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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP v.1 n.1 Ribeirão Preto  2000

 

PARTE IV - TRANSTORNOS ANSIOSOS (FOBIA SOCIAL, TOC, PÂNICO) E TRANSTORNOS DEPRESSIVOS - DIFERENTES ABORDAGENS TERAPÊUTICAS

 

“Um dia de sessão”1

 

 

Ricardo Maximiliano Pelosi2

Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo - SPAGESP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor introduz seus pensamentos através da criação de uma alegoria contrafóbica. Seria a fala inconsciente de três participantes de um grupo analítico. Depois relata o que os pacientes, efetivamente, disseram. A seguir discorre os conceitos dos fenômenos fóbicos e contrafóbicos, assim como, uma estratégia psicoterápica. Por fim, mais uma criação alegórica, põe palavras na transferência e apresenta a interpretação que fez na sessão.


ABSTRACT

The author introduces his thoughts creating an allegory counter phobic. In this he represents the unconscious speech of three patients in one analytic group. After he tells what the patients really said. Following he describes about the concepts of the phenomenon’s phobics and counter phobics, as well as, one psychoterapyc strategy. Concluding another allegory is created putting words in the transference and shows the interpretation he did at the session.


RESUMEN

El autor introduce sus pensamientos por medio de la creación de una alegoría contrafóbica. Sería el habla del inconsciente de tres participantes de un grupo analítico. Después relata lo que los pacientes, efectivamente, dijeron en la sesión. A seguir discurre los conceptos de los fenómenos fóbicos e contrafóbicos, así como, una estrategia psicoterápica. Por fin, más una creación alegórica, pone palabras en la transferencia y presenta la interpretación que hizo en la sesión.


 

 

Laércio - “O japonês ia dirigindo seu DelRey 1982, verde limão, de rodas roídas, pneus calvos e motor fumegantes, em avenida de três pistas, no lado esquerdo, a trinta quilômetros por hora. Ao lado, sua japonesa muda, sem críticas, cabeça ornada com cabelos pretos, lisos, sem graça, como os dele.

Dei sinal de seta, duas piscadas de farol alto... continuou impávido. Bati em seu pára-choque. Assustou-se, saiu da esquerda, a tempo de ver minha 45 traspassar seu enorme encéfalo e o da japa que estava na linha de tiro.”

Jorge - “Perguntei se meu carro estava pronto. Ele não me olhou, continuou escrevendo na prancheta. Repeti o pedido e obtive a mesma resposta. Aquele suor gelado, começou a escorrer em minha nuca, ia acontecer outra vez. ‘João, vai logo com esta porra!’, gritou para o outro baiano, mais humilde, que mexia num Passat prateado. Cuspiu na escarradeira ao lado do balcão, um segundo antes que minha ‘doze’ fizesse seu intestino grosso espalhar fezes nas paredes da oficina.”

Luiz - “Pus a ponta da ‘luguer’ entre seus grandes lábios. As mucosas estavam secas e pálidas como seu incrédulo semblante. Ainda teve tempo de vomitar em meu rosto antes que eu apertasse o gatilho e sete balas fossem se alojar onde, pouco antes, eu havia estado.”

Um dia de cão? Não, apenas de um grupo, uma sessão. Trata-se de uma alegoria contrafóbica inconsciente que criei para ilustrar a fala de três pacientes em um grupo. Vamos ao discurso manifesto:

Laércio - “Vinha vindo para a sessão hoje. Estava atrasado. Quando cheguei na República do Líbano, o trânsito parou e vocês sabem como eu fico nestas situações. Comecei a tremer, achei que iria desmaiar, morri de medo de um japonês que me olhou feio quando toquei, sem querer, a buzina.”

Jorge - “Nipônicos não me assustam, temo os nordestinos. Eles têm um código de ética diferente do nosso. Matar, para eles, faz parte do cotidiano. Vocês lembram do priminho da Rosane Collor?... Eles invadiram São Paulo... das favelas aos serviços, só dá baiano. Outro dia tive que levar meu carro para a revisão, o chefe da oficina era um desses. Eu perco o jeito com eles, tento ser simpático, fazer piadinhas... é ridículo. Depois do terceiro gracejo, ele me olhou com desprezo, arrogância e soberba. Achei que ia puxar a peixeira. Retruquei com um sorriso que não era amarelo, era pálido.”

Luiz - “A sessão de hoje tá parecendo conversa de cagões. Vou fazer minha parte, de cagão corno! Vocês dizem que é fantasia minha, não é. Só não tenho provas, mas que é real, é. Fantasia é pânico de congestionamento, medo de japonês que olha, de baiano sem peixeira. Tenho certeza que a Moema me trai, há anos... e eu não faço nada! Tenho a mais absoluta convicção de que não poderia viver desacompanhado. Não a procuro mais, não suporto sua rejeição. Quando ela quer eu compareço. Sou um cagão, corno e manso!”

Por uma proposital inversão, num primeiro momento, pus voz no inconsciente, depois relatei o discurso consciente, havido. Agora pretendo, me afastando temporariamente da sessão, falar de fobias e contrafobias.

Entende-se fobia como sendo um medo que a razão não explica e que obriga o seu sentidor a empreender heróicas, digo covardes, fugas das situações ou atividades geradoras do sentimento. Fobia Social está definida no DSM-III-R como sendo medo de humilhação e constrangimento em determinadas situações públicas.

A psicanálise explica a ansiedade, sentimento dominante nas fobias, como sendo um grito de alerta ao Ego, frente a um evocado conflito sexual inconsciente (impulsos homossexuais reprimidos, desejos incestuosos, pavor de castração, etc.) deslocado, defensivamente, para objetos ou situações do mundo real.

Frente a uma fobia, certos Egos peripécicos são capazes de forjar uma defesa sofisticada, a contrafobia. Covardes de carteirinha transformam-se em destemidos diplomados. Enrustidos inconscientes, travestidos de garanhões insaciáveis. Messalinas devassas, em irmãs de caridade. Codinome: Formação Reativa.

Minha fantasia misógina e xenófoba, ilustra como seria uma defesa contrafóbica destes três pacientes. Não há dúvida que na etiologia das sociopatias mais aberrantes, encontram-se estas formações reativas.

Vocês lembram-se do Ho Chi Min? Aquele vietnamita franzino, velhinho de barbas brancas? Sob sua liderança, o Vietnã do Norte derrotou, inicialmente a França e depois os Estados Unidos. Uma vez, perguntado como havia conseguido tal façanha, respondeu algo mais ou menos assim: “Quando os inimigos são muito fortes, não se os enfrenta pela frente, vai-se pelas costas!”. É esta a estratégia terapêutica para os problemas fóbicos. São monumentos psicopatológicos que devem ser minados pelas interpretações transferenciais.

Vamos ver agora, como poderíamos verter a comunicação dos meus pacientes, em uma linguagem transferencial, pseudo-explícita, e qual foi a interpretação psicanalítica.

Laércio - “Gente, eu estava desesperado para chegar aqui, queria me proteger no colo da minha mãe terapeuta. Meu pavor era que o Ricardo-japonês me apontasse a inconveniência de meu desejo!”

Jorge - “Eu também sinto algo parecido. Venho aqui, tento fazer gracinhas, mas não o convenço. Ele sempre descobre que na verdade eu queria que ela me escolhesse e não me desprezasse, preferindo ele ou vocês.”

Luiz - “Vocês estão em dúvida? Eu tenho certeza que eles trepam. Tento abrir a porta, mas eles trancam. Fazem de tudo lá dentro e nós ficamos aqui nos contentando com as migalhas que nos dão.”

Ricardo - “Lembrei de uma frase que a Geórgia (ex-paciente deste grupo) disse há algum tempo: ‘Isto parece com estacionamento de supermercado burguês, cada um está louco para achar uma vaga!’. Cada um de vocês está louco para estacionar entre nós, terapeutas. O salvo conduto que estão utilizando é um esquisito concurso, quem ganha o troféu do mais amedrontado!”

É importante dizer que neste grupo, na época, eu contava com o auxílio de uma co-terapeuta. Esta condição permite uma transferência obediente ao gênero. Não a advogo, nem a condeno, ela facilita algumas coisa, dificulta outras. Discorrer sobre isto nos afastará do tema da mesa, fica para outra ocasião. Saliento apenas que as “falas” transferenciais não mudariam se estivesse só na sessão. Lembrem-se que um analista é, sempre, um hermafrodita. Cabe-lhe transferências pan-sexuais.

Minha interpretação foi obediente à “regra” Ho Chi Min: jamais enfrentar gigantes. Privilegiar suas fobias, seria fermentá-las. Apontar suas possíveis contrafobias inconscientes, é expor-se ao risco de atuações. Interpretar a transferência, é pôr ternura na agrura da neurose. É dar condições de abstrações. É fazer poesias no continente paralelepipético das fobias. É tentar praticar... psicanalizar! Não sei se consegui!

 

 

Endereço para correspondência
Ricardo Maximiliano Pelosi
Rua Charles Camoin, 88. Ibirapuera.
São Paulo - capital. CEP: 04008-020
Tel.: 0xx11.3051-2504

 

 

1 IV Jornada da SPAGESP &– Ribeirão Preto, Abril/2000.
2 Médico grupanalista, membro e docente da SPAGESP e do NESME.