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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP v.2 n.2 Ribeirão Preto  2001

 

PARTE II - GRUPOS NA SAÚDE E EDUCAÇÃO

 

“Você tem fome de que?” – Grupoterapia nos transtornos alimentares 1

 

 

Manoel Antônio dos Santos 2

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A grupoterapia tem sido largamente utilizada como um recurso terapêutico eficaz no tratamento da obesidade. O presente trabalho se propõe a descrever alguns fenômenos que emergem no contexto de uma psicoterapia de grupo de tempo limitado. Foram selecionados pacientes que mostravam motivação para se engajarem em uma nova perspectiva de compreensão dos fatores intra e interpessoais que estão na gênese do fenômeno da obesidade e que influenciam a aderência ao tratamento. A análise do material clínico apresentado, com base no enquadre teórico psicanalítico, evidencia o valor terapêutico do autoconhecimento proporcionado pelo insight que advém da experiência emocional compartilhada. Os achados dão consistência teórica à hipótese de que a psicoterapia de grupo pode favorecer uma reorganização do mundo afetivo e relacional do paciente.

Palavras-chave: Psicoterapia de grupo; Transtornos alimentares; Obesidade mórbida.


ABSTRACT

The group psychotherapy has been widely used as an efficient therapeutical resource in treating obesity. The present work proposes to describe some phenomena, which emerge in the context of time limited group psychotherapy. Patients who showed motivation to join a new perspective of comprehension of intra and interpersonal factors which are in the genesis of the phenomenon of obesity and which influence the adherence to treatment were selected. The analysis of the clinical material presented, with basis on the psychoanalytical theoretical focus, evidences the therapeutic value of self-knowledge proposed by the insight, which comes from the emotional experience shared. The findings are theoretically consistent to the hypothesis in which psychotherapy in group can favour a reorganization of patient’s affective and relational word.

Keywords: Group psychotherapy; Eating disorders; Morbid obesity.


RESUMEN

La grupoterapia ha sido largamente utilizada como un recurso terapéutico eficaz no tratamiento da obesidad. Lo presente trabajo se propone a describir algunos fenómenos que salen no contexto de una psicoterapia de grupo de tiempo limitado. Fueran seleccionados enfermos que mostraban motivación para contratarense en una nueva perspectiva de comprensión de los factores intra y interpersonales que están en la génesis de los fenómenos da obesidad y que influencian la adherencia al tratamiento. La análisis del material clínico presentado, con base en el encuadre teórico de la psicoanálisis, evidencia lo valor terapéutico del autoconocimiento proporcionado pelo insight que sale da experiencia emocional compartillada. Los hallazgos dan consistencia teórica a una hipótesis de que la psicoterapia de grupo puede favorecer una reorganización del mundo afectivo y relacional del enfermo.

Palabras clave: Psicoterapia de grupo; Trastorno alimentar; Obesidad mórbida.


 

 

As pesquisas no campo da obesidade mórbida têm evidenciado sua etiologia multideterminada, o que impõe um desafio à descoberta de métodos eficazes de tratamento. Os estudos apontam para a maior efetividade obtida por estratégias combinadas, dentro de uma abordagem multidisciplinar, que leve em consideração os múltiplos fatores (genéticos, psicológicos e sócio-culturais) que interagem na produção do transtorno.

Nesse contexto, tem sido cada vez mais enfatizado que o êxito do tratamento da obesidade está inextricavelmente relacionado com o uso de técnicas psicológicas. Objetiva-se produzir alterações não apenas nos hábitos alimentares e atividades cotidianas, mas também no estilo de vida e nos padrões culturais que o alicerçam. Essa concepção destaca os fatores ambientais e de aprendizagem associados ao desenvolvimento da obesidade.

A psicoterapia tem ganhado relevância crescente dentre as técnicas voltadas para a obtenção de mudanças comportamentais associadas ao padrão de conduta alimentar. No planejamento da intervenção, um dos objetivos a ser buscado é o de promover alterações cognitivas, que permitam ao paciente reconhecer suas idéias e pensamentos associados ao comportamento alimentar. O meio pelo qual essas reformulações cognitivas podem ser alcançadas varia de acordo com a técnica e o enquadre teórico utilizado, e abarcam desde os tratamentos que enfocam os processos de aprendizagem até os que visam a incorporação de conteúdos inconscientes pelo consciente (Zuckerfeld, 1979).

No âmbito do presente trabalho, iremos nos deter nesse último enfoque. Procuraremos mostrar que mudanças psíquicas podem ser desencadeadas a partir do exame de fatores emocionais e cognitivos que emergem na situação psicoterapêutica, e que um dos instrumentos mais refinados que o terapeuta treinado pode manejar com bastante eficácia é a análise de processos transferenciais.

Para alcançar esse propósito, analisaremos um grupo terapêutico empregado como apoio em um tratamento multidisciplinar de obesidade mórbida. Trata-se de um programa para pacientes com problemas de obesidade à base de reeducação alimentar (e não de severa limitação calórica na dieta). Esse programa é desenvolvido junto ao Ambulatório de Nutrologia do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP.

 

PROPOSTA TERAPÊUTICA: NOSSA OFERTA AOS PACIENTES

O objetivo é fornecer apoio ao atendimento clínico (individual) de obesos, através de atividade de grupoterapia, visando assegurar a continuidade do atendimento individualizado (tratamento endocrinológico e nutricional), bem como a manutenção dos resultados obtidos.

 

MONTANDO O DISPOSITIVO GRUPAL

Para a composição dos grupos, foram adotados alguns critérios, baseados nas recomendações preconizadas pela literatura da área. A indicação para psicoterapia era baseada na evidência de conflitos intrapsíquicos e/ou sintomas neuróticos que justificassem uma abordagem psicoterápica.

Os pacientes foram atraídos por uma nova proposta para tratamento da obesidade mórbida, colocada como coadjuvante e complementar ao tratamento convencional.

O grupo era coordenado por dois psicoterapeutas (um homem e uma mulher), ambos psicólogos com experiência em grupoterapia no contexto de serviços de saúde. 3 A composição do grupo era estável (grupo fechado), com maior presença de mulheres (oito participantes eram do sexo feminino e três do sexo masculino). As sessões transcorriam em uma sala do Hospital das Clínicas.

O referencial teórico-técnico seguido foi o da Psicoterapia de Grupo de Tempo Limitado &– PGTL (Klein, 1993). O grupo teve a duração de 14 sessões. As sessões tinham freqüência semanal e duração de 1:30 h. Decorrido um mês do término da PGTL, foram realizadas mais quatro sessões de seguimento (follow-up imediato), com freqüência mensal e duração de 1:30 h, com o objetivo de monitorar a situação atual dos participantes, oferecer um espaço de ventilação e troca das experiências vivenciadas após a conclusão do tratamento, bem como favorecer a manutenção dos resultados e ganhos eventualmente obtidos com o processo terapêutico.

 

O GRUPO: VICISSITUDES DE UMA EXPERIÊNCIA

Optamos por apresentar o material clínico proveniente de uma sessão (primeira sessão de seguimento), que permite vislumbrar como o grupo se encontra decorrido um mês do término do trabalho.

Nessa sessão em particular, o grupo “elegeu” como protagonista uma das participantes. Vamos chamá-la de Júlia (nome fictício), 39 anos, professora do Ciclo Básico, casada, sem filhos, sem experiência psicoterapêutica prévia. Apresenta um quadro de insuficiência renal crônica, agravado por uma infecção hospitalar contraída após uma cirurgia dos rins. Por recomendação médica, necessita emagrecer urgentemente, sob pena de ter de iniciar um tratamento de hemodiálise, vista por Júlia como uma perspectiva bastante sombria.

Desde o início da PGTL, Júlia não consegue envolver-se no grupo. Há momentos em que Júlia mostra-se mais receptiva e consegue ouvir o outro, mas tende a permanecer em uma posição de espectadora do que é narrado.

Em vários momentos ao longo do processo, Júlia foi até capaz de se colocar, mas estes, via de regra, foram alternados com momentos de absoluta apatia, em que a paciente chegava a dormir e ressoar de maneira ruidosa, incomodando o restante do grupo. Nesses episódios, era freqüentemente “cutucada” ou advertida verbalmente por outro componente.

Quando parece sentir que o grupo oferece a confiança necessária para que possa se expressar, Júlia relata invariavelmente sua dificuldade de conter seus impulsos de fome. Por não estar conseguindo emagrecer por conta própria, foi indicada pela equipe médica uma hospitalização integral por dois meses, com o único objetivo de alterar seus hábitos alimentares de forma drástica. Júlia recebeu essa indicação médica como um presente alvissareiro, fortalecendo sua esperança de conseguir a redução de peso, escapando da temida hemodiálise. A internação não a impediu de continuar a participar do grupo, realizado nas dependências do próprio hospital.

Já no início da primeira sessão de follow-up, Júlia é “denunciada” por outro participante do grupo (João), que conta que na sessão de encerramento do grupo, quando foi oferecido aos participantes um almoço, ela ocultara de todos que já havia feito sua refeição antes. Com isso, acabou “almoçando duas vezes”.

Júlia confirma tal fato em um tom de voz mais infantil do que o habitual, o que lembra uma criança confessando aos pais a “arte” que fizera. Contudo, ela o faz rindo, aparentando tranqüilidade e displicência. Sentindo-se pressionada pelo grupo, procura se justificar:

Júlia: “(...) Eu sempre via vindo frango no carrinho dos outros e nunca vinha para mim. Quando eu vi o macarrão, nossa! (Faz uma expressão de quem cobiça a comida alheia.) Deu aquela dorzinha por dentro... Mas quando veio para mim, foi só três lasquinhas... Eles pegaram a coxa do frango e tiraram três lasquinhas...”

Todos riem com o episódio, mas logo uma certa ansiedade povoa a sala e altera o clima grupal. O grupo se inquieta. Nesse momento, a co-terapeuta assinala que essa sensação de que o “alimento” não era suficiente aplicava-se também ao término das sessões grupais.

Co-terapeuta: “... E agora essas sessões novas parecem essa carne que veio para a Júlia: vem três lasquinhas! (risos generalizados) e uma vez por mês, ainda por cima! Então, de certa forma, a gente pode pensar nessa falta também, não é? Desse racionamento de sessão, igual ao de comida para vocês.”

O grupo parece conferir credibilidade à interpretação, embora ninguém se refira diretamente ao seu conteúdo. Logo em seguida, João descreve a estratégia que utiliza para ludibriar a “fome”: enche o prato de almeirão. Parece que seu intento é “servir” essa estratégia de contenção dos impulsos vorazes como um “prato” que pudesse ser imitado pelos demais participantes.

Júlia, no entanto, parece mais preocupada em permanecer no já conhecido. Relata a sua satisfação em gratificar todas as necessidades de seus alunos. Dois deles haviam sido proibidos pela diretoria, por indisciplina, de participarem de uma excursão didática. Júlia elaborou um estratagema com a finalidade de permitir que as duas crianças participassem da excursão. Crianças que parecem representar as partes mais imaturas e infantis de sua personalidade, incapaz de aceitar limites e perceber o aspecto construtivo de uma punição.

Uma outra participante do grupo, Fernanda, conta que agora tem acordado de madrugada com vontade de comer, o que não era comum há um mês atrás. Mas tem se contido. Nesse caso, o “prato” oferecido à degustação do grupo vem sob a forma de uma atitude heróica. O triunfo fica por conta da parte mais madura da personalidade, que agora tem condições de dialogar com a parte voraz e questionar: Por que esse comportamento atípico aparece logo agora? Fernanda parece encontrar por si mesma a resposta, quando mais tarde comenta a falta que tem sentido dos encontros semanais do grupo.

Terapeuta: “O que a gente está falando aqui é das diferentes maneiras que cada um tem de lidar com a falta de algo. (...) Fernanda diz que está se segurando, e não assalta a geladeira, por exemplo.”

Fernanda: “Se eu vou assaltar num dia, no outro dia vai estar a mesma coisa...”

Júlia: “Eu já aprendi uma coisa. Quanto mais você come, mais vontade[você tem] de comer. Quanto mais você come, mais fome você tem.”

Fernanda (voltando-se para Júlia, em um tom provocativo): “Você não pode resistir a nada!”

Terapeuta: “A forma como a Júlia reage a essas limitações parece estar incomodando a todos. (...) Porque parece que não houve mudança alguma: quando ela sente alguma falta, desconta no consumo de comida...”

Fernanda (agora numa inusitada atitude contemporizadora): “Ela tem que comer sim, mas não demais.”

Uma outra paciente (Semiramis) conta que prepara suas porções de legumes e as coloca em vasilhames de plástico, deixando as quantidades certas já reservadas para o almoço e para o jantar. “Então dá para controlar...”

Co-terapeuta: “Eu penso que a gente está falando aqui dessa dificuldade de controlar esse desejo de não parar de comer. (...) Eu vejo aqui a Júlia falar dessa comilança dela, parece que é uma ‘arte’. Como se dissesse: ‘Olha, você não vai ficar brava comigo hoje’.” (Risos)

Terapeuta: “Parece que há um prazer nessa transgressão, não é? O prazer de realizar o que é proibido. (Agora dirigindo-se especialmente à Júlia) (...) você não se conforma com o ‘racionamento’. E quando está diante de pouca quantidade de comida, é como se aquilo não fosse nada. Então, tem que ter bastante, que é para alimentar essa parte sua, que é sua mente faminta...”

Júlia (com uma expressão de evidente desapontamento): “Quando faço pouco, parece que a comida não tem gosto de nada...” 4 Comenta que ouvira de um médico um autêntico ultimato: Ou você emagrece ou vai mesmo para hemodiálise. “Bom, foi o maior choque! Aí acabei ficando mal... (É importante observar que a tristeza em nenhum momento transparece em seu relato.) (...) Então, assim que o doutor virou as costas, eu peguei um chocolate que estava na minha bolsa e comi inteiro. Não sei o que que eu tenho, acho que preciso fazer um exame[clínico] para saber o que está errado comigo. (...) Não é a fome, é a vontade de comer...”

Novamente seu relato evoca desejos infantis. A conexão entre a conduta atual e lado imaturo da personalidade é cristalina, embora passe despercebida pela paciente. O chocolate que leva como “reserva” na bolsa, para ser usada nos momentos em que se sente invadida pela angústia, representa um antigo estratagema empregado para evitar a dor e deprimir-se.

Terapeuta: “Interessante a gente poder aqui examinar essa vontade. (...) Eu fiquei pensando que, em um grupo como esse, de tratamento, o que a gente faz, na verdade, o tempo todo é esse ‘exame’ (...) Então aqui é o lugar do exame. (Para Júlia:) Exame você não vai fazer, você já está fazendo! Exame é poder ouvir dos colegas o que eles têm a dizer sobre essa sua conduta diante desse desejo.”

Co-terapeuta: “E a gente pode fazer o que quiser com o exame que faz. (...) Eu penso que a gente também está falando dessa dificuldade de decidir. (Para Júlia:) Você está falando que é muito difícil para você decidir aceitar esse tratamento.”

Fernanda: “(...) porque agora a Júlia sabe o que ela tem. (...) Então, Júlia, você tem que lutar também (...). Ela tem alguma coisa aí dentro que tudo o que ela tem vontade, ela come!

Júlia conta que, quando era pequena, pedia ao avô que lhe comprasse balas. Sua família tinha uma padaria, mas ela dizia para o avô que queria a bala que vendia do outro lado da rua. O avô, muito paciente, fazia a sua vontade.

Terapeuta: “Parece, então, que as razões que nos levam a não ter &– ou a perder &– esse controle alimentar passam pelos caminhos de nossas vidas. A maneira como a gente se relaciona com as pessoas e com as nossas necessidades, mais do que com o corpo em si. O corpo vai ser só uma conseqüência, no fim das contas (...) Mas essa fome tem que ser pensada também como falta de outras necessidades básicas, que não é só da comida. (...) Quando tem alguma falta, alguma carência que não se sabe como preencher, se preenche com a comida.”

Júlia: “(...) Eu preciso comer qualquer coisa doce, senão vai me dando uma tristeza...”

Terapeuta: “Você está falando que o doce &– isto é, comida com alto teor calórico, que vai fazer você ficar cada vez mais com sobrepeso &– funciona como remédio para você. Que come como alguém que toma remédio contra a depressão. Em vez de examinar as razões que a levam a ficar triste, (...) volta a recorrer a esse recurso antigo que aprendeu desde lá dos tempos do seu avô (...). Hoje você já tem uma oportunidade a mais de pensar, porque você já não é mais criança. O grupo já falou várias vezes hoje que você tem consciência, tem conhecimento do que faz bem[para a saúde] e do que não faz. Então, se o seu médico lhe traz essa notícia de que vai ter de ir para hemodiálise, e isso foi profundamente triste, para você é como se fosse uma punição. E você reage a isso com revolta, atacando o chocolate que tem na bolsa, quer dizer, se agredindo mais ainda. (...) Então, que responsabilidade é essa que você tem sobre sua vida? O grupo está trazendo hoje... cada um está trazendo as suas próprias fraquezas, mas hoje você está na berlinda, está sendo o foco (risos de todos, incluindo Júlia), as luzes estão voltadas para você desde o início... Mas o que está chamando a atenção é a maneira negligente como você tem lidado com sua saúde.”

No final, durante a avaliação que cada participante é convidado a fazer sobre como havia vivenciado o grupo naquele dia, Júlia destaca que aprendera muito naquele encontro: “É, eu quero que façam todas as minhas vontades, né? Eu não agüento me sentir insatisfeita.”

 

ALINHAVANDO ALGUMAS LINHAS... E DESVELANDO O NOVELO

Na sessão focalizada, fica evidente que os conflitos emocionais encontrados nos pacientes obesos parecem datar desde a mais tenra infância. Assim, pode-se postular que eles provavelmente têm origem em problemas e vicissitudes enfrentadas no estabelecimento das relações objetais mais arcaicas: percebemos, em Júlia, a existência de um objeto internalizado com arrogância triunfante, revestido de uma capacidade onipotente de gratificar automaticamente todas as necessidades. Lembrar-se do episódio com o avô é tão-somente uma maneira encontrada de representar esse tipo de relação objetal em que o outro é instrumentalizado para por em movimento o processo primário de pensamento. Nesse contexto psicológico, não há, rigorosamente falando, qualquer distância psíquica entre o eu e o outro, o que explicaria porque é indiferente que a gratificação venha do mundo externo (do avô) ou do mundo interno (dela própria, via chocolate), ou mesmo se ocorre por via consciente (por uma estratégia de ludibriamento deliberado da diretoria da escola) ou inconsciente (pelas costas do médico que havia funcionado como arauto de uma má notícia).

Nesse tipo de configuração psíquica, o limiar de tolerância à frustração é baixíssimo. A prematura incapacidade para tolerar frustrações gera uma hipertrofia extraordinária da onipotência. O controle onipotente é utilizado junto a mecanismos de identificação projetiva e dissociação (por essa razão, a paciente parece “não estar nem aí” frente aos comentários críticos dos demais), e freqüentemente aparece alternado com sentimentos de desânimo e de vazio.

O sintoma obesidade surge, assim, como uma resultante psíquica de todo um processo que se sustenta sobre um modelo diretamente ligado aos processos identificatórios que se inscreveram no psiquismo infantil e, portanto, como ensina a psicanálise, durante a constituição dos fundamentos do ego ao longo da infância, com as transcrições de primitivas experiências emocionais associadas às experiências corporais de gratificação e frustração. As experiências pulsionais vividas sofreram uma “montagem particular” na construção da subjetividade desses indivíduos que tenderão à obesidade. Uma vez vividas, elas continuam vívidas na mente. Isto é, conservam-se intactas no inconsciente e assumem diferentes configurações vinculares que determinam a singularidade do modo de gratificação pulsional que o sujeito irá buscar pela vida afora. Essas “marcas” indeléveis que foram deixadas pelo caminho vão determinar padrões de conduta que o sujeito atualiza nos seus relacionamentos cotidianos nos grupos de convivência. Por isso, na condução do tratamento psicoterapêutico, é preciso acessar a estruturação fantasmática dos desejos inconscientes e a forma como eles se inscreveram e se atualizam nas configurações vinculares. O dispositivo grupal, como se viu em várias passagens do material descrito, favorece essa análise, à medida que o grupo funciona como caixa de ressonância das experiências infantis não elaboradas, permitindo não apenas que elas venham à tona, como também oferecendo alternativas para que o indivíduo busque uma solução mais satisfatória para seus conflitos.

O que perseguimos, como agentes catalisadores do processo grupal, pode ser resumido através da tríade: insight &– elaboração &– cura, conforme a fórmula da mudança psíquica sintetizada por Zimerman (1999).

Pode-se dizer que, de alguma maneira, Júlia representa perigo para os demais componentes, colocando em xeque a tarefa que justifica sua existência como grupo de trabalho. É somente no grupo que o perigo concreto de morte parece encontrar alguma ressonância, e é por isso que as suas transgressões vão finalmente se revestir de seu real significado recalcado (prenúncio da atuação da pulsão de morte) e funcionar como um autêntico libelo e grito de alerta da vida que está por um fio.

Júlia encarna os extremos a que se pode chegar quando o narcisismo é colocado a serviço da pulsão de morte. Descuidar-se de si própria, abandonando-se à própria sorte, é de certo modo cortejar perigosamente a morte. É, literalmente, descurar-se, não contribuir para a própria cura, e resistir ativamente a todo movimento que a conduza no caminho da própria salvação. Sua tendência notável a fazer acting-outs torna-se por demais conhecida de todos do grupo, que a repreendem e dão-lhe conselhos para mudar seu proceder. Todos se voltam para ela (e não contra ela, o que é muito importante), no intuito de demovê-lo desse lugar mortífero.

Ela parece inclusive fruir algum prazer secreto dessa posição privilegiada em que é colocada, como alvo de uma série de mandamentos superegóicos enunciados por vários membros do grupo, o que pode explicar a submissão aparentemente dócil que assume diante de tais injunções. Por outro lado, de um certo modo ela também leva cada membro do grupo a se aproximar de sua própria “insuficiência psíquica crônica”, a insuficiência que todos ali compartilham à medida que perderam em grande medida sua capacidade de autonomia e decisão sobre a própria vida. Na verdade, é por esse aspecto que eles se identificam uns com os outros, e podem aprender o potencial transformador do receber e oferecer ajuda. Ou seja, a importância do apoio mútuo, através do qual cada um aprende a não fazer segredo de sua dor.

Identificar-se com o lugar do insuficiente psíquico crônico produz uma série de fantasias insuportáveis para vários componentes do grupo, como a de ser portador de um mal incurável, uma espécie de entidade que estaria inscrita em algum lugar do cérebro, a exigir que um rigoroso exame médico pudesse localizar cabalmente o foco de sua problemática. Esse tipo de fantasia persecutória leva cada um a exigir, maniacamente, salvaguardas emocionais e suplementos (elementares/alimentares). Uma das fantasias mais recorrentes manifestas pelo grupo é o temor de que todos se vejam, de repente, totalmente impotentes diante do crescente excesso de peso, tornando-se assim “cronicamente inviáveis”, entregues ao movimento inercial do sintoma, ao irreversível desatino de um corpo que se arrasta vagarosamente, com graves prejuízos para a saúde.

Há, como se pode inferir do material clínico exposto, um incessante bombardeio de identificações projetivas cruzadas de uns sobre os outros. Essas identificações projetivas maciças são uma forma de comunicação primitiva, segundo Bion (1967), decorrentes de uma incapacidade de pensar sobre as experiências emocionais. O grupoterapeuta deve funcionar como continente adequado para elas, usando sua contratransferência como uma “bússola empática” &– expressão cunhada por Zimerman (2000). Graças a esse tipo especial de acolhimento (em termos bionianos, rêverie) e manejo das relações vividas no calor da hora grupal, observa-se que, pouco a pouco, os participantes conseguem internalizar certas construções de sentidos que puderam ser negociados durante o processo terapêutico. Percebem que o grupo é oportunidade não tanto para se aprender algo, mas para aprender a aprender sobre nossas configurações vinculares. Como sabiamente escreveu João Guimarães Rosa: “Aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.”

Vimos, através da fala final de Júlia, a sinalização de uma possível conscientização sobre um aspecto essencial em sua vida de relações, acompanhada de uma vivência emocional compartilhada no coletivo grupal. Se essa vivência emocional puder ser vivenciada como uma experiência emocional corretiva, estaremos próximo de um insight, e poderemos esperar alguma mudança na atitude da paciente com relação a seu próprio viver e sua frágil condição de saúde psíquica. Isso a obrigaria a reorganizar-se psiquicamente para:

a. responder a esse conhecimento novo que acaba de ser adquirido;

b. enfrentar essa situação de mudança e de crescimento.

É o conceito de mudança catastrófica de que nos fala Bion (1966). Em minha opinião, o grupo ajuda a construir e pavimentar o caminho que leva o paciente a suportar a mudança catastrófica.

Acredito que a psicanálise pode permitir libertar o sujeito de sua condição de aprisionamento neurótico. É possível instaurar transformações psíquicas a partir do autoconhecimento proporcionado pelo insight, que só advém verdadeiramente da experiência emocional. Essas mudanças podem ser potencializadas pela análise dos processos transferenciais reeditados na situação grupal.

Acredito que a psicanálise nos permite ficar mais próximos do coração selvagem 5 (inconsciente). O ambiente de acolhimento que oferecemos ao paciente é que dá permissão para ele se encontrar com sua dor e seu sofrimento, abrindo-se à possibilidade de uma experiência emocional transformada e transformadora. Desse modo, quem sabe há de ser possível, dentro da singularidade da experiência de cada um, encontrar um lugar em nosso coração que abrigue o selvagem que nos habita.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BION, W. R. (1966) Catastrophic change. Bull. Brit. Psycho-Anal., Soc. nº 5.        [ Links ]

BION, W. R. (1967) Estudos psicanalíticos revisados (Second thoughts). Trad. de Wellington Marcos de Melo Dantas. Rio de Janeiro: Imago, 1988.        [ Links ]

KLEIN, R. H. (1993) Psicoterapia de grupo de curto prazo. Em: KAPLAN, H. I. e SADOCK, B. J. (Org.) Compêndio de psicoterapia de grupo. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu e Dayse Batista. 3ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996, 215-226.        [ Links ]

ZIMERMAN, D. E. (1999) Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica &– uma abordagem didática. Porto Alegre: ArtMed.        [ Links ]

ZIMERMAN, D. E. (2000) Fundamentos básicos das grupoterapias. 2ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas Sul.        [ Links ]

ZUCKERFELD, R. (1979) Psicoterapía de la obesidad. Buenos Aires: Ed. Letra Viva.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Manoel Antônio dos Santos
E-mail: masantos@ffclrp.usp.br

 

 

1 Uma versão parcial desse trabalho foi apresentada durante a 5ª Jornada da SPAGESP, na mesa-redonda: Perspectivas do trabalho grupal na saúde e educação, realizada na cidade de Franca (SP), em 31 de março de 2001.
2 Docente do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
3 É importante assinalar que dividi esse trabalho com a psicóloga Marinella Benez e que pudemos contar com a supervisão do Dr. José Onildo B. Contel. A ambos expresso meu sincero agradecimento.
4 Ou seja, na sua concepção, se não é “banquete”, é “jejum”.
5 Expressão do escritor irlandês James Joyce, citada por Clarice Lispector no título de seu primeiro romance: Perto do coração selvagem, publicado em 1944.