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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.5 no.5 Ribeirão Preto Dec. 2004

 

ARTIGOS

 

A arte de “fuxicar”

 

The art of “fuxico” making

 

El arte de hacer “fuxico”

 

 

Cecília Konishi 1

Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares - NESME

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A oficina de fuxico fez uma pequena associação entre as ações humanas: fazer e falar. No momento em que as pessoas estavam participando dessa oficina elas podiam elaborar e simbolizar seus pensamentos, seus desejos e alguns conflitos que cada um possuía. Durante o processo de trabalho elas podiam pensar em suas vidas, cada vez mais, enquanto as atividades tornavam-se mais intensas e complexas. Esse foi um espaço de construção de idéias que capturava as partes dos pensamentos e as acoplava, ao mesmo tempo, mantendo a individualidade de cada um.

Palavras-chave: Fuxico; Vínculo; Fazer; Elaborar.


ABSTRACT

The “Fuxico” workshop has done some linking between the human actions of doing and talking. When people were doing this workshop, they could elaborate and symbolize thoughts, desires and some conflicts that each one had. During the process of working, they could think about their lives better and better while the activities became more intensive and complex. It was a place for building ideas which took separated parts of human thoughts and joined them, keeping each one’s individuality, at the same time.

Keywords: “Fuxico” making; Link; To do; To elaborate.


RESUMEN

El taller de “fuxico” proporcionó la asociación del hacer con el del hablar y de esta forma las personas pudieron elaborar y simbolizar pensamientos, deseos y conflictos cada vez más complejos a medida que también aumentaban las dificultades de las actividades. Fue un espacio de construcción en el cual partes aisladas se fueron agrupando formando un todo harmonioso, y mantuvieron la individualidad de cada uno de los participantes.

Palabras clave: “Fuxico”; Vínculo; Hacer; Elaborar.


 

 

A ARTE DE “FUXICAR”

Este trabalho é o resultado de um pensar a partir da própria experiência, tanto como profissional quanto como aluna e membro de grupos sociais (família, trabalho, reflexão, discussão), e foi no NESME que encontrei espaço para exercitar o pensar, o ouvir e o ser ouvida, enquanto terapeuta ocupacional, preocupada com as questões grupais.

Para a terapia ocupacional é importante abrir, manter e ampliar os espaços sadios para um fazer que atenue no indivíduo a marca da doença, deficiência, da inadequação, de tal forma que a família e a sociedade possam vê-lo sob o aspecto de alguém que necessita de compreensão, limites, afeto e não de violência, pois sua condição é o resultado de sua própria história, de suas relações, de sua forma de se posicionar no mundo. Se tratado com violência, sua capacidade de produzir e de se relacionar pode ser destruída e é preciso mudar esses “pré-conceitos”.

A palavra fuxico pode ser entendida como coser ligeiramente grandes pontos como também, fazer intrigas e mexericos. No Brasil sua origem vem da cultura popular nordestina onde as mulheres reuniam-se para emendar pedaços de tecidos e aproveitavam para conversar; daí o duplo sentido da palavra fuxico. Cortar o tecido em círculo e franzi-lo era uma forma diferente de compor cores e estampas variadas formando unidades, que ligadas umas às outras iam desenhando novos sentidos no todo maior. Esse material não é novo, faz parte da cultura popular, assim como as lendas, os mitos e os contos de fadas.

Os grupos e os vínculos remontam à época dos povos primitivos uma vez que homem nunca viveu sozinho, esteve sempre em contato com algo e/ou alguém. Assim como os tecidos passam por transformações, grupos e vínculos modificam-se e são modificados, formando um todo que é maior que a soma de suas partes.

Relato agora uma experiência onde a associação do fazer com o falar foi possível proporcionando grande satisfação aos participantes da oficina de fuxico realizada no Ambulatório de Saúde Mental no município de Ferraz de Vasconcelos.

A oficina foi inicialmente coordenada pela assistente social e pela terapeuta ocupacional, pois o fazer com o outro transcende o fazer de cada um, introduzindo novos desafios como competitividade, cooperação, elaboração de vínculos, metas, etc, após alguns meses a coordenação ficou somente com a terapeuta ocupacional.

O objetivo foi oferecer um lugar onde as pessoas pudessem expressar seus pensamentos, desejos, sentimentos, que falassem de suas relações e que tudo pudesse ser costurado pelas ações. Um espaço onde as relações sociais circulassem estabelecendo vínculos, permitindo a presença das diferenças e permitindo a aprendizagem do conviver com elas e, ao mesmo tempo estimular a realização de atividades com pacientes e familiares, para tanto tínhamos a vontade, a sala, as pessoas e poucos materiais.

As pessoas que demonstraram interesse em participar dessa oficina tinham diagnósticos variados, como deficiência e/ou doença mental. Como trabalhar com um grupo tão heterogêneo (com relação ao diagnóstico) onde estavam presentes as dificuldades de comunicação verbal e as dificuldades motoras?

O grupo fuxicou durante algumas semanas; mãos trêmulas, inseguras, outras mais experientes, foram produzindo dezenas, centenas de peças coloridas, ao mesmo tempo que produziam cooperação, ajuda, revisão, treino, controle, insatisfação e satisfação que iam sendo colocados na sacola (real) e na sacola mental que acolhe a experiência emocional de lidar com as dificuldades ampliando “continência”para frustração e desenvolvendo formas para lidar com elas e transformá-las através do vínculo com o outro, com os sentimentos...

Dar um destino a seus produtos foi o próximo desafio. O grupo optou primeiro pelo boneco(a) e depois pela bolsa. Cada pessoa fez um e levou para casa como lembrança especial, resultado do esforço, da dedicação, resultado ainda de suas necessidades de individualizar-se. Os familiares ajudaram na organização da tarefa e duas mães destacaram-se pela iniciativa sendo aceitas pelas outras; são quatro duplas de mães e filhos sendo que uma das mães também é paciente do ambulatório, duas duplas de irmãs e uma pessoa que vem desacompanhada.

Foram feitos palhaços, bonecos (a), uns coloridos, outro corinthiano um batizado como Marcelinho, outro como Robertinho, a alegria e a satisfação estavam estampadas nos autores das obras. As bolsas foram pintadas, decoradas com fuxico e as alças trabalhadas com lacres das latas de refrigerantes. Neste fazer, suas “paixões” iam sendo colocadas, valores que iam temperando de sentimentos esta ação.

O sentimento de gratidão e satisfação consigo mesmo foi traduzido nas seguintes palavras: "Nossos agradecimentos a vocês, que com a doação dos materiais, nos ajudaram a construir um espaço para as oficinas e assim, deixar nossa criatividade transformar os materiais em obras de arte. Pudemos assim, descobrir que juntos somos capazes". Junto a esse agradecimento seguiu uma boneca para cada pessoa que ajudou a efetivar essa oficina através da doação de matérias &– uma confecção doou retalhos de tecidos e a primeira dama do município doou os kits para os bonecos.

Terminada essas atividades o grupo não quis parar e escolheu fazer uma colcha de casal que seria sorteada entre os participantes. Novamente as linhas e agulhas coseram os tecidos e as línguas teceram comentários mais íntimos. Os vínculos agora, mais confiáveis permitiram isso.

Será que a colcha de casal fora uma escolha tão aleatória assim? Falaram da situação de casal, do relacionamento mãe-filho, esposa-marido, do sentimento de traição, da revolta em serem agredidas e das dificuldades em tomar a decisão sobre manter ou não uma união nessas condições. Como suportar a ferida da separação e as vicissitudes dos vínculos?

Um só fuxico não foi suficiente para estimular a criatividade (identidade individual), mas a união de vários (identidade grupal e social) formou um boneco que embora não tendo vida própria, permitiu trabalhar com os desejos e fantasias de cada um. Maria demonstrou interesse em fazer para vender e Judite pede pra fazer outro, agora para presentear uma tia (outros vínculos vão aparecendo).

À medida que a colcha foi sendo montada começaram a surgir questões sobre a situação familiar como, por exemplo, arrumar a certidão de nascimento do filho (correção da identidade), que foi registrado no nome do ex-marido e não do pai biológico, numa tentativa de organizar sua família. Maria aguarda o término da colcha para fazer outro boneco uma vez que sua filha levou o seu embora.Uma outra situação trazida foi a busca pelo passe livre (interestadual) para visitar a avó que mora no Ceará, parece que aqui a colcha também serviu para fortalecer vínculos e superar as dificuldades. Agora uma situação econômica, pois Rita já está fazendo colcha de retalhos para vender, voltou a criar contribuindo assim para a renda familiar, pois o filho que a ajudava foi assassinado há três anos, atualmente faz e vende flores feitas com garrafa pet. Mas para Cida ainda é difícil falar de seu relacionamento conjugal apesar dos anos de separação, continua muito colada à sua filha impedindo assim seu surgimento enquanto sujeito e o “nascimento” de sua filha.

É evidente que não foi a colcha em si que provocou essas mudanças, mas sim a possibilidade de elaborar e principalmente simbolizar seus sentimentos, já que a colcha exigiu criação conjunta, necessitou de referências, limites, regras, aprender a conviver com o diferente e nem sempre aceita-lo, tolerar, mas não eliminar. Importante citar a libido que está presente em cada fuxico que é feito e emendado a outro, nos vínculos estabelecidos, na troca de olhares quando a comunicação verbal não foi possível, as ansiedades que podiam ser transformadas ali, concretamente.

A arte funcionou como alternativa para elaborar conflitos e abrir caminhos.

“Somente na arte acontece ainda que um homem consumido por desejos efetue algo que se assemelhe à realização desses desejos e que o faça com um sentido lúdico e produza efeitos emocionais &– graças à ilusão artística &– como se fosse algo real” (FREUD, 1913-1914, p.100).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREUD, S. (1913-1914) Totem e Tabu. 2. ed. Standard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1995. v.13, p.100.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Cecília Konishi
E-mail: m.baracat@uol.com.br

 

 

1 Terapeuta Ocupacional em Ferraz de Vasconcelos &– S.P.; aluna do CEPPV - Centro de Educação Permanente em Psicanálise dos Vínculos, do NESME - Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares &– São Paulo.