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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP v.7 n.1 Ribeirão Preto jun. 2006

 

ARTIGOS

 

A secreta simetria: grupo e corpo na compreensão psicanalítica

 

The secret symmetry: group and body in the psychoanalytical view

 

La secreta simetria: grupo y cuerpo en la comprensión psicoanalítica

 

 

Lazslo Antonio Ávila1

Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto - FAMERP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho visa investigar algumas das conjunções que enlaçam as concepções teóricas da psicossomática psicanalítica e da grupoterapia psicanalítica. Partimos do interrogante de porquê alguns dos principais teóricos que pensaram o grupo a partir do referencial psicanalítico também se interessaram pelas questões da psicossomática, como se constata especialmente em Bion e René Kaës. Grupo e corpo apresentam aproximações instigantes, que tanto articulam quanto problematizam aspectos muito importantes da Psicanálise, como já se poderia antecipar em Freud. Sua obra apresenta questões que aproximam o corpo, enquanto metáfora e representação direta, do grupo. Procuraremos verificar como, após Freud, os teóricos grupo-analistas e os autores da Psicossomática assentaram bases conceituais que nos permitem delinear algumas hipóteses sobre esta secreta simetria entre as leituras psicanalíticas do grupo e do corpo. Como conclusão defendemos que o grupo-analítico é um excelente instrumento para a investigação e o tratamento de sintomas psicossomáticos.

Palavras-chave: Grupo; Corpo; Psicanálise; Grupo-análise; Psicossomática.


ABSTRACT

This work aims at investigating some of the conjunctions that link the theoretical concepts of psychoanalytical psychosomatics and group therapy. The initial question was why some of the main theoreticians that discussed the group from the psychoanalytical reference were also interested in psychosomatic matters, as can be seen with Bion and René Kaës. Group and body, as concepts, show fascinating approximation, which both articulate and highlight very important problems in Psychoanalysis, that were anticipated in Freud’s work. He addresses questions that bring the body and the group together both as a metaphor and direct representation. We will try to demonstrate how, after Freud, the group-analytical and psychosomatic theoreticians established conceptual foundations that allow us to draw some hypotheses on this secret symmetry in the psychoanalytical comprehension of the group and the body. To conclude we strongly believe that group-analysis is an excellent tool for the investigation and treatment of psychosomatic symptoms.

Keywords: Group; Body; Psychoanalysis; Group-analysis; Psychosomatics.


RESUMEN

Ese trabajo visa investigar algunas de las conjunciones que enlazan las concepciones teóricas de la psicosomática psicoanalítica y de la grupoterapia psicoanalítica. Partimos del interrogante de por que algunos de los principales teóricos que han pensado el grupo desde el referencial psicoanalítico también se han interesado por las cuestiones de la psicosomática, como se ve especialmente en Bion y René Kaës. Grupo y cuerpo presentan aproximaciones provocativas, que tanto articulan cuanto problematizan aspectos muy importantes del Psicoanálisis, como ya se pudiera anticipar en Freud. Su obra presenta cuestiones que aproximan al cuerpo, como metáfora y representación directa, del grupo. Vamos a buscar constatar como, después de Freud, los teóricos grupo-analistas y los autores de la Psicosomática asentaran las bases conceptuales que nos permiten delinear algunas hipótesis sobre esa secreta simetría entre las lecturas psicoanalíticas del grupo y del cuerpo. Como conclusión defendemos que el grupo-analítico es un excelente instrumento para la investigación y el tratamiento de los síntomas psicosomáticos.

Palabras clave: Grupo; Cuerpo; Psicoanálisis; Grupo-análisis; Psicosomática.


 

 

Em Freud já encontramos diversos indícios que aproximam as representações do Corpo e do Grupo, especialmente nos dois grandes textos por ele consagrados para o estudo dos fenômenos transitivos do psiquismo, quando em associação com muitos outros psiquismos. Referimo-nos às obras de 1912 e 1921, respectivamente Totem e Tabu e Psicologia de Grupo e a Análise do Ego. Já salientamos a importância de examinar as relações entre estes dois textos magnos, no que eles compõem uma perspectiva psicanalítica sobre os grupos (ÁVILA, 2000; PAGÉS; ÁVILA, 2003). Aqui nos interessa apontar especificamente as relações de conteúdo que Freud estabeleceu entre estas duas representações: a que remete à dimensão somática, e a que se dirige para os processos grupais.

Em Totem e Tabu (FREUD, 1912) encontramos essa bela passagem:

Nas sociedades mais primitivas, só existe um vinculo que liga sem condições e sem exceções: é a comunidade de clan (Kinship). Os membros dessa comunidade são solidários uns com os outros: um Kin é um grupo de pessoas cuja vida forma uma unidade física de tal maneira que se pode considerá-las cada uma delas, como um fragmento de uma vida em comum. Quando um membro do Kin é morto, não se diz ‘o sangue de tal ou qual foi derramado’, mas se diz ‘nosso sangue foi derramado’. A frase hebraica pela qual é reconhecido o parentesco tribal diz ‘tu és o osso de meus ossos, a carne de minha carne’. Kinship significa, pois: fazer parte de uma substancia comum. (FREUD, 1912, apud KAËS, 1997, pp. 202-203)

Por outro lado, Freud salientou o quanto de representações mentais e corporais permanecem presentes no homem contemporâneo, o qual conserva muitos elementos do pensar primitivo de seus mais remotos ancestrais, através de seus mitos, rituais e representações oníricas. No inconsciente permanece vivo e ativo o mesmo ser humano primitivo, recriando em sua ontogênese os processos de sua filogênese. Assim, quando descreve os acontecimentos posteriores ao assassinato do pai tirânico pela horda dos irmãos, Freud constata como o ritual canibalístico então exercido teve a finalidade primordial de assegurar uma mesma “incorporação” (in-corpo-ação) por parte dos vários membros da fraternidade. Ao comer o corpo do pai, em conjunto, os indivíduos se irmanam, se igualam e se comprometem mutuamente com um projeto associativo. A primeira sociedade humana nasce destes atos conjuntos: a rebelião seguida do assassinato e a expiação da mesma culpa. O corpo (e suas funções também, principalmente o comer) teve aí um papel fundamental.

Na Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1921) encontramos muitos outros elementos para essa mesma aproximação entre grupo e corpo. Ao descrever os mecanismos de agregação e desagregação da massa, baseando-se inicialmente em G. LeBon, Freud apontou como o desencadeamento do pânico numa multidão refletia o efeito de uma ruptura dos vínculos de coesão que mantinham aquele agrupamento, e para reforçar com uma metáfora essa descrição, mencionou o famoso exercito assírio, que embora muito poderoso foi facilmente derrotado por um exército numericamente inferior mediante o simples estratagema de fazer circular o boato de que o general, comandante das tropas assírias, teria sido morto, degolado. Ao perder sua “cabeça”, o exercito se esfacelou, como um corpo sem comando unificador.

Outra famosa comparação freudiana, no mesmo texto, fala de Cristo como a “cabeça” da Igreja. Os fiéis, ao tomarem conjuntamente ao Cristo como seu guia e pai, tornam-se todos irmãos, todos “membros” de um único corpo, a Igreja. O próprio Jesus utilizou parábolas que davam a exata dimensão do povo cristão fazendo parte de um único corpo, como na parábola da videira e seus ramos. Nenhum ramo pode pretender viver por si mesmo, autonomamente, todos os ramos tem seu tronco comum no Pai.

Ao teorizar os mecanismos da formação das massas, Freud propõe o seu importante modelo de projeção coletiva da instancia do Ideal de Ego num líder ou idéia dirigente, o que faz com que os diversos indivíduos que compõem a massa estabeleçam entre si elos de identificação. O líder assume a função de continente das projeções grupais e os membros do grupo compartilham da mesma instância projetada. É isso que forma o “corpo” do grupo. Freud ainda nos recorda da expressão “espirit-de-corps”, de uso comum, que estabelece a imagem metafórica de um grupo muito integrado.

 

R. KAËS

René Kaës, talvez o mais importante teórico da Grupalidade ainda vivo, recorre freqüentemente a Freud, para sustentar seu importante projeto de proposição de um “aparelho psíquico grupal”.

Desde suas primeiras formulações, na década de 70, Kaës já se comprometia com pensar o Grupo a partir de uma rigorosa sustentação nos conceitos da Psicanálise. Embora egresso do Psicodrama, Kaës argumentou que é a partir da herança freudiana que se pode configurar uma metapsicologia dos conjuntos humanos. Não pretendemos aqui apresentar um resumo de toda sua significativa contribuição teórica e metodológica, mas apenas ressaltar quais os pontos de contato que, nas formulações kaësianas, nós podemos descobrir entre o corpo e o grupo.

Podemos iniciar com uma frase que bem poderia figurar como epígrafe para este trabalho. Diz Kaës: “De certa maneira, não temos a inteira escolha de ter ou não um corpo: é assim que viemos ao mundo, pelo corpo e pelo grupo, e o mundo é corpo e grupo.” (KAËS, 1997, p. 275)

O que essa frase denota é que o ser humano nasce sob uma dupla contingência, por um lado ele deve se apoiar na biologia de seu corpo, que é o sustentáculo de sua identidade, e suporte para o início da formação de seu psiquismo. Por outro lado, é impossível nascer como um ser humano fora do contexto de humanização representado por outros seres humanos, em geral a família. Nascemos obrigatoriamente com um corpo e como membros da grande família humana. É no contexto da intersubjetividade que emergimos como seres humanos individuais.

Kaës dará grande peso a este inicio da formação de um ser humano, como duplamente determinado pelas exigências de seu corpo e pelas demandas da intersubjetividade, principalmente através do encontro primordial mãe-bebê. A mãe é o intermediário necessário para as construções psíquicas iniciais do bebê, e numa trama complexa, empresta o seu psiquismo para o bebê elaborar suas primeiras representações. A imagem corporal do bebê forma-se a partir destas experiências primordiais. Quando o sujeito, posteriormente, vem a vivenciar experiências grupais em que sua identidade é posta em questão, vai se encontrar com estes mesmos determinantes primitivos que integraram desde precocemente seu psiquismo. A abordagem kaësiana vai, assim, aproximar o grupo, o aparelho psíquico e o corpo:

A etapa de auto-erotismo &– que coincide com o surgimento das fantasiais originais &– é seguida pela do espelho, em que o corpo é percebido como totalidade. O período inicial do vinculo grupal é vivenciado regressivamente pelo sujeito como uma volta ao período pré-especular. A imagem do corpo vivenciado que deve se apoiar no espelho apresentado pela mãe não está ainda constituída. Ao longo desse novo enfrentamento do sujeito com um espelho que não reflete sua imagem, surge a ameaça de ser engolido pelo que subitamente se transformou num abismo, a ameaça da perda dos limites. Na medida em que o grupo se organizou pela projeção no aparelho grupal da imagem do corpo de seus participantes, o aparelho psíquico grupal devolve a estes um corpo formado pelo conjunto de suas projeções. (KAËS, 1997, pp. 203-204)

A experiência grupal comporta muitas comparações. O grupo pode ser vivenciado por seus participantes como se ele fosse um único organismo, uma espécie de Hidra de Lerna, onde as muitas cabeças são apenas projeções de um único corpo gigantesco, em geral oculto. Mas o grupo também pode ser visto como uma casa, uma fábrica, uma máquina, e assim por diante.

Kaës, juntamente com Didier Anzieu, apontou que algumas das representações mais freqüentes que os indivíduos do grupo apresentam são aquelas que se estruturam em torno de representações parciais do corpo, ou seja, aquelas que nascem das fantasias articuladas pelas pulsões parciais: o grupo pode ser um seio quando alimenta; pode ser uma boca, quando voraz, devora os conteúdos dos participantes; pode ser um pênis / falo, portador da potencia e da dominação; pode ser uma barriga que tudo digere; pode ser um útero reconfortante e/ou mortal, pode ser um ânus expulsivo; pode ser um corpo unificado e protetor, ou pelo contrario um angustiante corpo despedaçado. Kaës propõe a interessante idéia de que o grupo é construído como uma prótese e uma extensão do corpo do sujeito, que lhe permite, através da fantasia de um corpo ampliado (“grupo-corpo”) escapar às angustias da finitude, da limitação e da morte. Diz Kaës:

O aparelho psíquico grupal tem apenas um ‘corpo’ fantasmado, sendo uma das funções desse aparelho exatamente formar um corpo de próteses, um simulacro: uma unidade imaginária cujos elementos são indivisos, como os membros do corpo, os dedos da mão, os constituintes do átomo ou da célula. (KAËS, 1997, p. 204).

Também quando está discutindo a questão técnica do manejo dos grupos, Kaës constata que o corpo é uma estrutura fundamental de organização do processo do grupo. Assim, ele afirma: “o grupo exige a regressão do tempo da palavra ao espaço do olhar e do corpo” (Kaës, 1997, p. 49). Na psicoterapia de grupo o corpo assume uma presença muito mais marcante e se impõe como um foco necessário de análise e intervenção: os indivíduos do grupo interagem, trocam olhares, mudam de lugar, deslocam-se no espaço, expressam-se gestualmente, e estabelecem laços transferenciais múltiplos e mútuos, onde o corpo desempenha papel muito ativo. Na opinião de Kaës, estar em grupo conduz à prevalência da dimensão visual e ao apelo às representações dramatizadas pela atuação do corpo, das interações corporais e da motricidade, que às vezes extrapolam o contexto da sessão.

Um último ponto que queremos destacar refere-se à importância que Kaës atribui aos fenômenos psicossomáticos que emergem freqüentemente nos processos grupais. Para este autor, no que ele coincide com toda a concepção mais moderna da psicossomática de inspiração psicanalítica, “o corpo é o ultimo recurso para significar o sofrimento psíquico” (KAËS, 1997, p. 260). De fato, o sintoma psicossomático nasce essencialmente de uma falha do processo representacional (McDOUGALL, 1991; ÁVILA, 2002, 2004), quando uma determinada vivência do sujeito não consegue aceder às vias psíquicas mais elaboradas e vem a se descarregar no corpo, como um processo que se apresenta ao invés de se representar. Carente de simbolização, às vezes o corpo é convocada a “falar” e a expressar o sofrimento subjetivo que o sujeito sofre de uma forma “muda”.

Para Kaës, o grupo pode dotar a cada um dos sujeitos participantes de sua estrutura e dinâmica recursos protéticos que faltam a cada sujeito particular. Assim, através de ‘livre-associações” grupais, às vezes o sujeito encontra a palavra que lhe faltava para poder significar suas vivencias emocionais. Nesse sentido o grupo passa a ser a “mente” para o sujeito, além de seu “corpo”, ampliado e projetado.

Kaës considera que um dos desenvolvimentos futuros da abordagem grupal e, como tal, importante contribuição para a psicanálise como um todo é o estudo da “articulação das perturbações psicossomáticas em suas relações com a intersubjetividade do grupo. A produção de sintomas psicossomáticos é concomitante às perturbações da identificação com os objetos do grupo, ou do apoio analítico no grupo e nos pensamentos do grupo” (KAËS, 1997, p. 314). Dessa maneira torna visível a inter-relação dessas conceituações.

Passemos agora ao outro autor indispensável quando se trata de teorizar sobre os grupos.

 

W. R. BION

Como é notório, Bion é um dos pais da concepção psicanalítica dos grupos. Porém o que não vem sendo tão explorado pelos comentadores da obra bioniana, é que ele articulou minuciosa e profundamente a sua representação de aparelho psíquico com aspectos da grupalidade e da corporalidade. Para Bion, o grupo e o corpo se encontram e se presentificam na experiência emocional, em particular nos “supostos básicos”.

É preciso revisitar as Experiências com grupos e atentar para o modo como Bion concebeu o sistema protomental. Acompanharemos algumas de suas proposições, a começar por aquela que prenuncia todo o desenvolvimento das interações entre as emoções nos indivíduos e nos grupos: “Existe uma matriz de pensamento que reside dentro dos confins do grupo básico, mas não dentro dos confins do indivíduo” (BION, 1970, p. 81).

Observe-se como Bion já transcende aqui os limites do corpo individual, pois para ele determinados processos são experimentados pelo individuo, mas não nascem dele mesmo. O individuo é portador dessas experiências, e um colaborador “anônimo” das vivencias e construções grupais. O grupo é o contexto e o instrumento para se investigar essas situações. Para Bion existem estados emocionais anteriores às suposições básicas, que constituem fenômenos protomentais. Em uma passagem célebre, ele vai demonstrar que nesse nível de funcionamento ocorrerá uma indiscriminação entre os planos somático e psíquico:

Visualizo o sistema protomental como um sistema em que o físico e o psicológico ou mental são indiferenciados. Trata-se de uma matriz donde originam-se os fenômenos que a princípio parecem &– num nível psicológico e a luz da investigação psicológica &– serem sentimentos distintos, apenas frouxamente associados uns com os outros. É desta matriz que as emoções próprias à suposição básica fluem para reforçar, infiltrar e, ocasionalmente, dominar a vida mental do grupo. Uma vez que se trata de um nível em que o físico e o mental são indiferenciados, é razoável que, quando a aflição originária dessa fonte se manifesta, ela possa manifestar-se tanto sob formas físicas quanto sob formas psicológicas. (BION, 1970, p. 91)

Um tal modelo é extremamente pertinente para pensar as manifestações psicossomáticas. Com Bion podemos endereçar inúmeras manifestações aparentemente apenas físicas para o domínio das emoções protomentais, que aspiram a vir a ser pensadas. Como já apontamos a propósito de Kaës, esta é uma perspectiva totalmente coincidente com as leituras contemporâneas sobre a gênese dos sintomas psicossomáticos.

Em outro trabalho, Bion exemplifica o funcionamento psicossomático que emerge como conseqüência da indiferenciação fisico-mental arcaica: “Não tenho a menor dúvida de que as crianças, desde a tenra idade, se sentem ansiosas, mas não dispõem de linguagem pela qual expressá-la e não consideram que se sentirem ansiosas seja algo fora do comum. Se isso as incomoda, terão de dizer algo como ‘sinto uma dor de estômago’” (BION, 1973, p. 110). Pessoalmente vivi uma situação semelhante: minha filha machucou seu dedão do pé direito, e a ferida não evoluía bem. Logo estava bem purulenta, apesar de todo tratamento tópico aplicado. Logo percebemos que a menina, então com quatro anos, vivia batendo nas calçadas sempre aquele mesmo artelho já machucado. Uma hora, cansado daquilo, eu lhe disse: “Ana, você não percebe que você está toda hora batendo sempre o mesmo dedo?”. Ela prontamente respondeu: “Toda hora não, só quando eu estou triste.” Não resta dúvida de que ela tinha, ao menos na época, uma total compreensão psicossomática de seu estado emocional-corporal.

Bion demonstra ter consciência de que seus conceitos implicam em uma teoria do corpo-mente como unidade psicossomática:

Até agora, estive argumentando que o conceito de um sistema protomental, juntamente com as teorias das suposições básicas, poderia ser utilizado para fornecer uma nova visão da doença física e, particularmente, daquelas doenças que foram chamadas de psicossomáticas... (BION, 1970, p. 97)

No sistema protomental as experiências podem tomar três direções distintas, uma apontando para a vida grupal, outra dirigida para a realidade externa, e outra ainda podendo manifestar-se na esfera física, enquanto fenômeno psicossomático. Quando as emoções podem se configurar em suposição básica é ao grupo que elas se dirigem. O grupo então vivencia alternativamente os supostos básicos de luta-fuga, dependência ou acasalamento, e o sistema protomental possui as matrizes dessas três possibilidades. Quando as emoções não se dirigem ao grupo, podem ser traduzidas em identificações projetivas e em acting-outs no ambiente. Nesse nível de funcionamento, as emoções se descarregam e o individuo pode vir a tomar consciência delas se reconhecer os processos internos que lhe deram origem. Finalmente, as emoções podem acometer o corpo do individuo, na forma de sintomas psicossomáticos que expressam os fenômenos protomentais que não encontraram formas mais elaboradas para se converterem em fenômenos psicológicos, acessíveis à análise psicológica.

Quando mais tarde Bion elabora sua teoria do pensamento, com a conceituação da função alfa e a distinção entre pensamentos alfa e pensamentos beta, torna-se possível compreender como as manifestações protomentais (compostas essencialmente de pensamentos beta) podem ter como destino as sintomatizações psicossomáticas. Zimerman (2004) descreve o sistema protomental:

Nos seus estudos sobre grupos, Bion especula sobre as situações grupais ‘básicas, comuns e primitivas’, as quais ele denomina como ‘supostos básicos’, que, por sua vez, são ‘contidos numa matriz’, chamada de sistema protomental. Isso ocorre numa época primitiva dos indivíduos e dos grupos, em que o físico e o psíquico ainda estão inseparados, de sorte que, diz Bion, ‘quando a aflição originária dessa fonte se manifesta, ela pode manifestar-se tanto sob formas físicas quanto sob formas psíquicas’. Esse sistema protomental, composto pela matriz primordial de que fluem as arcaicas emoções pertinentes aos supostos básicos, às vezes, também é chamado por Bion de ‘grupo embrionário’. (ZIMERMAN, 2004, p. 97)

E prossegue o autor:

Protopensamento designa as primitivas impressões sensoriais e experiências emocionais que, como elementos beta, não se prestam ainda para ser utilizadas como pensamentos propriamente ditos (conceitos e abstrações), mas sim para ser evacuadas fora (nos actings e nos supostos básicos dos grupos) ou dentro do organismo (‘estados psicossomáticos’). O termo ‘protopensamento’ pode ser tomado como sinônimo de ‘elemento beta’, de sorte que ocupa a fileira A da grade. (ZIMERMAN, 2004, p. 97)

Tendo situado a questão do corpo em Bion, retomemos agora a intima conexão que esse autor estabelece entre a questão do grupo e a questão do corpo. Escutemos Bion:

Na verdade, nenhum indivíduo, por mais isolado que esteja no tempo e no espaço, deve ser encarado como externo a um grupo ou não possuidor de manifestações ativas de psicologia de grupo. (BION, 1970, p. 156)

Assim, o suposto básico, manifestação característica dos grupos, onde esse fenômeno melhor pode ser analisado e enfrentado, é também um componente inseparável dos indivíduos e se manifesta no corpo, enquanto emoções e impressões procedentes da matriz do sistema protomental. Os elementos beta não descarregados podem também eleger o corpo como alvo direto, e então evidenciam-se os sintomas psicossomáticos.

Para Bion, o sistema protomental era visto como uma teoria adequada para lidar com os fenômenos clínicos que ele observara ao observar grupos de trabalho e ele os via como uma hipótese fecunda para novos desenvolvimentos. De nossa parte, queremos ressaltar uma conseqüência muito importante, tanto a nível teórico quanto técnico:

Se os fenômenos psicossomáticos remetem à matriz do sistema protomental, que é também a origem dos supostos básicos, então o grupo terapêutico pode ser o local privilegiado para a análise e o tratamento dos sintomas psicossomáticos. Dizia Bion:

Em minha opinião, a esfera dos acontecimentos protomentais não pode ser compreendida com referencia somente ao indivíduo, e o campo inteligível de estudo da dinâmica dos acontecimentos protomentais encontra-se nos indivíduos reunidos num grupo. A fase protomental no indivíduo é apenas uma parte do sistema protomental, porque os fenômenos protomentais são uma função do grupo e, dessa maneira, devem ser estudados no grupo. (BION, 1970, p. 93)

Tratar sintomas psicossomáticos num grupo é buscar fazer com que diversos indivíduos reunidos encontrem as condições para buscar retroceder suas manifestações sintomáticas, desde o nível corporal onde elas estão sendo descarregadas, até o sistema protomental de onde elas promanaram. Uma vez novamente fundidas nas emoções primitivas, é possível que elas possam voltar a fluir na forma protomental e uma vez constituídas em supostos básicos, permitam o manejo interpretativo que possa conduzir esse grupo ate à condição de grupo de trabalho.

Se tal manejo técnico for bem sucedido, o grupo de trabalho buscará construir processos de pensamento que possibilitem a superação da trilogia luta-fuga / acasalamento / dependência. Operando com a função alfa, o grupo tornará pensável e elaborável, o que antes foi mera descarga no corpo (sintoma psicossomático), de modo a que se constitua uma evolução das emoções primitivas, do corpo para o grupo (suposto básico), e deste para o pensamento e a possibilidade de cura.

Então, grupo e corpo, além de sua secreta simetria em termos conceituais, passam a representar também uma forte correlação para a prática terapêutica, permitindo delinear um modelo de atuação psicoterapêutica grupal com pacientes portadores de sintomas psicossomáticos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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KAËS, R. O grupo e o sujeito do grupo. Trad. José de Souza e Mello Werneck. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997. 333 p.        [ Links ]

McDOUGALL, J. Teatros do corpo. Trad. Pedro Henrique Bernardes, Rondon. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 238 p.        [ Links ]

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ZIMERMAN, D. E. Bion: da teoria à prática. 2. ed. Porto Alegre, RS: Artmed, 2004. 358 p.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Lazslo Antonio Ávila
E-mail: lazslo@terra.com.br

Recebido em 27/10/05.
1ª Revisão em 11/01//06.
Aceite Final em 05/02/06.

 

 

1 Professor adjunto do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto &– FAMERP, professor dos cursos de graduação e pós-graduação stricto-senso, membro e docente da SPAGESP &– Sociedades de Psicoterapias e NESME. Membro da SPAGESP &– Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo e do NESME &– Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares.