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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.7 no.1 Ribeirão Preto June 2006

 

ARTIGOS

 

O grupo como instrumento de pesquisa

 

The group as a research tool

 

El grupo como un instrumencto de investigación

 

 

Marina Durand 1

Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O conceito de sociabilidade sincrética, quando utilizado como expressão dos aspectos transubjetivos, permite o conhecimento dos processos psíquicos não só dos participantes do grupo como também do seu grupo de pertença. Isto ocorre quando o interesse do coordenador volta-se para o conhecimento da cultura, no sentido de expressão de processos inconscientes na vida cotidiana. Alguns exemplos são oferecidos como ilustração desta perspectiva.

Palavras-chave: Sociabilidade sincrética; Cultura; Processos inconscientes; Grupos.


ABSTRACT

The concept of syncretic sociability, when combined with the transubjective aspects, provides the knowledge of unconscious processes of the group participants themselves as well as the unconscious processes of the groups they belong to. This process takes place when the moderator desirers to understand the culture, in the sense of the expression of unconscious processes of daily life. This peace of work shows some example of it in order to depict this perspective.

Keywords: Syncretic sociability; Culture; Unconscious processes, Groups.


RESUMEN

El concepto de sociabilidad sincrética, mientras sea utilizado como expresión de los aspectos transubjectivos, permite el conocimiento de los procesos inconscientes, tanto de los sujetos del grupo, como de los grupos a los cuales estos sujetos pertenecen. Este proceso puede ser posible mientras el moderador tiene interés en el conocimiento de la cultura, esta entendida como expresión de los aspectos inconscientes de la vida cotidiana. Algunos ejemplos pueden ayudar a mostrar de manera más clara esta perspectiva.

Palabras clave: Sociabilidad sincrética; Cultura; Procesos inconscientes; Grupos.


 

 

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda

Fernando Pessoa, O guardador de rebanhos

 

Esses versos de Fernando Pessoa no poema O guardador de rebanhos, constituem um bom exemplo do que Bleger (1991) denomina sociabilidade sincrética. Num ensaio já clássico da literatura psicanalítica, Bleger diferencia entre a sociabilidade por interação da sociabilidade sincrética, esta corresponde ao fundo emocional que permeia a relação entre dois, de tal forma que, entre si, eles não se distinguem e não necessitam pensar sobre isso, pois se sabem &– sem se notarem &– farinhas do mesmo saco, se assim se pode dizer.

Bleger (1991) utiliza o conceito para expressar uma dimensão do grupo não perceptível à observação naturalista, mas cuja importância reside em identificar a interação latente, a partir da qual compreendemos alguns fatos manifestos. Bleger ilustra o conceito descrevendo a interação entre a mãe e a criança, juntas numa sala passam um longo tempo, a mãe costurando a criança brincando, não se falam, nem interagem de forma observável, mas quando a mãe sai da sala a criança imediatamente larga o que fazia e vai atrás da mãe.

O conceito é importante quando nos propomos pensar os aspectos psíquicos da cultura de um conjunto de pessoas. Não se trata da cultura ilustrada, mas a que se absorve e vive no cotidiano da vida, sem precisar aprender porque ela se prende de uma forma em nós que não a sentimos e, por isso, a reproduzimos sem sentir, inconscientemente. Pode ser designada como a cultura de uma instituição, empresa, ou mesmo de um povo. Descreve atitudes que por nos parecerem naturais, não se tornam motivo de pensamento nem de discussão. Em certos lugares, a fila de ônibus, por exemplo, se ordena de forma linear, conforme a ordem de chegada, em outros ela pode não ocorrer, em seu lugar, surge um aglomerado de pessoas, advindo inevitável tumulto para entrar no ônibus. Em certas circunstâncias, pode valer menos a capacidade de uma pessoa e mais a piedade que ela inspira para conseguir alguma coisa. Há muitos pressupostos condensados nestes vínculos cuja ordem se dá no plano da cultura, como sabemos, eles se formam ao longo da história da sociedade. Nestas circunstâncias, a capacidade pode significar uma ameaça às formas constituídas do poder, já a sugestão de piedade torna-se um indicativo de fragilidade, muitas vezes bem-vinda.

A ordenação social contém uma configuração psíquica que atinge todos nós, sendo peculiar a maneira como cada um vai responder às proposições da cultura. Isto configura o processo de subjetivação. Kaës (1995) a ele se refere como a diferença que o sujeito introduz ao lugar e valor a ele designado pelo conjunto a que pertence. A diferença ocorre entre o que está previsto e como o sujeito interpreta sua relação com o que a ele foi atribuído. A sociabilidade sincrética, sob a forma da cultura, está presente no sujeito e nas relações entre os sujeitos, por isso, podemos apreender a cultura que conforma os vínculos, quando no grupo temos esta intenção de pesquisa e conhecimento; esse é o espaço psíquico transubjetivo, o meio psíquico compartilhado a partir do qual ocorrem os vínculos.

A pesquisa da realidade psíquica diz respeito à investigação das formas, processos e valores que conformam os vínculos e os fatos humanos num conjunto de pessoas. No NESME (Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares) temos tido oportunidade de fazer grupos de reflexão com o segmento profissional dos funcionários públicos ligados à saúde mental, tive oportunidade de constatar como o grupo pode ser utilizado como importante instrumento de pesquisa da realidade psíquica desses profissionais. No caso, importa perceber a estrutura significante a partir de onde se organizam os vínculos com o trabalho e consigo próprio. Essa estrutura surge de fatos sociais que se repetem ao longo da história e aos quais se atribui um valor simbólico, significante em relação aos acontecimentos vividos e ao próprio sujeito (DURAND, 2005).

As carências das instituições públicas brasileiras colocam o profissional do serviço público da área da saúde mental diante de um “a menos” &– de verbas, condições materiais, organização institucional, etc. Não é difícil observar as repercussões sobre a auto-estima do profissional, cujo sentimento predominante é o de se desmerecer, sobretudo diante de se próprio e, a partir daí, a tendência é reproduzir esta estrutura de desmerecimento nos seus vínculos de trabalho.

Se o que define o contrato narcisista, tal como proposto por Piera Aulagnier2, é o investimento do conjunto no sujeito, que chega para fazer parte deste conjunto, permanece uma forte inquietação: qual o investimento da instituição sobre o brasileiro, no caso o funcionário público? A instituição pública é grupo a que ele chega para dele fazer parte, este grande conjunto que o precede, o determina e a ele prosseguirá; constatamos que o profissional pertence a um grupo que não lhe pertence porque não o reconhece, nem o investe com libido narcísica. Ressalta do caso um paradoxo: o Brasil está fora do Brasil, quando não reconhece como valor, o brasileiro. Temos, desse ponto de vista, o paradoxo de um ideal negativo:

A sujeição ideológica está intimamente associada à psicológica, que consiste em tomar o outro-estrangeiro (de região ou de classe) como modelo de identificação ou ideal. (DURAND, 2005, p. 181).

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES DAS EXPERIÊNCIAS COM GRUPOS DE REFLEXÃO

Alguns recortes das experiências em grupos de reflexão com esses profissionais têm muito interesse, a intenção de conhecimento em si envolve investimento libidinal de natureza narcísica, porque estamos orientados para o próprio conhecimento. Esses grupos foram feitos através do NESME, na cidade de São Paulo com toda a rede de saúde mental, em Santo Amaro com os profissionais da região, em Santo André, Mogi das Cruzes, São José dos Campos e com profissionais de São Vicente. As experiências, sendo diversas, guardam semelhanças de ordem estrutural. Constatamos, via de regra, que as repercussões das carências institucionais sobre as bases narcísicas do sujeito e do grupo, não impedem uma práxis com originalidade, interesse e vivacidade.

Comparado à civilização européia, o Brasil é um país novo em que tudo está por fazer. As práticas profissionais precisam ser inventadas &– é este mesmo o termo &– de acordo com as necessidades de cada circunstância e da população. O terreno é movediço e incerto, propício a dúvidas e insegurança. Constatamos que muito está sendo feito, os profissionais estão saindo da segurança das suas salas, vão para as ruas, para a comunidade. Cito um caso ilustrativo deste processo, num ambiente de miséria nas adjacências de uma pequena cidade e numa localização já rural, a psicóloga percebe a importância para a mulher que habita um casebre de ter uma horta e de trazer um pouco de beleza à sua casa com flores da região. Devido à importância que percebeu, embora a mulher não se dispusesse a esse trabalho, a psicóloga procurou estimular o comportamento de cuidar melhor do lugar onde vivia e teve sucesso na sua tentativa. Mas será isso trabalho de psicólogo? Essa pergunta acompanha o profissional e muitas vezes o maltrata.

Será preciso discutir e estabelecer que importa menos onde e o que se faz, importa como e com que intenção fazemos, a atitude do profissional diferencia a práxis psicoterapêutica em saúde mental. Do ponto de vista vivido, D. Maria, habitante dos confins de uma cidadezinha do interior do Brasil, está praticando a distinção entre pobreza e miséria, auxiliada por uma profissional do serviço de saúde mental do município. O passo psíquico da miséria à pobreza é o investimento de valor que a ele se faz acompanhar. Não é pouco, é a forma que, no caso, foi inventada para realizar um objetivo que não seria alcançado se a prática se restringisse à linguagem verbal.

Em torno de D. Maria, na vizinhança, cria-se um círculo de positividade transformando aos poucos as cores e o cotidiano dos arredores, suas formas tradicionais de sociabilidade: não só a interação manifesta, também a sincrética, isto é, a cultura que conforma os vínculos entre os pares, as representações psíquicas sobre o vivido e sobre quem vive. O passo seguinte e, ele se apresenta naturalmente, agora é tratar do problema da prostituição das adolescentes na estrada, como fazer isso? Você aprendeu na faculdade? O fato é que será feito e, somos testemunha, bem feito, com resultados alentadores para a comunidade e para a profissional.

A horta transforma o casebre em casa e a moradora em proprietária, quando se apropria do que é seu torna-se dona da sua casa; este é o sentido concreto do fato que também comporta o sentido simbólico, apropriar-se de sua vida. O mesmo processo ocorre com o profissional3, através da sua experiência planta uma horta, sem saber que frutos vai colher, só vai conhecer o produto das sementes depois que eles brotam e dão frutos. Ainda que sejam belos e suculentos permanece a dúvida: mas isto é saúde mental? Não será este um trabalho menor?

Toda prática que partir do concreto e abrir a perspectiva do simbólico é trabalho de saúde mental porque envolve a ampliação do campo significante do sujeito. Amplia valores, sentidos e a sensação de ser, existindo de uma forma mais intensa.

 

ANGÚSTIAS DOS PROFISSIONAIS E PRINCIPAIS CONCLUSÕES

Nestes grupos de reflexão procuro observar a que se refere a angústia dos participantes e como esta angústia aparece nos vínculos grupais. No caso dos profissionais de saúde eles vivem a incerteza quanto ao valor teórico e científico das suas práticas, elas não estão referendadas pelos autores conhecidos e nem pela instituição. Ainda que os resultados sejam alentadores, cresce um sentimento de culpa e, parece que quanto mais positivos os resultados, maior se torna o sentimento inconsciente de culpa. A expressão que dá voz a esse estado de coisas acaba aparecendo não sem vencer importantes dificuldades sob a forma de resistências: mas será certo fazer essas coisas? Fica ecoando em todos uma expressão não verbalizada, que comporta alguma ressonância sexual: não será errado fazer essas coisas?

A expressão é sintomática e remete às experiências do adolescente com o próprio corpo, a descoberta do prazer a sós ou com parceiros traz uma resultante de culpa por se apropriar da sua experiência, inaugurando uma sensação de liberdade. Liberdade cuja conseqüência maior é livrá-lo das formas da submissão, descortinando por sua conta e risco o sentido da palavra autonomia. Ela se faz acompanhar de um outro grande passo, a solidão: discernir com a própria cabeça o que fazer.

Não é pequena a tarefa desses profissionais como pudemos notar, esses processos reverberam em cada um de uma maneira singular e, ao mesmo tempo, se processam em todos configurando o meio e a realidade psíquica do grupo no seu espaço transubjetivo. Um país para desprender as amarras psíquicas da colonização só alcança sua verdadeira independência quando seus cidadãos, no caso os profissionais de saúde mental, têm a experiência da liberdade e a praticam em nome próprio.

O que nós fazemos nos congressos, publicações e em nossos cursos é dar oportunidade para a experiência profissional ser discutida, conceitualizada e referendada pelo próprio grupo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AULAGNIER, P. (1975). La violência de la interpretación. Buenos Aires: Amorrortu, 1993.        [ Links ]

BLEGER, J. O grupo como instituição e o grupo nas instituições. In: KAËS, R. (Orgs.). A instituição e as instituições. Trad. Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1991, p. 59-71.        [ Links ]

DURAND, M. Doença ocupacional: psicanálise e relações de trabalho. São Paulo: Escuta, 2000.        [ Links ]

DURAND, M. O medo e os vínculos sociais no Brasil. Tese (Doutorado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005.        [ Links ]

KAËS, R. El grupo y el sujeto del grupo. Buenos Aires: Amorrortu, 1995.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Marina Durand
E-mail: m.durand@uol.com.br

Recebido em 10/02/06.
1ª Revisão em 9/04/06.
Aceite Final em 28/05/06.

 

 

1 Psicóloga, mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo &– USP e doutora em Ciências Sociais/Antropologia pela Pontificia Universidade Católica de São Paulo &– PUC, presidente do NESME &– Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares.
2 “...o sujeito vê no conjunto o suporte oferecido a uma parte de sua libido narcisista” (AULAGNIER, 1975, p. 163).
3
A estrutura vincular está presente tanto em uma ponta como na outra; esta seria a transferência horizontal (DURAND, 2005).