ciclo familiar em cada concepção percebemos que a diferença na história da família entre os dois modelos não está na maneira de compreendê-las mas na maneira de operacionalizá-la. No modelo psicanalítico preocupamo-nos em reviver a história do paciente na transferência com o terapeuta enquanto que na sistêmica a preocupação é a observação e a interferência quando possível para que os familiares sejam colocados frente a frente em relação um com os outros, fazendo com que possam reviver juntos pontos nodais da sua história encontrando assim caminhos para transformá-los.

Ao ser procurada pelo grupo familiar, marco entrevista com todos os membros da família, ouço a queixa inicial e, a partir da mesma, marco novas entrevistas onde a história da família passa a ser montada. Nessas sessões vamos validando, mudando ou alterando nossa hipótese diagnóstica. A história vai sendo contada e revivenciada por todos, facilitando assim lidar com pontos mais difíceis e não resolvidos do ciclo vital. Cada sessão é utilizada para desatarem-se os nós que por ventura forem encontrados no decorrer da terapia, ou sejam, problemas interacionais passados que estão interferindo na atualidade. Ao final de algumas sessões iniciamos a elaboração das intervenções ou mudanças necessárias para modificação da dinâmica familiar.

Na prática da terapia familiar sistêmica os conceitos de transferência e contratransferência não apresentam a mesma importância que para o enfoque psicanalítico. Enquanto para os psicanalistas esses conceitos são de primordial importância por privilegiar a relação do paciente com o terapeuta, onde se busca trabalhar as manifestações das relações conflituadas do paciente com seus objetos primordiais, na terapia familiar sistêmica o terapeuta busca formas para que o paciente identificado do grupo familiar possa interagir com seus familiares, trabalhando suas próprias relações, fazendo com que encontrem soluções para suas dificuldades relacionais. Nesse contexto o terapeuta familiar pode perceber através das comunicações, os processos transferenciais da família.

Também relacionado com o conceito de transferência, desenvolvido por S. Freud, temos o conceito de isomorfismo, que é a tendência à repetição de modelos relacionais em contextos diferentes. Para se pensar na diferença conceitual entre isomorfismo e transferência é importante perceber que no processo terapêutico se consegue atualizar todo contexto familiar conflituoso vivido pelo grupo familiar em interações passadas, e que nesse processo não acontece simplesmente uma transferência de sentimentos ou percepções ligadas às relações passadas, mas um jeito de revivê-las. Um jeito atualizado no presente para que o indivíduo seja levado para mudanças de contexto e possa refletir o anterior.

Também pode ser relacionado à transferência, o conceito de Mony Elkain (Belga), a ressonância, que são elementos semelhantes, comuns a diferentes sistemas em intercessão. Todos estes conceitos da terapia sistêmica se referem na verdade às interações passadas, que se refletem na vida atual, criando problemas tanto para o indivíduo como para sua família.

Percebe-se também a contratransferência quando podemos relacioná-la através da valorização do uso do nosso self como instrumento fundamental em algumas de nossas intervenções.

Em diferentes momentos da sessão, nos damos conta de nossos próprios sentimentos e podemos utilizá-los como guia, intervindo muitas vezes com outros membros da família. Mony Elkain afirma que, o que o casal vive durante uma sessão tem uma função não somente com relação ao parceiro mas também com relação às construções do mundo do terapeuta.

Interpretações e metáforas, intervenção estrutural, redefinições são diferentes formas de construção que serão úteis ou não, dependendo do contexto terapêutico em que as colocarmos. Na construção terapêutica, conforme vamos nos relacionando com a família passamos cada vez mais a fazer parte da mesma. E esse novo sistema permite a reconstrução da história familiar numa nova perspectiva. A partir da crise familiar, essa família vai permitindo a reconstrução através das redefinições de papéis, a redefinição de funções e espaços de cada membro da família, permitindo assim a redescoberta de recursos que estão encobertos pela própria crise.

Andolfi nos mostra a importância do uso da metáfora dentro da Terapia Familiar Sistêmica, sendo que tal técnica deve ser utilizada principalmente em famílias com sistemas rígidos e resistentes que apresentam certa dificuldade em aceitar mudanças. Nesse caso, utilizo frases prontas, provérbios, alguma história ou filme relacionado ao problema apresentado, para que possamos refletir juntos o significado daquela situação e procurarmos uma forma de mudar a visão de mundo daquele grupo familiar, quebrando um pouco a rigidez para facilitar a compreensão do problema e o entendimento da intervenção.

Minuchin é enfático ao nos mostrar que o terapeuta deve entrar em sintonia com a família, tem que procurar e encontrar um jeito, uma linguagem ou uma postura que possa se adaptar ao funcionamento daquela família; para ser reconhecido pela mesma como parte do sistema, para que se estabeleça o vínculo conforme se desenvolve o processo terapêutico através da aceitação e da confiança.

Em minha prática clínica, penso na família que chega pedindo socorro, um alívio para a dor, que se apresenta através de um paciente identificado, muitas vezes camuflando seu sofrimento maior, com a apresentação de seu bode expiatório. É a partir dessa queixa apresentada, que passamos a questionar, entender e a interagir com sua história, crença e seus mitos que foram passados através de várias gerações. Para atingir mudanças, fazendo com que essa família possa ter uma nova visão de mundo e que possam utilizar seus próprios recursos, trabalho utilizando a integração de teorias e técnicas. E que através delas passo a intervir visando sempre o processo terapêutico que nos levará a mudanças num movimento contínuo de construção e reconstrução.

Acredito que o terapeuta deva existir como parte integrante da família para que tenha a liberdade de atuar nos encontros terapêuticos, provocando mudanças nos conflitos apresentados pelos membros da família.

É importante lembrar que esse trabalho não tem a intenção de abordar toda a técnica analítica e sistêmica, pelo contrário, apenas relembro alguns aspectos que percebo estarem presentes no dia-a-dia, em nosso trabalho diário, para maior reflexão do leitor.

Para concluir, quero lembrar de uma afirmação de Minuchin (1982), que me faz refletir na prática clínica diária: “Só alguém que dominou a técnica e conseguiu esquecê-la depois, pode chegar a ser um terapeuta competente. O salto expontâneo de um Nijinski é o produto de anos de cuidadoso estudo que lhe permitiram dominar seu corpo de uma maneira artística, não técnica”.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Maria Imaculada Anacleto
Rua ízio FacioDionli, 1644,
Franca - SP - CEP 14403-350
E-mail: anacleto@francanet.com.br

 

 

1 Trabalho apresentado na IV JORNADA DA SPAGESP, ocorrida em abril de 2000 da cidade de Ribeirão Preto.
2 Presidente do CEAPAG - Centro de Estudos de Psicoterapia Analítica de Grupo (Franca). Pós-graduada em Terapia Familiar.