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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.6 no.2 Ribeirão Preto Dec. 2005

 

EDITORIAL

 

Cem anos sem solidão: um século de psicoterapia de grupo (1905-2005)

 

Manoel Antônio dos Santos 1

 

É com muita satisfação que lançamos mais uma edição da Revista da SPAGESP, disponibilizando à comunidade científica e aos profissionais de saúde mental trabalhos originais sobre grupos em diferentes contextos e cenários.

Estamos comemorando 100 anos de psicoterapia de grupo, se considerarmos como marco inaugural da prática grupal o trabalho pioneiro que Joseph H. Pratt (1907) desenvolveu, como clínico geral e “tisiologista”, nos idos de 1905. É evidente que no percurso palmilhado do início do século 20 aos primórdios do século 21 o mundo mudou substancialmente, a sociedade sofreu um processo de transformação vertiginoso e a grupoterapia se disseminou pelos recantos mais recônditos do planeta, consolidando um campo de saber psicológico com vasta aplicação nos mais diversos contextos. É preciso colocar em uma perspectiva histórica essa evolução das teorias e das técnicas que sustentam a praxis grupal, compreendendo o background no qual se desenvolveu a psicoterapia de grupo (CORSINI, 1955; BECHELLI; SANTOS, 2004).

De 1907 a 1950, a psicoterapia de grupo viveu um período de configuração e desenvolvimento. O fato de ter surgido, desenvolvido e sofrido grande expansão nos Estados Unidos da América do Norte não pode ser negligenciado, mas é preciso pontuar que as sementes foram trazidas da Europa. Entre seus pioneiros destacam-se Moreno, que é originário da Romênia; Wender, da Lituânia; Slavson, da Rússia; Lewin, da Alemanha; Schilder e Dreikurs, da Áustria. Quase todos passaram um certo período de suas vidas em Viena, em um momento inaugural em que a capital européia era o epicentro do desenvolvimento da psicoterapia e da psicanálise, capitaneada por um gênio inquieto chamado Sigmund Freud.

De 1951 a 2000 tivemos o período de expansão, consolidação e amadurecimento da psicoterapia de grupo. Após o período de desenvolvimento, passou pela fase de expansão teórica nas décadas de 50 e 60, com as contribuições de diversos autores. A seguir, tivemos a fase de consolidação na década de 70 e de amadurecimento nas décadas de 80 e 90, de acordo com a classificação cronológica proposta por Bechelli e Santos (2004).

Uma evidência sobre a aceitação e o crescimento experimentado nas últimas décadas é o crescimento constante do número de publicações especializadas. No período de 1906-45 foram publicados 228 artigos sobre psicoterapia de grupo. De 1946 a 1955 foram registrados 1412 artigos. E de 1906 a 1980 o total de publicações alcançou 13.304 trabalhos. Só no período de 1977-81 foram publicados artigos em 400 revistas científicas diferentes (BECHELLI; SANTOS, 2004).

O mais interessante é observar que essa modalidade de tratamento prosperou não somente no campo da assistência psiquiátrica, aplicada a pacientes internados ou ambulatoriais, no setor público ou privado, mas também como estratégia de intervenção com pacientes de diversas condições médicas acompanhados em ambulatório e hospital geral, estendendo-se ainda à população em geral. A evolução constante das tecnologias de cuidado da vida psíquica proporcionou a busca de novos modelos de psicoterapia de grupo. Novas idéias, propostas, modificações e adaptações surgiram, muitas delas ocorreram por intuição, enquanto outros foram motivadas pelas necessidades de cada contexto. Em ambas as condições, parte delas é testada em experimentos controlados antes de ser aplicada, enquanto outras propostas &– provavelmente a maior parte delas &– são simplesmente adotadas empiricamente.

Basta lembrar o dado histórico de que a psicoterapia de grupo surgiu intuitivamente e foi adotada empiricamente, tanto por Pratt quanto por Moreno (BECHELLI; SANTOS, 2004), deixando entrever o quanto essa técnica tem de arte, além de ciência. Mais tarde, enriquecida pelos aportes da teoria freudiana, teoria dos campos, psicologia da forma, dinâmica de grupo, entre outras contribuições, foram estabelecidos seus fundamentos. Sua adaptação às contingências do contexto da 2ª Guerra Mundial, quando Bion (1975, original publicado em 1952) se destacou por suas contribuições originais, estimulou, posteriormente, sua utilização na população em geral.

As concepções bionianas acrescentaram uma nova dimensão ao estudo dos fenômenos de grupo. Suas noções sobre grupos pequenos, com propósito terapêutico, bem como sobre o conteúdo e as trocas estabelecidas entre os pacientes &– e entre pacientes e terapeuta &– inspiraram uma nova abordagem da dinâmica intrapsíquica por meio dos movimentos intersubjetivos. O alcance das proposições de Bion é imenso, visto que os processos de grupo descritos são aplicáveis a todas as formas de associação humana.

No bojo dessa evolução histórica da grupalidade insere-se o aparecimento recente da própria Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo, como instituição consagrada a difundir, de maneira ordenada e sistemática, o trabalho de grupos em nosso meio. Um outro marco a ser celebrado, juntamente com o aniversário de 10 anos da SPAGESP, é o lançamento do livro Grupo e configurações vinculares, editado pela editora Artes Médicas em 2003. Essa obra nasceu do espírito empreendedor de Waldemar José Fernandes, Betty Svartman e Beatriz Silvério Fernandes, três membros-fundadores da Sociedade, que compilaram trabalhos escritos por membros do corpo docente da instituição e seu “co-irmão”, o Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares (NESME), reunindo-os em uma saborosa coletânea. É um autêntico manual de psicoterapias de grupo, um dos mais importantes já publicados em nosso país, digno de figurar entre os livros que servem de referência na área, como os que foram escritos ou organizados por Zimerman e Osorio (1997).

Essa efervescência sugere que a grupalidade vive um movimento ascendente em nosso solo e que o mercado tem buscado profissionais qualificados para trabalhar com grupos. Temos sido convocados para nos engajarmos no processo de enfrentar os novos desafios suscitados pela vida contemporânea. Afinal, vivemos atualmente um tempo de transição psicossocial, que tem contribuído para o agravamento do sofrimento no cotidiano. Um tempo de quebra de paradigmas, que nos obriga a mantermos uma reflexão ética permanente sobre os caminhos, destinos e desatinos da humanidade.

Em uma época de intranqüilidade e violência crescente, ainda há muito por ser feito no sentido de contribuirmos para a descoberta ou aperfeiçoamento das formas humanas de lidar com as questões sociais que atravessam a subjetividade no início desse novo milênio. Vivemos uma metamorfose de valores, crenças, atitudes, aspirações, comportamentos situados no âmbito da subjetividade, que desalojam o ser de seu solo familiar e exigem a construção de novas possibilidades de escuta do sofrimento humano. Para tanto precisamos construir ferramentas que nos permitam ter acesso às questões relacionadas à gênese dos conflitos produzidos nos relacionamentos interpessoais que emergem no âmbito da família, do trabalho e de outras instâncias do convívio humano.

Em um universo em contínua expansão, interconexão e globalização, temos assistido à valorização crescente dos grupos como espaços de socialização e integração das experiências humanas. O ser humano precisa de instâncias para partilhar recursos e construir sentidos para suas inquietações. Só assim é possível doar significado ao sofrimento, o que nos permite aproximarmos da dor e humanizá-la, contribuindo para torná-la aceitável dentro de um padrão de dignidade humana. As estratégias utilizadas precisam ser coletivas e devem contribuir para desvelar o que tende a ser mantido silenciado na ruidosa sociedade de consumo: o sofrimento alheio. Assim, é compreensível que a produção de conhecimento nesses tempos velozes em que vivemos reflita as demandas de nosso modo de ser no mundo como seres que interrogam e se deixam permear pelos processos intersubjetivos.

Nesse número da Revista da SPAGESP encontram-se artigos que respondem à necessidade de conceitualização das bases teórico-práticas que sustentam o trabalho com grupos em diferentes contextos.

Abrindo os trabalhos reunidos no presente volume, a psicoterapeuta portuguesa Ana Sofia Nava faz uma análise da noção de compreensão empática como recurso de investigação na grupoanálise, buscando articulá-la com as contribuições dos estudos da neurociência. A autora propõe uma abordagem integradora e extremamente original de um conceito familiar: a compreensão empática.

Em seguida, o artigo do Antonios Terzis aborda a questão dos sonhos e seus mecanismos, comparando-os com os mitos. O autor nos convida para uma fascinante viagem pelo mundo onírico por meio das narrativas mitológicas. E disseca os fenômenos psíquicos que criam idéias e desejos que, posteriormente, são reprimidos para constituírem o material inconsciente a partir do qual são criados os mitos.

Danilo Saretta Veríssimo e Elizabeth Ranier Martins do Valle trazem uma importante contribuição da atenção à saúde em grupos sob a perspectiva fenomenológico-existencial. De uma maneira extremamente cuidadosa descrevem os grupos de sala de espera no contexto de uma revisão crítica das práticas em saúde, assim como das práticas grupalistas. Enfatizam, sobretudo, a questão da adequação ao que é preconizado em termos de intervenções psicológicas grupais no apoio ao paciente somático, portador de doença crônica. Também passa-se em revista a aplicação dos grupos de sala de espera em diversos contextos da área da saúde, do trabalho psicoprofilático em ambulatório de geriatria ao apoio a pacientes e familiares em oncologia. Evidenciando a variedade do trabalho em grupo realizado em nosso contexto, Andréia de Carvalho Anacleto, Maria Imaculada de Carvalho Anacleto, Marta de Paula Pereira e Natália Enge Silva Martins elaboraram um trabalho focalizando o desenvolvimento de grupos no contexto de uma instituição asilar. O artigo permite que se faça uma reflexão sobre as implicações da abordagem grupalista no âmbito das instituições de cuidados à velhice desamparada, visando assegurar a integralidade da atenção e a qualidade da humanização do atendimento. As autoras se propõem a compreender as vinculações que se estabelecem no espaço psíquico da instituição e sua relação com o sofrimento institucional.

Pablo de Carvalho Godoy Castanho e Maria Inês Assumpção Fernandes se dedicam a compreender a relação existente entre a diversidade lingüística e a realidade psíquica, e como ela contribui para o estabelecimento das fronteiras narcísicas dos grupos. O trabalho é instigante ao revelar os investimentos grupais e o narcisismo relacionado à constituição da linguagem e da língua. Ao final, os autores tecem considerações sobre os conceitos de contrato e de pacto narcísico, colocando-os em relação com a questão da língua.

Em seguida, Waldemar José Fernandes discorre sobre seleção, agrupamento e tipos de intervenções em psicanálise vincular. O autor discute a distinção entre diferença e diversidade, mostrando que a diversidade abriga as diferenças, sem excluí-las. Waldemar se vale de sua rica experiência no campo da grupoterapia para nos oferecer um trabalho marcado por uma visão transformadora, lastreada em um movimento reflexivo e crítico na problematização das práticas e dos saberes.

Finalizando, numa perspectiva de memória pessoal e análise crítico-social, Sérgio Kodato e Manoel Antônio dos Santos nos brindam com uma reflexão sobre as vicissitudes e ambigüidades que cercam a valorização social da estratégia grupal nas últimas décadas. Apontam contradições no cenário da prática grupal que precisam ser enfrentadas, articulando-as com as mudanças nos papéis sociais, “a banalização da injustiça social” (DEJOURS, 2000) e as profundas transformações no sistema capitalista de produção que afetam o mundo contemporâneo do trabalho. Esse depoimento, redigido em chave emotiva e confessional, será útil para aqueles que estão realizando os primeiros contatos com o trabalho em saúde e educação, independentemente da categoria profissional.

Por essa rápida visão panorâmica já se pode constatar que os artigos reunidos nesse novo número da Revista da SPAGESP espelham um movimento generalizado de busca de novos paradigmas, bem como a exploração de novas possibilidades dentro das abordagens mais consagradas e tradicionais.

ara Dejours (2000) trabalhar não se reduz a cumprir mecanicamente uma tarefa, como um ritual esvaziado de sentido, mas viver a experiência e enfrentar a resistência do real. Os processos de cristalização que decorrem da estereotipia do pensar nos tornam insensíveis à percepção daquilo que, em nosso cotidiano profissional, nos faz sofrer e aumenta nosso desprazer. Assim, corremos o risco de ficarmos impermeabilizados pelos avatares do dia-a-dia, recaindo na repetição automatizada, não criativa. Entendemos que o grupo pode ser o meio mais visceralmente humano de construir o sentido do trabalho e buscar resgatar seu potencial transformador, sua centelha criativa. Temos a responsabilidade de pensar e ressignificar os conflitos, mas isso se torna uma tarefa menos árdua quando pode ser feita entre humanos, permeado pela afetividade e pela energia que emana da troca de experiências.

Aproveitamos a oportunidade para consignarmos nosso interesse em ampliar os intercâmbios e parcerias com todos aqueles que apostam no potencial transformador da produção e circulação do saber, entendido como via para o aprimoramento permanente do espírito humano.

Finalmente, é preciso deixar consignado nesse espaço de abertura os sinceros agradecimentos a todos aqueles que colaboraram com esse número da Revista e que constituem um autêntico grupo laboral: autores, revisores, tradutores e equipe de redação, em especial aos membros da diretoria da SPAGESP, em nome de sua presidente, Dorothy Bono de Abreu, pelo apoio incondicional e pela confiança depositada em nosso trabalho. O apoio de Beatriz Silvério Fernandes, membro do Conselho Editorial, tem sido imprescindível para o andamento das questões relacionadas à indexação da Revista.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECHELLI, L. P. C.; SANTOS, M. A. Psicoterapia de grupo: como surgiu e evoluiu. Revista Latino-americana de Enfermagem, v. 12, n. 2, março-abril 2004, 242-249.

BION, W. R. Experiências com grupos: fundamentos da psicoterapia de grupo. Trad. Walderedo Ismael de Oliveira. 2 ed. Rio de Janeiro-RJ: Imago; São Paulo-SP: EDUSP, 1975.

CORSINI, R. J. Historical background of group psychotherapy: a critique. Group Psychotherapy, v. 8, 1955, 219-225.

FERNANDES, B. S.; SVARTMAN, B.; FERNANDES, W. J. (Orgs.). Grupo e configurações vinculares. Porto Alegre-RS: ArtMed, 2003.

PRATT, J. H. The class method of treating consumption in homes of the poor. JAMA, v. 49, 1907, p. 755-759. Reimpresso em: MacKenzie, K. R. (Org.). Classics in group psychotherapy. New York, USA: Guilford Press, 1992, p. 25-30.

ZIMERMAN, D. E.; OSORIO, L. C. Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre-RS: ArtMed, 1997.

 

 

1 Editor da Revista da SPAGESP - Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo, e-mail: masantos@ffclrp.usp.br