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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP v.4 n.4 Ribeirão Preto dez. 2003

 

ARTIGOS

 

Acting out e transferência - mancha da candelária via 174

 

Acting out and transference - the stain of candelária via 174

 

Acting out y transferencia - mancha da candelária via 174

 

 

Leci Muniz da Silva 1

Sociedade de Psicoterapia Analítica de Grupo do Estado do Rio de Janeiro - SPAG-E.RIO

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora refere-se a um fato acontecido, que analisa com os olhos da psicanálise e tendo como referencial a obra “Antígona” - de Sófocles.

Durante a exposição são feitas considerações sobre os conceitos de acting out e transferência.

Conclui que, estando no mundo, as novas ações e comportamentos são muito mais resultado do inconsciente coletivo do que do consciente individual.

O tempo, o espaço, a cultura, a língua, os personagens, a situação são outras, mas a tragédia é a mesma.

Palavras-chave: Acting out; Transferência; Grupo; Agrupamento; Inconsciente coletivo.


ABSTRACT

The author refers to a fact that has happened, analyzing it through psychoanalysis and using Sophocles’s “Antígona” as a reference.

Some considerations about the concepts of acting out and transference are made during the presentation.

She concludes that, being in the world, the new actions and behaviors are much more the result of the collective unconscious than of the individual consciousness.

The time, the space, the culture, the language, the characters, the situation are different, but the tragedy is the same.

Keywords: Acting out; Transference; Group; Grouping; Collective unconscious.


RESUMEN

La autora se refiere a un hecho pasado que, analiza con los ojos del psicoanálisis y tiene como referencia la obra de “ANTÍGONA” de Sófocles. Durante la exposición se hacen consideraciones sobre los conceptos de acting out y transferencia. La misma concluye que estando en el mundo las nuevas acciones y comportamientos son mucho más resultado del inconsciente colectivo que del consciente individual.

El tiempo, el espacio, la cultura, el idioma, los personajes, la situación son distintos pero la tragedia es la misma.

Palabras clave: Acting out; Transferencia; Grupo; Agrupamiento; Inconsciente colectivo.


 

 

INTRODUÇÃO

Cumpre este capítulo o desejo de partilhar uma reflexão feita sobre um fato acontecido, analisado com os olhos da psicanálise e tendo como referencial uma obra da Literatura Universal: “Antígona” - de Sófocles.

Pretendo expor que a estrutura psíquica humana ainda é a mesma, independente de tempo, espaço e circunstância. Acredito contudo que é possível mudá-la.

 

JUSTIFICATIVA

Há tempos penso sobre a morte de um amigo de forma trágica. Numa tentativa de assalto, reagiu aos assaltantes e foi por eles, brutalmente assassinado.

Desde então reflito constantemente em qual ou quais motivos o teriam levado a que ele reagisse como fez.

Não estaria este meu amigo movido pelo mesmo mecanismo impulsivo próprio da humanidade e, com isso negando suas convicções e conhecimento?

J. Laplanche e J. B. Pontalis (1968) dizem sobre o Acting out.:

"Ações que apresentam, a maior parte das vezes, um caráter impulsivo, rompendo relativamente com os sistemas de motivação habituais do indivíduo, e que toma muitas vezes uma forma auto ou hetero-agressiva...”.
...tem que ser compreendido na sua conexão com a transferência, e freqüentemente como uma tentativa para a desconhecer radicalmente”.

Reflito que este fato talvez revele que ambas as partes, frente a uma situação imprevista, meu amigo ao próprio assalto; os assaltantes à tentativa de fuga, foram movidos pela mesma realidade humana profunda ou seja, ambos - assassinos e vítima, membros de uma realidade comum.

 

DESENVOLVIMENTO

Para maior compreensão, tomo como exemplo um terrível fato acontecido em 12 de junho de 2000, no Rio de Janeiro 2:

Um rapaz, “Sandro”, entra em um ônibus portando um  velho revólver, calibre 38. Eram 14:30h, e, neste horário, a maior parte dos usuários, estudantes e senhoras, cumpria sua rotina diária. A atitude do rapaz  surpreende a todos. Agressivo e autoritário gera um clima de suspense. Um dos passageiros consegue avisar a um policial, que tenta entrar no ônibus. Surpreendido, “Sandro” atira e, a partir daí, tem início um drama que tentaremos compreender à luz da Psicanálise.

A rua Jardim Botânico, que percorre todo o Bairro de mesmo nome e que serviu de cenário para esta tragédia, sedia uma das maiores redes de televisão do Brasil, além de ser um bairro de classe média alta. Esta rua é de grande circulação, com muitos colégios, restaurantes e grandes empresas, fora a já citada.

O desenrolar da situação é um verdadeiro enigma. Dentro do ônibus, algumas pessoas se destacam na tentativa de comunicar-se com os policiais e com a imprensa, outros confortam e acalmam seus colegas de infortúnio e interagem com “Sandro”. Comportam-se como se estivessem todos unidos por um elo fortemente afetivo. Fora do ônibus um grande público se aglomera. Uma platéia ávida por ver destruído o personagem principal da tragédia. Insuflando policiais, como numa antiga arena, instigando os leões à carnificina.

Um  agrupamento que se propõe ser apenas um grupo de passagem, com um único objetivo; o de chegar cada um ao seu destino, transforma-se em um grupo e, a partir do primeiro disparo, permanece unido durante 6 horas, passando a ter um interesse em comum, não sendo mais um agrupamento, as pessoas tinham uma combinação entre si, com o objetivo da sobrevivência. Torna-se palco de curiosas e dramáticas ações. Ações desconectadas, impensadas, impulsivas e que, fatalmente, terminariam em uma tragédia.

 

O GRUPO

Estudo especial do Sandro.

“Mancha” - menino, que ao nascer foi dado para uma conhecida da mãe biológica. Aos sete anos sua mãe adotiva morre e, desde esta idade, viveu nas ruas.

Sabe-se que a vida mental é influenciada pelas emoções mais primitivas, e que o desconforto e as experiências hostis criam no sujeito uma ansiedade de natureza persecutória. A crueldade, a perversão, a aversão a um convívio social, são características de um indivíduo que viveu esta ansiedade de natureza persecutória e, no auge de sua dor, é capaz de destruir seu próprio organismo.

Tanto a capacidade de amar como o sentimento de perseguição tem raízes profundas. Se as ansiedades persecutórias predominam, os impulsos destrutivos estarão em evidência, fadados a dar origem ao sentimento de hostilidade e retaliação. A agressividade inata, caso comprovada em Sandro, aumenta pelas circunstancias externas desfavoráveis.

Adota a “droga”. A necessidade de aplacar a angústia, a dor e o vazio, levam-no a isto. É de fácil acesso e seus efeitos são imediatos, permitindo-lhe vivenciar os sentimentos de onipotência, ilusão de perfeição e de completude, sensação de que pode tudo, sem barreiras ou limites.

Supõe-se, que ao usar a droga, o sujeito não só esteja tentando ir ao encontro da sensação de plenitude que um dia viveu com a mãe, pois parece não ser este o caso mas, a ilusão de onipotência ao se contrapor à lei. Não há registro de figura masculina na vida de Sandro.

O fracasso do grupo familiar como produtor de subjetividade, como formador do processo de simbolização, deixa o jovem com uma sensação de desamparo e de prostração, impedindo-o de ter acesso aos ingredientes necessários para constituir a sua identidade. Seus ideais simbólicos (ideal de ego) são demais enfraquecidos, e os substitui imediatamente por ideais narcisistas. Na ausência de figuras parentais (ou substitutas) passíveis de internalizações como ideal de ego, o jovem renega e  desafia todas as formas de leis. Busca refúgio em grupos de pessoas semelhantes a ele que idolatram e idealizam a “droga” e a violência. Sem vínculos afetivos conhecidos, Sandro identifica-se com o que um dia introjetou de uma mãe, e de seu universo, transferindo para todos este sentimento, todos representam uma ameaça e um perigo. Só a “droga” aplacará a dor, acolherá fará com que se sinta pleno e completo e o livrará de sua angústia, ainda que transitoriamente; o que lhe importa é sobreviver  aos momentos de desespero e abandono. “Droga  é a minha mina”, disse numa briga para sua namorada, Beth Gorda, assassinada no quintal de sua casa, no dia 26 de setembro de 2000, com dois tiros. Sua avó, com quem Beth morava, só viu vultos. Beth morre 7  anos após ter escapado da chacina da Candelária, e três meses após a morte de Sandro.

“Sandro”, “Sergio”, ”Mancha”, ou  “Mancha da Candelária”, são nomes pelos quais o nosso jovem atendia. “Alex Júnior da Silva”, nome que sua mãe lhe destinou caso tivesse sido registrado. No dia 12 de junho de 2000 morreu, aos 21 anos de idade e, provavelmente, sem se sentir dono de uma identidade. Escapou da chacina da Candelária e de vários outros grupos de extermínio. Sempre calado, não tinha amigos. Quando não vendia balas e refrigerante nas esquinas, praticava furtos e assaltos à mão armada. Sua ficha criminal tem início um ano após o da chacina da Candelária.

 

“Geisa” - 20 anos, nasceu em Iguatu, no Ceará. Quando ela tinha 6 meses, os pais se separaram. Sua mãe  resolve se mudar para Fortaleza com as duas filhas. Viviam das costuras da mãe, habilidade manual que Geisa herdou. Em 1998 sua mãe morre e em meados de 1999 Geisa, acompanhando o marido, muda-se para o Rio de Janeiro. Instalam-se na “Rocinha”, uma grande favela num dos bairros mais nobres do Estado.

Em seu diário muitos sonhos. Cinco nomes próprios correspondendo aos dos filhos que desejaria: Thayse, Chrisley, Kesya, Thallys e Michelly. Tinha também o desenho de uma casa com três quartos, dois jardins de inverno, cinco banheiros, varanda, cozinha, salas de estar e de TV e um escritório. Escreveu em um caderno dia 11 de maio: “Estou indo para o Rio em busca da minha felicidade”. Mantinha correspondência com a irmã mais velha e numa das cartas disse: “O Rio não é tão violento quanto dizem”. Geisa ganhava R$ 500,00 por mês, ensinando artesanato para as crianças da favela. E, ao contrário de seus sonhos, morava numa casinha com apenas um cômodo, de poucos móveis, com marido e o gato Beethoven. Apesar disto escrevia em seu diário: “Moro na Rocinha, mas muito feliz”.

Encantou-se com a favela, ao contrário dos brasileiros que as vêem apenas como cenário e desfile de tragédias dos noticiários. Queria buscar recursos para realizar seus sonhos, aliás ela entrou no ônibus 174, para descontar um cheque de R$ 130,00, dinheiro ganho com a venda de alguns de seus trabalhos.

Quando Geisa saiu de Fortaleza despediu-se dos familiares dizendo: “Vou ficar famosa no Rio e vou aparecer na TV. Penso que aos 20 anos Geisa ainda vivia num estado de encantamento, movida por um ego ideal, bem hollywoodiano: pretendia aparecer na TV; ter filhos cheios de “Ys”, “Ks” e vários “Is”, projetava uma casa com dois jardins de inverno, num Estado de “42 graus”. Geisa só tinha 20 anos e supõe-se que a adolescência, cada vez mais prolongada, se deve em parte à realidade política, econômica e social, que deixa tão distante a realização de pelo menos alguns dos sonhos = desejos projetados pelo próprio indivíduo.

 

“Policial” - aqui não definimos nomes. São aqueles que - identificados com o Pai = Estado - legitimados por uma credencial, representam a ordem e fazem cumprir as leis. Creio no entanto estar nosso superego um pouco adoentado. Estes representantes da “Lei” estão confusos, enfraquecidos e desvalorizados. Confusos pois, como já mencionamos em trabalhos anteriores, o que predomina em nossa sociedade é o Caos. Entendendo por Caos a subjetivação da ordem. E o Caos não é bom nem ruim, revela uma necessidade de mudança. Momento de reflexão e reavaliação, mas como mudar se por medo fechamo-nos em nosso Suposto Saber? Não havendo intercâmbio de idéias, nem o reconhecimento do outro como semelhante e sim um igual, a necessidade de mudança se transforma em ações patológicas. Enfraquecem, pois excluem de sua aprendizagem o conhecimento de si mesmos. Segundo J. Ortega y Gasset (1911), in (Roudinesco,1998) “Cada um de nós é constituído em grande parte pela coletividade em que nasceu e em que vive: é informado por ela”.

Nossa coletividade está cega e surda. Prestigia valores e modelos importados, e pior, nega nossos valores, as raízes de que são formados por nossas lendas, folclore e história. O policial fica à mercê do vento, incapaz, movido por instintos que se confundem com desejos internalizados desde há muito, ora seu “patrão é o Traficante, ora o Estado e em outras, o “Coro”.

 

“O Coro” - aqui nomeamos aos que acompanharam, do lado de fora, a tragédia. Pessoas que foram chegando, e tão perto, que instruíam e incentivavam as figuras centrais. Recordemos “Antígona” de Sófocles. Antígona é filha e irmã de Édipo, depois de sua morte, vive com seus três irmãos em Tebas, cujo rei é Creonte. Creonte luta contra Argos, que deseja invadir Tebas, acreditando em suas riquezas. Etéocles e Polineces, irmãos de Antígona, matam-se, lutando entre si, defendendo opiniões dos líderes distintos. Mais uma desgraça abate-se sobre esta família que traz o sofrimento da indefinição de papéis.

 

DESENVOLVIMENTO DA SITUAÇÃO APRESENTADA

Uma semana antes do trágico episódio, Sandro entrou em contato com a artista plástica, Ivone Bezerra de Mello, pessoa sempre presente em sua vida, pois com ela aprendeu a desenhar e pintar nas ruas da cidade. Tornou-se a grande porta-voz dos meninos de rua e sempre os ajudava. Procurou Ivone para pedir emprego. Sandro sabia que seria difícil, pois estava condenado a cinco anos e meio de prisão por dois crimes: um furto e um assalto à mão armada a um táxi. Na prisão de onde fugiu com outros detentos, foi considerado inexpressivo.

Tudo em sua vida, inclusive ele mesmo, é inexpressivo. A única figura que possivelmente internalizou como um bom objeto, foi Ivone, mesmo assim insuficiente para seus apelos.

Sabemos sobre a transferência, que “é uma experiência do passado que está interferindo na compreensão do presente. Trata-se de uma repetição de protótipos infantis vivida com uma sensação de atualidade acentuada” (Laplanche e Pontalis, 1968).

Ivone poderia ter sido a relação que forneceria elementos de transformação na compreensão dos objetos internalizados, pois acreditamos que, com boas relações, mesmo tardias, e experiências externas, no contexto social, isto pode ocorrer.

“Curiosamente” Geisa, “seu escudo,” pretendia tornar-se uma artista plástica, como Ivone.

O que ocorre no universo social mais amplo, reflete-se na história de nosso protagonista. Nas suas relações predominam os interesses narcísicos e egoístas, não há atenção real às necessidades do outro. Seu revólver calibre 38, com o qual sempre andava, parecia mais um objeto de que necessitava para externar sua agressividade e ainda considerado por ele como meio de defesa contra sentimentos de desamparo e medos muito intensos. Podemos afirmar que ele não introjetou pais suficientemente protetores que pudessem defendê-lo contra a ameaça de ataques internos e externos em qualquer momento da vida.

 

Sandro entra no ônibus, pula a roleta e senta-se próximo a uma janela. Vinte minutos depois, um dos passageiros conseguiu sinalizar para um carro de polícia que passava pela rua. O ônibus, então, foi interceptado por dois policiais. Sandro não foi reconhecido, pelos assaltos cometidos, mas pelo objeto de “defesa” e “agressividade” que carregava. Símbolos conferidos à sua identidade.

Em seu comportamento os aspectos destrutivos predominam. Prevalece a identificação com esse lado, pois a ausência afetiva materna, incapaz de satisfazer suas necessidades, suscitou intensa frustração, reforçando seus aspectos agressivos constitucionais e provocando nele muita raiva; conseqüentemente, dando origem à introjeção de objetos sádicos e cruéis. Podemos intuir que ele não se sentiu suficientemente acolhido pela mãe, para que pudesse suportar o rompimento definitivo da unidade e fusão ideais. Conseqüentemente ele não consegue separar-se completamente desta, e o pai inexistente, enquanto figura de identificação e proteção, são fatores que contribuem para configurar a dificuldade, a distinção entre o que é ele e o que não é ele.

Provavelmente Sandro foi surpreendido com a entrada dos policiais, pois, se intencionava assaltar, ainda não tinha tomado medidas deflagradoras de um assalto. Surpreso, atira em direção aos policiais. Na confusão algumas pessoas descem do ônibus. Sandro fora então “reconhecido” pois via o medo e desespero das pessoas que não conseguiram escapar. Sandro atingira seu ponto mais alto; o de “SER”. Sandro causou revolta, medo e desespero. Finalmente viu-se identificado.

Luana Belmonte, de 23 anos, que procurou sempre manter serenidade faz o seguinte depoimento: “Vi que o bandido era passível de diálogo. Perguntei se ele sabia quem era a maior vítima da situação. Ele disse que não. Eu respondi: você”. Mas Sandro não podia compreender tão requintada reflexão. Seu EGO frágil, impotente e incapaz de lidar com um  SUPEREGO severo, pelo qual se sente muito ameaçado, projeta-o para o mundo externo e é então dominado e invadido pelo ID, com o qual forma uma aliança, aspirando a imaginar-se ilimitado e onipotente. Sua atitude é provocadora e desta  vez não é a indiferença que recebe de volta, sua atitude tem expressão. Tais reflexões podem ser aprofundadas em Freud (1914, 1915, 1923e 1929).

Sandro fica só com mulheres dentro do ônibus. OS homens retidos, aos poucos são por ele libertados. Não acreditamos que seja uma coincidência, são figuras em que conseguiu um esboço de relação; amor e ódio. Não seria por acaso que, para cada uma delas, ele determina uma função. Uma serve de escudo, outra escolhe para representar sua periculosidade quando simula um tiro na cabeça, outra escreve no vidro suas instruções. Pede dinheiro, armas e carro, senão mataria a todas. Mães em potencial, odiadas pois na transferência, todas o abandonam e não o preenchem, obrigando-o a conviver com a falta, o vazio, o nada. Sandro não tinha nada a perder, pois já havia perdido tudo, inclusive a si mesmo. Só o medo e desespero das pessoas o alimentavam, ele mesmo já estava morto há muito tempo. Morte não é quando se pára de respirar, é quando se decreta. Ele já se tinha decretado um “nada”.

Quando ele diz que não tinha nada a perder, ele estava dizendo: eu não sou (lembrando que nós sentimos e pensamos com as palavras, e nos expressamos com nossa corporeidade). Sandro sabia mais que todos, pois não tinha mais medo, este sentimento agora estava com as pessoas. Naquele momento ele tinha a consciência de saber que ele não é. Na lucidez da loucura ou se resolve, ou acaba-se com tudo.

Segundo os monumentos que sustentam a Psicanálise, somos todos detentores de um inconsciente coletivo. Grande parte da humanidade sequer tem acesso ao conhecimento de si mesmo. Em A Morte do Caixeiro Viajante há um diálogo cabal quando mãe e filho lamentando a morte do pai explicitam: “que pena! Morreu sem Ter sabido quem era”, o que possivelmente acontece com grande parte da humanidade.

Estando no mundo, as nossas ações e comportamentos são muito mais resultado do inconsciente coletivo do que do consciente individual.

Visto o que acima expusemos, arriscamo-nos a fazer inferências a respeito do fato que está sendo estudado.

Geisa representa o sonho, a fantasia e o desejo existente em cada um de nós.

Foi escolhida como escudo para sustentar uma situação. Representando o que Sandro escondia no seu mais profundo por não ter possibilidades de enfrentar. Enfrentar o sonho significa a coragem de ter um mínimo contato com o amor, que é a única condição transformadora e a única possibilidade de saúde.

Foi morta pelo policial, pelos espectadores, por nós, pois aquele tiro atingiu-nos a todos. Donde acreditamos, não somos culpados mas, sem dúvida alguma, somos cúmplices de tudo o que é humano.

 

CONCLUSÃO

Ao concluir este artigo reafirmo o que acima foi exposto: estando no mundo, as novas ações e comportamentos são muito mais resultado do inconsciente coletivo do que do consciente individual.

O tempo, o espaço, a cultura, a língua, os personagens, a situação são outras, mas a tragédia é a mesma.

Destacamos da obra Antígona de Sófocles algumas falas dos diálogos, já que ela foi o referencial de escolha para o nosso trabalho, para confirmar o que vimos expondo ao longo deste desabafo, desta reflexão.

Ousaria colocar na fala do povo para Sandro, o mesmo que o Coro bramia em Antígona:

- “Desgraçado de ti que aprendeste tão caro e já tão tarde. Que não ouviste as vozes de conselho e confundiste o teu poder com o teu direito. A todos nos perdeste”.

- “Quantas vezes uma fúria excessiva é apenas a fraqueza apavorada. Mas é tão mortal quanto uma força verdadeira.”

- “É invencível o que não tem nada a perder.”

- Esta última afirmação coroa a evidência dos fatos. Sandro disse que não tinha nada a perder!...

Por certo, parodiando a mesma obra, poderíamos ouvir de Sandro:

- “Não deixe que meu coração fraqueje vendo a destruição que causei por não reconhecer que havia leis antes de mim.”

Do Governador, no seu pronunciamento sobre o fato, a tradução estaria contida nesta outra afirmação:

- “Se celebram vitória prematuras, a culpa não é minha.”

O povo, aqueles todos que não estavam presentes no campo da tragédia por certo no seu “silêncio” estaria dizendo:

- “O povo fala. Por mais que os tiranos apreciem um povo mudo, o povo fala. Aos sussurros, a medo, na semi-escuridão, mas fala.”

Nesta doida reflexão poderíamos nos estender longamente pois, não menor é a tragédia humana no seu cotidiano. Tomando de Guimarães Rosa (1966) a frase por ele dita e repetida inúmeras vezes em sua obra  Grandes Sertão Veredas “viver é muito perigoso; é preciso muita reza pra enfrentar este sertão afora. Ninguém de nós é livre de nada.”

Voltando à Antígona:

- “A vida é curta e um erro traz um erro. Desafiado o destino, depois tudo é destino. Só há felicidade com sabedoria, mas a sabedoria se aprende é no infortúnio. Ao fim da vida os orgulhosos tremem e aprendem também a humildade.”

A nossa reflexão não pretende desfiar amargura mas, fazer um chamamento para a única realidade que torna possível ao homem ser Humano - o AMOR.

É o quanto basta.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Periódicos

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CARNEIRO, M.; FRANÇA, R. A Gota D’Água. Revista Veja. São Paulo: 21 de junho de 2000.

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Endereço para correspondência
Leci Muniz da Silva
E-mail: leci@uol.com.br

Recebido em 10/08/2002.
1ª Revisão em 10/09/2002.
Aceite Final em 10/10/2002.

 

 

1 Psicóloga, Membro Supervisor da SPAG-E.RIO - Sociedade de Psicoterapia Analítica de Grupo do Estado do Rio de Janeiro.
2 Diversos periódicos comentaram os fatos aqui expostos: CARNEIRO, M., Revista Veja - CARNEIRO, M.; FRANÇA, R., Revista Veja - IBRAHIM, E. Revista Consciência - Jornal Extra, PAIVA, A.; GUEIROS, P.M.; FREITAS, R.; WEIS, B.; FURTADO, B. Revista Época, VIEIRA, M.; GIGLIOTTIE, M. BRUM, E. Revista Época. Rio de janeiro: Editora Globo, Agosto 2000.