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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.5 no.5 Ribeirão Preto Dec. 2004

 

ARTIGOS

 

A dependência familiar

 

Family dependence

 

Dependencia familia

 

 

Maria Stela Setti Moreira 1

Núcleo de Atenção Psicossocial para Farmacodependentes de Ribeirão Preto

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Pretende-se discutir a participação dos familiares no programa de tratamento para dependentes químicos, evidenciando que papéis desempenham no grupo familiar e a adesão dos usuários ao tratamento. Discutir sobre a eficácia dos instrumentos grupais (Grupo de Acolhimento Familiar &– GAF, Encontros Multifamiliares e Reuniões Nucleares) para intervenção no grupo familiar, bem como a inclusão da equipe terapêutica e o trabalho em rede das instituições de saúde. A concepção de dependência parece não se restringir às substâncias psicoativas, mas exprime os padrões de relacionamento da família do adicto.

Palavras-chave: Família; Toxicomania; Grupo multifamiliar; Acolhimento.


ABSTRACT

This study aims at discussing the participation of family members in the Treatment Program of Chemical Dependents, evidencing the roles performed within a family group as well the users’ adherence to treatment. The author discussed the efficacy of groups instruments (Family Reception Group, Multifamily Meetings and Nuclear Meetings), the inclusion of a therapeutic team and the organization of health services in a network. The conception of dependency is not restricted to psychoactive substances, but approaches patterns of relationships with the dependent’s family.

Keywords: Family; Toxicomany; Multifamily group; Reception.


RESUMEN

Este estudio busca discutir la participación de los familiares en el programa de tratamiento para dependientes químicos, evidenciando los roles que desempeñan en el grupo familiar y la adhesión de los usuarios al tratamiento. Discutir sobre la eficacia de los instrumentos grupales (Grupo de Acogida Familiar &– GAF, Encuentros Multifamiliares y Reuniones Nucleares) para intervención en el grupo familiar, bien como la inclusión del equipo terapéutico y el trabajo en red de las instituciones de salud. La concepción de dependencia parece no se restringir a las substancias psicoactivas, pero exprime padrones de relación de la familia del dependiente.

Palabras clave: Familia; Toxicomanía; Grupo multifamiliar; Acogida.


 

 

INTRODUÇÃO

A família está sendo focalizada em diversas modalidades de tratamento de saúde. A importância da sua colaboração, para adesão dos usuários aos programas oferecidos, já foi mencionada em inúmeros trabalhos científicos, principalmente quando se refere ao serviço de saúde mental (Sternschuss, 1980; Kalina, 1999; Moreira, 2000).

Desde a implantação do Núcleo de Atenção Psicossocial para Farmacodependentes (NAPS-F), em agosto de 1996, a família é motivada a participar dos Grupos de Acolhimento Familiar (GAFs), que são realizados em três horários na semana (Segunda-feira às 09 horas, Quarta-feira às 19 horas e Sexta-feira às 14 horas), oferecendo oportunidades de participação em quaisquer dos três períodos. A coordenação do GAF é realizada por duplas de profissionais, sendo um deles Assistente Social com formação em Terapia Familiar e de Casal e experiência e/ou formação em Psicoterapia de Grupo, seguindo a teoria de Pichon-Rivière.

O GAF foi discutido, em suas bases teóricas, por Barbosa (2002), que observou tratar-se de grupo terapêutico com enfoque psicodinâmico, requerendo constantes estudos, dada a sua complexidade. Citou que há presença majoritária de mães e esposas e em menor número pais e irmãos.

Outra modalidade de grupo oferecida foram os encontros multifamiliares que, utilizando o referencial de abordagem sistêmica na Terapia Familiar (Laqueur, 1983), refletiram sobre os ciclos de vida e padrões de relacionamento intrafamiliar (Carter & McGoldricH, 1995).

Um terceiro instrumento para intervenção na família é a reunião nuclear, que integra o marido e esposa (sub-sistema conjugal) e filhos que nasceram desse relacionamento (sub-sistema fraternal). O sistema social é organizado mediante a diferenciação de idades e por sua vez de diferenciação de papéis, atribuindo à pessoa de sexo masculino o desempenho do papel instrumental (dedicação à tarefa) e ao adulto do sexo feminino o papel de líder expressivo nas relações familiares (principalmente da mãe com a criança), referindo-se ao calor afetivo e à estabilidade (Zeldytch, apud Berenstein, 1988).

A família se modifica e nem sempre apresenta esse modelo nuclear (pai, mãe e filhos). Observam-se muitas famílias monoparentais, com freqüente ausência da figura do pai.

A discussão sobre a participação dos familiares nas modalidades terapêuticas oferecidas é de grande importância, pois possibilita tentativas de intervenção na família dependente.

Este trabalho tem os seguintes objetivos:

1. Refletir sobre a concepção de dependência que atinge todo o sistema familiar, no qual há usuários de substâncias psicoativas;

2. Discutir sobre instrumentais mais eficazes para inclusão do grupo familiar no tratamento dos dependentes químicos;

3. Questionar sobre a importância da participação da equipe multiprofissional nas intervenções terapêuticas com os familiares;

4. Impulsionar o trabalho em rede de serviços de saúde, para assistência a todo o grupo familiar dependente.

 

DESENVOLVIMENTO

Foi realizado levantamento de dados, por amostragem, sobre os familiares que participaram dos GAFs, no período de junho a dezembro de 2003, perfazendo 72 famílias de usuários, totalizando 409 pessoas, bem como os usuários e familiares que participaram dos 05 encontros multifamiliares realizados naquele ano, totalizando 112 pessoas.

Esses usuários participam do tratamento em tempo integral (8 horas/dia) ou em tempo parcial, ou apenas freqüentam um dos seguintes grupos: acolhimento geral para adultos de ambos os sexos (GAG); acolhimento para adolescentes de ambos sexos (GAA); acolhimento para mulheres adultas (GAM). Foram também incluídos os familiares que vieram aos encontros., mas cujos usuários não freqüentam o NAPS-F.

Houve agrupamento dos familiares conforme sexo do “usuário identificado” e faixa etária  (adulto ou adolescente), mostrando o grau de parentesco ou vínculo com o respectivo usuário.

Os respectivos dependentes químicos da amostra são, em sua maioria, adultos do sexo masculino (67%). Os demais usuários são adultos do sexo feminino (13%), adolescentes do sexo masculino (10%) e em igual proporção os adolescentes do sexo feminino (10%).

Dos familiares participantes, foi constatado que 67% são do sexo feminino (46% mães e 21% esposas) e 33% do sexo masculino.

Os parentes dos adolescentes, de ambos os sexos, que participaram dos GAFs constituem-se de 50% mães, 21% pais e 19% mães e pais juntos.

Foi significativa a participação dos usuários nos 05 Encontros Multifamiliares, sendo que, destes, 31 estão vinculados ao programa, 22 participam de GAG, totalizando 53 sujeitos. Os parentes participantes foram: 13 esposas, 10 mães, 8 sobrinhas, 5 namoradas, 5 filhos, 4 filhas, 3 avós, 3 irmãs, 3 colegas, 2 irmãos, 1 pai, 1 cunhada e 1 neto, totalizando 59 familiares.

Esses Encontros tiveram como eixos temáticos os ciclos de vida: 1º) Família como um todo e relacionamento intra-familiar; 2º) Namoro e Casamento; 3º) Infância; 4º;) Adolescência; 5º) Idade Adulta e Velhice. Os familiares e usuários avaliaram positivamente esses Encontros, solicitando a sua continuidade.

Estes dados confirmam que as mulheres continuam a ser “cuidadoras” dos familiares (filhos, maridos, pais, irmãos). Contudo, buscam ajuda, participando das atividades oferecidas para que suas emoções sejam acolhidas.

Um outro instrumento utilizado na abordagem familiar é a reunião nuclear de uma família. O atendimento dessa família mostra a importância de se incrementar essa modalidade, dentro das possibilidades da instituição de saúde.

A família assistida é composta de: mãe alcoolista com diagnóstico de Transtorno de Humor Bipolar (usuária do NAPS-F), 1 filho (usuário de maconha em abstinência) e 4 filhas, todos adultos, sendo 3 filhas solteiras. Há 20 anos deixou a família (esposo e filhos), passando a residir nas casas onde trabalhava como empregada doméstica e posteriormente na rua. O esposo não compreendeu seu transtorno mental e a substituiu por outra mulher. Posteriormente foi se tornando dependente do álcool. Foi acolhida pelo CETREM (Centro de Triagem ao Imigrante), passando a integrar-se ao tratamento oferecido pelo NAPS-F. Durante episódio maníaco, foi encaminhada à Psiquiatria da Unidade de Emergência do HCFMRP-USP e, em seguida, ao Hospital Santa Tereza. Por apresentar sintomas orgânicos, além da comorbidade acima citada, foi transferida para Unidade Psiquiátrica do HC-Campus. Durante toda essa trajetória teve o acompanhamento da família. Foram realizadas diversas reuniões nucleares e algumas sem a sua presença, devido a necessidade de conscientizar os filhos sobre os problemas de saúde. Na alta da internação, passou a residir com 1 filha casada, contando com o apoio dos demais filhos, que estão em fase de adaptação à nova etapa da família, que é “ter a presença da mãe” (segundo fala do filho). Continua a participar do programa no NAPS-F, com projetos de ressocialização.

Observa-se que, em algumas famílias, há alternância do “dependente identificado”, circulando o comportamento toxicomaníaco entre diversos membros. Ora o pai alcoolista está no auge do descontrole, ora o filho está usando abusivamente a maconha, ora o outro filho necessitou ir para uma clínica de internação para tentar deixar de usar crack. Essas famílias mantêm-se em sistema fechado, que não libera a pessoa para evolução e autonomia, conservando o estado de constância e dependência.

O trabalho com famílias tem como objetivo propiciar aos membros do grupo familiar que busquem mais liberdade para fazer escolhas independentes, desenvolvendo padrões mais proveitosos por si próprios, desenvolvendo capacidade de adquirir mais flexibilidade, permitindo diferenciação entre as pessoas, enfim, provocar mudanças na dinâmica interna da família (BOX et al., 1994).

Segundo STANTON (1985), no domínio da drogadicção tem se compreendido que os problemas provocados pelas drogas se desenvolvem em um contexto familiar e a maioria dos adictos não são indivíduos isolados, que não tenham vínculos primários. “O abuso de drogas parece ser, inicialmente, um fenômeno da adolescência. Vincula-se com o processo normal, ainda que perturbador, do crescimento, a experimentação de novas condutas, a auto-afirmação, o desenvolvimento de estreitas relações (em geral, heterossexuais) com pessoas exteriores à família e o sair do lar ao mundo” (STANTON, 1985, p.52).

Na estrutura familiar do adolescente é comum ocorrer triangulação disfuncional, quando o adolescente tem forte ligação com o progenitor, mais envolvido, indulgente, superprotetor (geralmente do sexo oposto), e o outro, que é mais punitivo, distante e/ou ausente.

Virginia Satir (1988) descreve o casal em que ambos tinham auto-estima reduzida, apresentando dependência com relação ao outro, que estrangula a autonomia e a individualidade. A auto-estima reduzida é derivada das experiências vivenciadas nas fases de crescimento, que não permitiram-na sentir-se como pessoa de determinado sexo com relação a uma pessoa do outro sexo. Essa pessoa não chega a ficar realmente separada dos pais.

(KALINA, 1999, p.175) afirma: “Nem todo aquele que experimenta drogas se torna adicto. Existem bases predisponentes - individuais, familiares e sociais - que condicionam a possibilidade de uma adição”. E, ainda, conclui:

“A família, ou seus equivalentes, é co-geradora do fenômeno aditivo. Onde existem adictos, encontramos famílias nas quais, qualquer que seja a configuração que tenham, estão presentes a droga ou os modelos aditivos de conduta, como técnica de sobrevivência por um ou mais membros deste grupo humano. O modelo aditivo é oferecido, assim, ao ser em desenvolvimento, com ou sem drogas, já que o trabalho, a comida, o jogo, podem ser equivalentes delas, pelas modalidades aditivas que apresentam esses contextos” (p.182-3).

O NAPS-F pode ser compreendido como integrador de diferentes técnicas terapêuticas, trabalhando a dimensão familiar e caminhando para funcionar como uma estrutura multifamiliar. Contudo, os técnicos necessitam de contínuas reflexões sobre a dimensão transferencial das compulsões destrutivas e autodestrutivas dos usuários e seus familiares (BADARACCO, 1994).

Considerando a família dependente análoga a um sistema homeostático (o sintoma/dependência como equilíbrio) e cibernético (controle e comunicação), conclui-se que não é viável ter como foco de atenção somente o indivíduo, que está neste momento fazendo uso abusivo de drogas lícitas e/ou ilícitas. Reconhecendo a circularidade em todo o grupo familiar, que não possui começo nem fim, a equipe não repete a atitude da família ou sociedade que responsabiliza apenas o usuário. A dependência familiar é a expressão de padrões inadequados de interação entre seus integrantes (BATESON, apud CALIL, 1987).

 

CONCLUSÃO

As intervenções no grupo familiar, através de grupos de acolhimento familiar, ou encontros mensais multifamiliares, bem como reuniões nucleares de cada usuário e seu grupo familiar, podem se complementar, frente à dependência familiar. O trabalho em rede, entre as instituições de saúde e de promoção da cidadania, revela o quanto a questão da dependência familiar é complexa e merece melhor atenção, requerendo constante aprimoramento,reflexões e supervisões.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BADARACCO, JEG. Comunidade terapêutica psicanalítica de estrutura multifamiliar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994.        [ Links ]

BERENSTEIN, I. Família e doença mental. São Paulo: Escuta, 1988.        [ Links ]

BARBOSA, R. O grupo de acolhimento familiar. São Paulo: Revista da SPAGESP, N. 03, p. 158-160, 2002.        [ Links ]

BOX, S. et al. (org.) Psicoterapia com famílias: uma abordagem psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994.        [ Links ]

CALIL, VLL. Terapia familiar e de casal: introdução às abordagens sistêmicas e psicanalíticas. São Paulo: Summus, 1987.        [ Links ]

CARTER, B. & MCGOLDRICH, M. As mudanças no ciclo de vida familiar - uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre: Artes Médicas, 2ª edição, 1995.        [ Links ]

KALINA, E. Drogadicção hoje: indivíduo, família e sociedade. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas Sul, 1999.        [ Links ]

LAQUEUR, P. Terapia Multifamiliar: questões e respostas. In: BLOCH, D. Técnicas de psicoterapia familiar. São Paulo: Atheneu Ed. Universidade de São Paulo, 1973.        [ Links ]

MOREIRA, MSS. Terapia do casal e da família do doente mental grave. Anais do VIII Ciclo de Saúde Mental - PGSM FMRP-USP, 2000.        [ Links ]

SATIR, V. Terapia do grupo familiar. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1980.        [ Links ]

STERNSCHUSS, S. A família do toxicômano. In: OLIEVENSTEIN, C. A droga: drogas e toxicômanos. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984.        [ Links ]

STANTON, M. D. La drogadicción y la familia. In: ANDOLFI, M; ZWERLING, I (comp.). Dimensiones de la terapia familiar. España: Paidos, 1985.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maria Stela Setti Moreira
E-mail: sevp@convex.com.br

 

 

1 Assistente social do Núcleo de Atenção Psicossocial para Farmacodependentes de Ribeirão Preto, mestre em Ciências Médicas, área de Saúde Mental pela FMRP-USP, especialista em “Família: dinâmica e processos de mudança” pela PUC-SP, assistente social do HCFMRP-USP, assistente social plantonista e ouvidora da Unidade de Emergência - HCFMRP-USP.