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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP v.4 n.4 Ribeirão Preto dez. 2003

 

ARTIGOS

 

Grupos na escola: questões sobre a igualdade e a diferença no processo de inclusão

 

Groups at school: matters on equality and difference in the inclusion process

 

Grupos en la escuela: cuestiónes acerca de la igualdad y la diferencia en el proceso de inclusión

 

 

Solange Aparecida Emilio 1

Universidade Mackenzie - SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto aborda o processo de inclusão a partir do impacto da chegada de um indivíduo significativamente diferente em um grupo. Busca, com isso, fornecer subsídios que auxiliem os profissionais envolvidos com o cotidiano escolar.

Palavras-chave: Grupos; Inclusão; Educação especial.


ABSTRACT

The text approachs the inclusion process from the impact caused by the arrival of a significantly different person in a group. Thereby, tries to offer tools for professionals which are involved with the educational context.

Keywords: Groups; Inclusion; Special education.


RESUMEN

El texto enfoca el proceso de inclusión a partir del impacto causado por la llegada de una persona perceptiblemente diversa en un grupo. De tal modo, intenta ofrecer las herramientas para los profesionales que están implicados con el contexto educativo.

Palabras clave: Grupos; Inclusión; Educación especial.


 

 

Muito se tem falado acerca da importância do acolhimento a indivíduos com necessidades educacionais especiais em salas regulares nas escolas, o propagado “processo de inclusão”. No entanto, nos textos sobre o assunto (e são muitos!) parece haver uma lacuna, um silêncio, sobre as questões grupais envolvidas, tais como: Quais são as conseqüências da inclusão para o grupo como um todo? Como o grupo recebe o indivíduo e como fica a sua pertença? Como o professor trabalha com a questão das diferenças significativas?

Tenho observado, em minha prática cotidiana que, quando é questionado, pelos alunos, o motivo da entrada de alguém muito diferente no grupo, duas modalidades de respostas são normalmente utilizadas pelos professores. Uma delas é: “somos todos diferentes” ou “todos temos uma necessidade especial”, comportando a idéia de que somos igualados pelas diferenças, já que todos temos nossas peculiaridades que, trazidas para as relações, dificultam ou impossibilitam as tentativas de padronização de conceitos e técnicas, tornando necessário, senão imprescindível, o tratamento e a atenção diferenciados para cada um dos alunos. O indivíduo com necessidades educacionais especiais, então, seria mais um a trazer suas diferenças para o grupo. A outra resposta também utilizada é “somos todos iguais”, como referência ao fato de termos, igualmente, direito à saúde, educação, cultura, etc. De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em voga desde 1948, os direitos, sendo universais, servem para todos, assim, independentemente da condição, o fato de ser humano garantiria tais direitos.

Apesar de parecerem contraditórias, ambas as frases foram e são ainda hoje usadas como lema por alguns teóricos defensores da inclusão e responsáveis pela formação de profissionais para esta nova realidade educacional. Fica, no entanto, uma inquietação: por verdadeiras, parece que ambas as afirmações terminam anulando-se mutuamente (se somos todos iguais não podemos ser todos diferentes) e, mais complicado, contribuem para a negação explícita das diferenças significativas.

Aproveitarei o recorte de uma situação de grupo para ilustrar e ampliar as discussões iniciadas acima. Trarei fragmentos de situações ocorridas em uma escola que está empenhada em realizar a inclusão de forma ética e responsável, e que ainda busca respostas para inúmeras questões que vêm surgindo neste processo.

Marcos recebeu o diagnóstico de Deficiência Mental na primeira infância; freqüentou salas especiais de escolas públicas até os 10 anos, quando ingressou na primeira série de uma escola regular, iniciando, somente então, a alfabetização. Do ponto de vista pedagógico, acompanhava o grupo de alunos menores, porém, desde o princípio, teve uma convivência muitas vezes conturbada pelas diferenças nos interesses e na forma de resolução dos problemas (não se interessava pelas mesmas brincadeiras que os demais colegas; quando havia uma divergência, descobriu que podia intimidar os colegas menores por sua força física superior e não se encabulava em utilizá-la). Na terceira série, porém, a sua convivência com os colegas, que tinham em torno de 9 anos, tornou-se inviável, pois apesar de acompanhar as atividades realizadas pelo grupo, não conseguia participar das brincadeiras e dos momentos de lazer, adotando, então, uma abordagem ora agressiva e ora extremamente irônica. Na ocasião com 13 anos, chegou a enviar bilhetes com frases obscenas para as colegas e tentava acariciá-las em suas partes íntimas. Após inúmeras tentativas malsucedidas de resolução das dificuldades surgidas com o grupo, decidiu-se por transferi-lo para um grupo de alunos mais velhos.

Interrompemos a narrativa neste ponto para pensarmos nos critérios de escolha de grupo para a inclusão de um aluno. O fato de Marcos acompanhar, do ponto de vista pedagógico, as atividades com o grupo não era suficiente para que se sentisse incluído neste. Parece, então, que este deve ser um cuidado inicial a ser tomado, quando se pensa na inclusão. Considerando que este grupo conviverá por muito tempo durante o ano letivo, os interesses dos integrantes devem ser minimamente compatíveis, pois, de outra forma, ficará difícil possibilitar a seus integrantes sentirem-se pertencentes.

Voltemos ao caso:

A escolha da nova turma para o aluno foi cuidadosa. Optou-se por um grupo diferenciado dentro daquele contexto, relativamente pequeno, com apenas dez alunos, tendo uma média de 13 anos. Talvez em função do número e também das características individuais, se destacava pela maturidade e interesse em relação às disciplinas e à escola, recebendo elogios de todos os professores. Houve a preocupação de preparar o aluno, o grupo escolhido e também os professores para esta nova situação. Todos concordaram, num primeiro momento. O combinado foi de que ele faria atividades específicas para a sua condição, quando necessário, mas participaria de todas as atividades grupais que fossem possíveis.

No início, parecia que tudo estava indo bem, pois o novo contexto não permitiu a ele ser inconveniente com seus colegas, já que as reações eram diferentes das apresentadas pelos menores, o que o levou a mudar de brincadeiras. No entanto, com o passar dos dias, percebeu-se que, apesar de potencialmente haver maiores condições de que ele fosse acolhido por este grupo, não estava autorizado a pertencer a ele. Num determinado dia, um aluno se queixou de que Marcos fazia barulhos durante a realização das provas. Verificou-se que os professores haviam se esquecido de preparar uma prova específica para ele que, sabidamente, não conseguiria realizar as provas aplicadas aos demais. A solução havia sido solicitar a ele que ficasse quietinho enquanto os demais faziam suas atividades (o que, obviamente, não aconteceu). Em outro, um professor, justificando a falta de atenção a Marcos em uma determinada aula diz o seguinte: “não deu para fazer nenhuma atividade com ele porque o grupo estava tão motivado em ir adiante com a matéria que eu não quis perder tempo”. Quando questionado sobre o porquê da preocupação com o tempo, o professor alegou que não havia atraso na matéria, pelo contrário, o fato de o grupo estar bastante avançado em relação à outra turma da mesma série dava a medida de como ele poderia ser estimulado a aprender mais e mais, sendo, portanto, incoerente fazer o grupo esperar por alguém que tinha outras necessidades.

Ao longo do ano letivo, foram sendo apontados e evidenciados os movimentos de exclusão grupal nas várias reuniões realizadas com os professores e alunos deste grupo. Havia uma fala favorável à proposta, mas, na prática, as resistências explícitas e implícitas eram inúmeras e professores e alunos tentavam convencer a equipe que coordenava o trabalho de que a idéia era interessante, porém, inviável. Apesar disso, o aluno foi mantido no grupo até o final do ano e, gradativamente, conquistou o espaço possível para aquele contexto.

Podemos pensar que os alunos do grupo escolhido viviam uma ilusão grupal de igualdade, que era alimentada pelos professores, pois eram tratados como “os bons”. A entrada de um indivíduo que trazia como diferença significativa a limitação mental parece tê-lo colocado, imediatamente, na condição de “pior”, em relação aos demais. Seguindo este raciocínio, a sua participação efetiva no grupo romperia a suposta igualdade e poderia, talvez, desvelar tanto os desejos de cada um deles em ser melhor do que os demais como o fantasma de entrarem em contato com suas próprias dificuldades, que até aquele momento não haviam encontrado espaço para aparecer. Assim, o mais confortável seria mantê-lo à margem. Isso fica evidenciado pela referência do professor ao aluno Marcos como se ele não pertencesse ao grupo.

Inúmeros motivos implícitos podem ter contribuído para esta exclusão explícita que aconteceu, pois, apesar de estarem os envolvidos aparentemente concordantes com a entrada do novo membro, a sua entrada concreta ativou processos até então desconhecidos. Toda esta vivência pode nos trazer uma série de reflexões acerca do grupo em questão, da instituição e seus agentes e do contexto social em que estamos inseridos. O fragmento apresentado, no entanto, é somente uma pequena amostra do cotidiano escolar e de suas peculiaridades.

É importante não esquecermos que a diversidade existe e está colocada. Somos diferentes, não há como negar. Mas, alguns indivíduos apresentam diferenças mais marcantes, por vezes difíceis de serem enfrentadas e que trazem implicações muito diferentes do que as idiossincrasias pessoais. Como afirma Lígia Amaral (1994), há uma enorme diferença entre ser míope e não enxergar, estar com a perna quebrada e ser deficiente físico. Ou seja, num grupo de pessoas, todas são obviamente diferentes, no entanto, se uma delas tiver uma deficiência, sua condição poderá interferir nos seus direitos e deveres com relação ao grupo. Por exemplo, já ouvi dizerem que os deficientes físicos não deveriam ter vagas reservadas nos estacionamentos, pois isso já seria uma forma de discriminação. No entanto, a existência deste direito diz respeito à especificidade da condição e às necessidades e limitações inerentes a ela. Acredito, assim, que o que constituiria a discriminação seria este indivíduo ter a obrigação e não o direito de ocupar tal vaga.

Sendo tão importante o reconhecimento das diferenças, e, principalmente, das significativas, por que haveria tanta preocupação na divulgação do conceito de que somos todos iguais? Temos percebido que há uma grande tendência em associarmos o conceito de “diferente” ao de “melhor” ou “pior” 2. Vivemos imersos em uma cultura na qual a competitividade é extremamente valorizada. Por exemplo, pense em duas crianças que são portadoras de necessidades educacionais especiais, por apresentarem diferenças intelectuais significativas: uma superdotada e uma deficiente mental. Do ponto de vista teórico, ambas necessitam de recursos educacionais especiais e de um envolvimento diferenciado de todos os envolvidos com o processo. Mas, imagine para qual das famílias seria mais difícil dar a notícia da condição da criança? Qual delas teria mais dificuldade em ser aceita em uma escola? Qual sofreria maiores resistências em sua inserção social? Qual seria vista como pior, menos importante?

O nosso imaginário acaba sendo alimentado pelas histórias que ouvimos, os filmes e novelas que vemos, os livros que lemos. Não raro o portador de deficiência é reportado como extremamente bom ou mau. Basta tomarmos algumas historinhas clássicas e já temos um exemplo. Lembra-se do Capitão Gancho (com perna-de-pau, olho de vidro e cara de mau)? E o “Patinho Feio”, que de rejeitado, virou um lindo cisne no final? Não dava para ele continuar a ser pato e diferente dos irmãos, ser aceito por sua “mãe-pata” com suas limitações e potencialidades? Não, ele era melhor, mais bonito, e encontrou seus “iguais” no final 3. O risco de tendermos para as polarizações em melhor/pior, bom/mau é tão grande que há movimentos que exaltam a diferença/deficiência. Frases como “Viva a diferença!” ou “Ter um filho deficiente é uma bênção para a família!” ou “Só os melhores pais/os escolhidos têm filhos especiais” nada contribuem para o respeito às diferenças, pois pulam de um pólo para o outro, mantendo o mesmo maniqueísmo.

No entanto, cabe ressaltar aqui, que todas estas formas descritas acima acabam sendo recursos utilizados pelos mais diversos agentes sociais ao se referirem à questão da deficiência, para o enfrentamento de algo que não é fácil para nenhum de nós, mas muito presente em todos os espaços: o preconceito, que traz consigo a discriminação e a exclusão. Acredito, portanto, que para alterar este quadro, seja necessário abolirmos slogans do tipo: “somos todos iguais”, “somos todos diferentes”, “ser diferente é bom”, etc. para podermos nos concentrar no respeito às diferenças, e, principalmente, ao impacto delas nos grupos e em cada um dos indivíduos que os constituem.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, L.A. A Diferença Corporal na Literatura: um convite a “segundas leituras”. In: SILVA, S.; VIZIM, M. (ORGS.). Educação Especial: múltiplas leituras e diferentes significados. Campinas: Mercado de Letras, 2001.

AMARAL, L.A. Pensar a Diferença/Deficiência. Brasília: Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - CORDE, 1994.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Solange Aparecida Emilio
E-mail: solange.emilio@bol.com.br

Recebido em 28/01/2003.
1ª Revisão em 05/02/2003.
Aceite Final em 23/02/2003.

 

 

1 Psicóloga e supervisora clínica. Mestre em distúrbios do desenvolvimento pela Universidade Mackenzie - SP. Doutoranda em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP - SP. Psicóloga do Centro de Ensino Infantil e Fundamental São José. Membro e coordenadora da Área de Grupos do NESME. Membro e docente da SPAGESP.
2 Lígia A. Amaral discute e aprofunda, em inúmeros trabalhos seus, esta questão.
3 Para quem se interessar pelo assunto e quiser saber mais sobre a questão das diferenças significativas na literatura brasileira, recomendo a leitura da Tese de doutorado de Lígia Assumpção Amaral: Espelho Convexo - O Corpo Desviante no Imaginário Coletivo pela Voz da Literatura Infanto-Juvenil. São Paulo, 1992. Tese (Doutorado) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.