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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP v.6 n.2 Ribeirão Preto dez. 2005

 

ARTIGOS

 

Alguns aspectos metapsicológicos da diversidade lingüística: grupos internos e contratos narcísicos

 

Some meta-psychological aspects of the linguistic diversity: internal groups and narcissist contracts

 

Algunos aspectos meta-psicológicos de la diversidad lingüística: grupos internos y contractos narcisismos

 

 

Pablo de Carvalho Godoy Castanho 1; Maria Inês Assumpção Fernandes 2

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Procuramos neste artigo contribuir para a compreensão da relação da diversidade lingüística com a realidade psíquica. Para tanto, nos baseamos em uma pesquisa de campo e bibliográfica. O papel que as diferenças de língua têm nos processos de identificação e no estabelecimento das fronteiras dos grupos é analisado. Nós propomos a existência de grupos internos específicos para cada língua, tanto pela compreensão de Pichon-Rivière quanto a de Kaës deste conceito. Narcisismo e feridas narcísicas são pensadas em relação às línguas e às marcas sociais de valoração que elas carregam. Pensando em termos grupais, procuramos compreender a importância destes processos para a vida dos grupos e o papel dos grupos na experiência do narcisismo nestes casos.

Palavras-chave: Grupo; Psicanálise; Língua; Metapsicologia; Multilingüismo.


ABSTRACT

We aim at understanding some aspects of the relationship between language diversity and the psychic reality relying on field work and literature research. The role which language differences have regarding identification processes and group frontiers is analyzed. We then propose the existence of “language-specific” internal groups in both Pichon-Rivière’s and Kaës’ conceptions. Narcissism and attacks to narcissism is thought through the category of language and the social marks which are given to different linguistic varieties. Thinking in terms of groups, we try to understand the importance of theses processes to the life of groups and the role the group has in the experience of narcissism.

Keywords: Group; Psychoanalysis; Language; Meta-psychology; Multilingualism.


RESUMEN

Nosotros procuramos comprender algunos aspectos de la relación entre la diversidad lingüística y la realidad psíquica a través de una pesquisa de campo y de una revisión de la literatura. Él role que las diferencias de lengua tienen por los procesos de identificación y por la formación de las fronteras del grupo son analizadas. Nosotros proponemos la existencia de grupos-internos específicos por cada lengua que se habla tanto en la concepción de Pichon-Rivière como en la de Kaës. Él Narcisismo y suyas heridas son pensadas a través de la categoría de la lengua y de las marcas sociales que la lengua tiene. Utilizando lo referencial de grupo, procuramos comprender la importancia de estos procesos en la vida del grupo y el role que el grupo tiene en estos.

Palabras clave: Grupo; Psicoanálisis; Meta-psicología; Multilingüismo.


 

 

O presente artigo consiste na apresentação de algumas conclusões de nossa Dissertação de Mestrado em Psicologia Social defendida na Universidade de São Paulo (CASTANHO, 2005). Centramo-nos aqui na discussão de alguns aspectos metapsicológicos de grupo apoiados em nossa revisão da literatura e nosso trabalho de campo. Este último foi realizado em uma escola de português para estrangeiros na qual acompanhamos três turmas diferentes de estrangeiros de diversas nacionalidades, com conhecimentos de nosso idioma 3 de nível “intermediário”. Em cada turma realizamos nove horas de observação das aulas e uma hora e meia de grupo operativo, que consistiu no foco de nossas análises.

 

I - DOS PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO AOS GRUPOS INTERNOS

1. Língua e identificação

Em nossos grupos, a semelhança de língua mostrou-se um eixo identificatório significativo, mas não exclusivo. No primeiro grupo operativo, por exemplo, a identificação iniciou-se pela língua, mas passou pela questão fenotípica e biográfica.

Além do mais, mesmo quando a língua era o parâmetro organizador da identificação, encontramos enormes diferenças no tocante à quais propriedades lingüísticas eram funcionais para esta identificação. Assim, conforme o grupo e o momento encontramos diferentes recortes identitários: Norma culta X falar popular (abrangendo o português e o francês); Línguas Latinas X Inglês; Francês X Línguas Asiáticas, entre outros. Assim fica claro que a variedade lingüística é um suporte para os processos identificatórios de um grupo. Porém as características eleitas para a identificação variam conforme uma lógica que acreditamos sobredeterminada: a vida psíquica dos sujeitos e do grupo (em um mesmo grupo, em relação as mesmas línguas, os processos identificatórios mudaram); características de proximidade e distância dos diversos sistemas lingüísticos (grupo de línguas latinas, línguas asiáticas, entre outras) e também representações sócio-culturais sobre as diferenças de língua.

2. Envelope psíquico grupal e língua

De um ponto de vista eminentemente tópico, os processos de identificação podem ser estudados da perspectiva do conceito de “envelope psíquico grupal” (ANZIEU, 1983). Estamos aqui no terreno de uma formação essencial à vida psíquica dos grupos e, portanto, dos sujeitos. O envelope psíquico grupal determina um “dentro” e um “fora” do grupo como condição para a continência dos conteúdos e processos psíquicos. A delimitação de um “fora” é uma necessidade lógica dos grupos. Pensemos no episódio ocorrido em uma das turmas em que a língua de conversação é alterada do inglês para o sueco quando duas amigas descobrem que a observadora (sentada ao lado delas) compreende o inglês. No contexto em que esta mudança ocorreu compreendemos que ela tinha a função de evitar que a observadora compreendesse a conversa. Em Inglês as meninas introduziram o assunto dos relacionamentos amorosos, mas os detalhes ficaram guardados em sua indecifrável língua materna. Acreditamos aí encontrar evidência de que às vezes o fundamental da língua é não comunicar, permitindo a separação e a vivência de um “fora” para que, em relação a esse “fora”, o “dentro” possa constituir-se.

A existência de uma língua comum exerce sem dúvida uma função comunicativa que facilita a formação de envelopes psíquicos grupais por facilitar a interação dentro do grupo. Porém, por meio do estudo da identificação, somos forçados a destacar outros fatores na delimitação do que seria o “dentro” do grupo para além da função meramente comunicativa da língua. Com isto queremos dizer que fatores como o sotaque de um estrangeiro e fatores como as variações diatópicas (geográficas) e diastráticas (sociais) podem constituir-se em apoios para a delimitação desse envelope psíquico grupal sem que, no entanto, reflitam de fato limitações à comunicação observada de um ponto de vista objetivo.

Segundo este nosso ponto de vista, o conceito de “envelope psíquico grupal” implica a identificação de um motor psíquico para o surgimento e expansão de variações lingüísticas. Entretanto, é fundamental frisarmos que estamos apenas estabelecendo a diferença como necessidade lógica de nosso referencial teórico e não a desigualdade. Nossas proposições não têm nenhuma pretensão de explicar outro fenômeno, que se apóia na diferença, mas não se reduz a ela, a saber a atribuição social de valor a estas diferenças, muito mais ligadas a lógica dos processos de poder dentro da sociedade do que as características intrínsecas das línguas. (veja-se KIERNAN, 1993, p. 280; CRYSTAL, 1997, p. 106, BURKE, 1993, p. 10)

Assim, em nossa pesquisa, a língua e suas variedades mostram-se eixos importantes na delimitação de envelopes psíquicos grupais A questão se coloca para uma teoria psicanalítica de grupo entre a existência destes grupos na realidade psíquica intersubjetiva e transpsíquica e seus efeitos ou apoios na realidade intrapsíquica.

3. Comunidades de fala e grupos internos

A semelhança estrutural entre o grupo e a estrutura psíquica é para alguns autores das teorias psicanalíticas grupais uma das pontes lógicas que possibilitam o trânsito entre o “dentro” e o “fora” do sujeito. Se a língua participa da formação de envelopes psíquicos grupais no plano intersubjetivo e transpsíquico, devemos perguntar-nos sobre como isto afeta, se apóia ou serve de apoio a uma organização intrapsíquica.

Mesmo a literatura sobre a clínica psicanalítica individual em língua estrangeira nos dá algumas pistas que nos conduzem à um olhar grupal sobre este assunto. Por exemplo, Movahedi (1996), ao discutir um paciente de Krapf (1955), procura explicar a evitação que um paciente judeu faz da língua alemã referindo-se à noção de uma “audiência interna”, diz o autor:

Eu suspeito, entretanto, que o paciente de Krapf não acharia os objetos internos alemães uma audiência empática para uma apresentação grandiosa de sua identidade [self] judaica. Ele tinha que fazer esta auto apresentação à uma audiência interna não alemã, quer dizer, em uma língua outra que não o alemão. (MOVAHEDI, 1996, p. 846, tradução nossa)

Propomos compreender esta “audiência interna”, por meio do conceito de “grupo interno” de Pichon-Rivière (1985). Pensaríamos então que existiria uma internalização das pessoas e dos vínculos vividos em uma determinada língua.

Por meio do conceito de “grupos internos” de Pichon-Rivière, seríamos levados a propor que, no plano intrapsíquico, existiriam diferentes grupos internos relacionados a cada língua conhecida pelo falante. Seria ainda importante que se pesquisasse a hipótese de isto ocorrer não só com diferentes línguas, mas com diferentes variações de uma mesma língua. Seria então plausível investigar as relações intrapsíquicas entre esses grupos em função das relações que ocorreriam entre as respectivas comunidades de fala nos níveis intersubjetivos e transpsíquicos.

O conceito de “grupos internos” em Kaës (1993) filia-se ao conceito de “grupos psíquicos” do início da obra freudiana. Nele, a metáfora da audiência internalizada parece-nos insuficiente, pois seria necessário caracterizar a consistência intrapsíquica de uma separação interna relacionada à língua não simplesmente como uma internalização do grupo no qual se interage social e fantasisticamente.

Lembramos do caso Anna O., no qual Breuer identifica diferentes estados psíquicos delimitados também pelo uso de línguas diferentes (FREUD; BREUER, 1893/1999). A literatura sobre a clínica analítica em língua estrangeira aponta para condições diferentes do retorno do recalcado em diferentes línguas. Aponta-se também para um potencial menos transformador desse retorno. Neste ponto, Kacelnik (1998) fala-nos de integração psíquica e Ferenczi (1916) nos leva a pensar na diferença da intensidade de afeto como fator determinante. Tesone (1996, 2000) propõe a idéia de que o retorno do recalcado em uma língua estrangeira seria comparável a uma denegação. Fica claro, em todos estes casos, que as condições de acesso à memória em diferentes línguas seriam diferentes, como também seria diferente a quantidade de afeto ligada às representações. Este, de fato, seria um dos maiores marcos estabelecidos na revisão da literatura que realizamos (CASTANHO, 2005).

Em nosso terceiro grupo operativo isto parece ter causado um desconforto no sentido de um descompasso entre uma emoção e sua transmissão. A carga afetiva, neste sentido, poderia ser vivenciada como presa em uma língua sem conseguir passar para a outra. Esta diferença entre afeto e representação pode ser responsável pela relação contra-transferencial de “farsa” vivenciada em nosso segundo grupo operativo. De fato, Marcos (1975, 77) nos adverte de que há um descompasso entre afeto e relato quando uma experiência é relatada em uma língua diferente daquela em que foi vivida. Flegenheimer (1989) sugere claramente que na livre associação os caminhos tomados sejam diferentes em diferentes línguas, esta idéia aparece em outros autores de modo mais ou menos claro (veja-se CASTANHO 2005).

A divisão intrapsíquica em função de línguas diferentes é a conclusão fundamental do precioso e extenso trabalho de Mehler, Argentieri e Canestri (2001), sendo descrita como cisão. Urtubey (1993) e Tesone (1996, 2000) realizam esta discussão tópica do ponto de vista da questão do sistema de representação de palavras. Buxbaum (1949) e Greensom (1950), e de modo mais ou menos explícito, boa parte da literatura de origem norte-americana sobre o asusnto (veja-se CASTANHO, 2005), caminham no sentido de postular duplicações ou diferenciações de instâncias psíquicas como ideal de ego, ego e superego no sujeito poliglota.

A questão da existência de diferentes ideais de ego no sujeito e nos grupos multilíngües merece destaque na medida em que desde Freud (1921/1999) o ideal de ego é uma categoria comum ao sujeito e aos grupos. Parece-nos por isto mesmo uma hipótese perfeitamente plausível. Além do mais, o papel do ideal de ego poderia também ser investigado como fator de motivação do aprendizado de uma língua estrangeira bem como no jogo de identificações e formação de envelopes psíquicos grupais relativos a variações lingüísticas.

Independentemente de concordarmos com a postulação da formação de outro super-ego e outro ego, julgamos haver evidências suficientes para indicar variações nos processos de censura e na percepção da própria identidade conforme a língua utilizada por um sujeito ou grupo multilingüe. Os trabalhos de Marcos (1975) e Marcos, Eisma, Guimon (1977), parece-nos especialmente interessantes ao se referirem a um senso de si (self) línguo-específico enquanto evidências da diferença do papel da censura que abundam em toda a literatura especializada e em nossos grupos (CASTANHO, 2005)

Acreditamos que, no ponto atual de nossas investigações, temos a possibilidade de formular a hipótese de uma tópica intrapsíquica diferenciada no poliglota em função de uma separação de seus sistemas línguísticos. Estabelecendo-a apenas como formulação de hipótese cuja consistência deverá ser averiguada por estudos posteriores, gostaríamos de caracterizar esta tópica intrapsíquica como diferentes grupos internos no sentido de Kaës. A caracterização destes grupos seria feita por contraste, identificando a diferença que o poliglota nos revela entre o funcionamento psíquico ocorrido em uma língua e em outra. Resumiríamos assim esta diferenciação no estágio atual de nossas pesquisas:

• Diferentes condições de retorno do recalcado, ou seja, diferentes condições de acesso à memória.

• Diferentes caminhos associativos.

• Do ponto de vista econômico, diferentes cargas de afeto ligadas às representações de termos que seriam traduzidos uns pelos outros em diferentes línguas.

• Diferentes sentidos de si (self)

• Diferenças em relação à atuação da censura

• Diferenças em relação ao ideal de ego.

Esta hipótese multiplica seu valor quando somos confrontados a pensar as variações existentes no interior de uma mesma língua. Poderíamos falar de diferentes grupos internos nestes casos também? A pergunta permanece em aberto para ser investigada por estudos posteriores.

Se nos apoiamos na idéia de envelope psíquico grupal para nos representarmos um conjunto intrapsíquico que possuiria uma membrana constitutiva de um “dentro” e um “fora” deste sistema, não podemos abster-nos de tecer alguns comentários sobre as pontes e passagens entre tais sistemas. A possibilidade da tradução surge como primeira evidência de que algum tipo de passagem é possível, mas a literatura psicanalítica chama nossa atenção para outros fatores. Seja em Freud, seja nos autores que trabalharam mais especificamente com a questão do poliglotismo, encontramos exemplos de sintomas, sonhos e atos falhos cuja interpretação se faz através das línguas. É o que ocorre, por exemplo, no caso descrito por Freud (1927/1999) em fetichismo no qual um homem apaixonava-se por mulheres com um brilho no nariz. Freud interpreta esse sintoma referindo-se à semelhança do termo alemão para “brilho” (Glanz) com o termo inglês “glance”, que podemos traduzir por “espiadela”, descrição de uma brincadeira que o paciente realizava com sua mãe, quando criança.

 

II - SUA MAJESTADE FALANTE: INVESTIMENTOS GRUPAIS E NARCISISMO RELACIONADOS À LÍNGUA

1. Reflexos da língua: A língua como espelho

No segundo grupo operativo identificamos um processo psíquico no qual a língua atuaria como um espelho. Este caminho foi possível a partir da própria disponibilização do significante “reflexo” no discurso do grupo ao se referir ao uso da língua materna. Neste grupo, postulamos que o retorno constante e fora de contexto à língua francesa ocorria quando o narcisismo das pequenas diferenças era atacado e como uma tentativa de repará-lo. No entanto, neste grupo, o retorno à língua materna não devolveria (conforme nossa interpretação) a restituição de uma imagem narcícisa ideal como se procuraria. Muito pelo contrário, acreditamos que este retorno evocaria a imagem da fragmentação e das feridas narcísicas ligadas as divisões da própria língua francesa. Interpretação ancorada nas falas dos integrantes do grupo sobre a inferioridade de seu modo de falar e o desejo de aprender no Brasil a língua “do povo”.

Este grupo nos faz refletir sobre a questão das diferenças em uma mesma língua, diferenças que são culturalmente interpretadas no interior de um sistema que lhes confere marcas distintivas de valor. Assim, certas variantes receberiam marcas que seriam vividas como narcisicamente positivas e outras negativas; ou, diríamos, como feridas narcísicas. Achamos que a sociolingüística seria aqui valiosa no estudo da ação dessas marcas. Neste grupo, pudemos incluir em nossa interpretação que a relação com o português seria atravessada pela fantasia de superar tais feridas narcísicas.

A problemática do reflexo narcísico em função da língua incluiria, ao nosso ver, o interlocutor que, através de seu comportamento, espelharia para o emissor algo a respeito do modo como aquela variedade lingüística está marcada em sua cultura. Assim, na experiência de aprendizado de uma língua estrangeira, parece que o espelhamento poderia ser sensivelmente alterado, sobretudo no que diz respeito à percepção e espelhamento das variações geográficas e sociais do uso da língua.

Por outro lado, a dificuldade de falar que se enfrenta na língua que se aprende despertou, em nosso primeiro grupo operativo, entre outras, a representação de ser visto como “burro” e de passar vergonha. Estes elementos revelariam um importante jogo narcísico no uso de uma língua. No aprendizado de um idioma estrangeiro, parece-nos que poderiam cruzar-se fantasias de resolução de feridas narcísicas e o temor de que as mesmas se reforcem.

2. Algumas reflexões sobre algumas relações entre os conceitos de contrato e pacto narcísico e a questão da língua

A questão do contrato narcísico implica uma compreensão da função que o narcisismo exerce no grupo. Vejamos que, para o grupo, o narcisismo do qual um sujeito é investido importa para a transmissão da vida psíquica que permitiria a manutenção da existência e mesmo ampliação do grupo. Chamamos a atenção para a colocação de Stengel (1939) de que todos teriam a fantasia de que sua língua é universal ou de que seria possível ensiná-la a todos. Teríamos ai ingredientes que explicariam a condição de possibilidade de um investimento narcísico feito no sujeito que estuda uma língua por membros da comunidade falante da mesma.

Por outro lado, Kaës (1998) e Urtubey (1998) referem-se à exaltação narcísica envolvida no falar e compreender outra língua. Pela perspectiva do contrato narcísico, pensaríamos que este prazer diz respeito a um investimento que nos foi feito por um grupo. Na perspectiva do contrato e pacto narcísico, a glória narcísica implica sempre um assujeitamento ao Outro. Parece-nos que o desejo de falar a língua como o outro, sem sotaques, poderia ser pensado em relação ao investimento narcísico que se suporia receber nessas condições.

O investimento narcísico poderia então ser elemento importante da motivação necessária à aquisição de uma língua. Ao falarmos “investimento”, falamos “economia” e, por meio do conceito de “contrato e pacto narcísicos”, pensamos na motivação necessária ao aprendizado do idioma como uma função intersubjetiva e talvez transpsíquicas em relação aos deslocamentos de investimentos que operam.

Há certamente muitos aspectos que ainda devem ser estudados. Chama a atenção, por exemplo, o modo como a presença de um sotaque pode ser usada para menosprezar e ridicularizar o estrangeiro. Fatores políticos e econômicos devem certamente atuar nesta dinâmica. Outro ponto relevante diria respeito ao investimento narcísico que a comunidade de origem pode fazer em um de seus elementos para que aprenda outra língua.

 

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Endereço para correspondência
Pablo de Carvalho Godoy Castanho
E-mail: pablocgc@terra.com.br

Maria Inês Assumpção Fernandes
E-mail: marines@usp.br

Recebido em 13/10/05.
1ª Revisão em 19/11/05.
Aceite Final em 28/11/05.

 

 

1 Psicólogo, mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo &– IPUSP. Membro do Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO) do IPUSP.
2 Psicóloga, professora associada do Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo &– IPUSP. Coordenadora do Laboratório de Estudos em Psicanálise e Psicologia Social (LAPSO) do IPUSP.
3 Duas turmas estavam em um nível denominado pela escola “intermediário I”, o que implicava que todos os alunos teriam cumprido 40 horas aulas de curso previamente na escola ou equivalente. A terceira turma estava em um nível denominado “intermediário II”, o que implicaria 80 horas de estudo prévio na escola ou equivalente.