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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.7 no.1 Ribeirão Preto June 2006

 

ARTIGOS

 

Psicoterapia de grupo com crianças: “era uma vez” o preconceito

 

“Once upon a time” there was prejudice: group psychotherapy with children

 

“Era uma vez el prejuicio”: psicoterapia de grupo con niños

 

 

Beatriz Silverio Fernandes 1

Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo
Núcleo de Estudos em Saúde Mental

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo desse trabalho é refletir, mediante o fragmento de uma sessão de psicoterapia de grupo com crianças, como o preconceito permeia o trabalho, envolvendo também a grupoterapeuta. É preciso estar alerta para o novo, sem deixar de considerar o tradicional. Finalizando, enfatiza a necessidade de se manter uma abertura e se despojar de pré-concepções, que em nada favorecem o desenvolvimento emocional.

Palavras-chave: Grupo; Crianças; Psicoterapia; Elaboração; Preconceito.


ABSTRACT

The purpose of this work is to reflect, through a fragment of a group psychotherapy session with children, how biases can present themselves throughout the work and involve also the group therapist. It is necessary to be ready to novelty without letting go the consideration of the traditional. To summarize, it emphasizes the need to remain open, discarding the prejudices which do not favors emotional development.

Keywords: Group; Children; Psychotherapy; Elaboration; Prejudice.


RESUMEN

El objetivo del trabajo es pensar, utilizando una parte de una sesión de psicoterapia de grupo con niños, en que modo el prejuicio está presente en todo el trabajo, incluso en la terapeuta. Es imperativo estar listo para la novedad sin dejar de mirar atentamente para el tradicional. Concluyendo, se destaca la urgencia de mantenerse abierto, y echar opiniones sin bases que en nada son útiles para el desarrollo emocional.

Palabras clave: Grupo; Niños; Psicoterapia; Elaboración; Prejuicio.


 

 

No transcurso de meu trabalho clínico com grupos infantis, algumas idéias inquietam-me sobre os fatores que ocorrem, e como trabalhar com eles. Às vezes, durante acontecimentos inusitados, surge certo vazio. Esse vazio se refere ao que fica preso, sem condições de criação dentro do trabalho, aprisionamento esse que se refere àquilo que tradicionalmente aprendemos e ouvimos sobre o manejo da técnica.

Observei também que o conteúdo trazido pelas crianças muitas vezes assemelha-se ao que era produzido em mim. Deparei-me então com algo que envolve a todos. O conhecido e o desconhecido, o que é novo e o quanto nos assustam frente ao que é tradição, a que estamos atados.

Essas inquietações podem ser pensadas sob vários vértices e, dentre diversas situações, selecionei o trabalho grupal e seu material de trabalho.

A sessão é um mistério à espera de ser revelado, é um jogo a ser jogado, uma luta a ser enfrentada. A cada acontecer da sessão nos dá oportunidade de transformação, de crescimento. Mas, se eu estiver sob o domínio do preconceito, permanecerei estagnada.

Este é o tema que procurarei demonstrar ao longo de um fragmento de sessão: o preconceito.

 

DEFININDO PRECONCEITO

Usarei como definição de preconceito:

1. O substantivo preconceito tem como significado uma opinião ou conceito formado antecipadamente com precipitação, destituído de uma análise mais séria ou conhecimento de determinado assunto, sem considerar os argumentos contrários e favoráveis, sem a devida discussão sobre os múltiplos aspectos que incidem sobre os fatos, e sem a necessária reflexão.

2. Pode ser definido sobre o viés da psicologia, no entanto, os processos sociais possuem um peso especial, uma vez que são eles que condicionam os indivíduos a serem o que são. Se o indivíduo não se relacionar com a cultura sadiamente, será conduzido ao preconceito.

3. Ou, então, como uma opinião que não é justificada, tanto num grupo como num indivíduo, favorável ou desfavorável, e que leva a atuar de acordo com esta definição.

4. Socialmente, uma das causas do preconceito é o fato de que percebemos o mundo através de grades de nossa cultura, que pode ser entendida como: um conjunto de símbolos compartilhado pelos integrantes de determinado grupo social e que lhes permite atribuir sentido ao mundo em que vivem e às suas ações.

5. Dentro da teoria psicanalítica, é algo que colabora para o não desenvolvimento psíquico, algo que ajuda a permanecer no domínio do instinto de morte, que não proporciona integração, ligado às relações parciais de objeto.

Toda cultura é dinâmica, as pessoas interagem com o mundo em que vivem criando e alterando símbolos. Também a cultura está ligada à história particular de cada grupo, portanto não existe uma cultura “atrasada”, “primitiva”, “avançada”. As culturas estão em permanente transformação, buscando novas idéias sobre novas realidades que se apresentam e sempre continuarão diferentes umas das outras.

Tendemos a valorizar positivamente o nosso próprio grupo, aliado a um preconceito que foge da crítica em favor do nosso grupo. Há uma visão distorcida e preconceituosa em relação aos demais.

O preconceito também está ligado à ausência do conhecimento e leva em conta a teimosia, sua aliada inseparável. Seu oposto, aprender, refletir, requer esforço, abdicação do velho pelo novo, requer ousar.

O espaço grupal é um meio bastante adequado para se pensar o tema. Como descrito em outro trabalho “uma experiência importante é o indivíduo ser compreendido e aceito por um terapeuta; outra experiência, consideravelmente mais poderosa, é a criança ser compreendida e aceita por companheiros de grupo, que também estão compartilhando seus sentimentos em uma busca, em conjunto, de um jeito de viver com maior satisfação” (FERNANDES, 2003, p. 231).

 

FRAGMENTO DE GRUPO

Vejamos o seguinte fragmento de uma sessão de grupo infantil, de um grupo composto nesse dia por duas meninas de 5 anos e um menino de 6 anos, que se encontravam semanalmente.

Lucas &– Doutora, eu vi um anão domingo. Ele tinha 33 anos como minha mãe e era do meu tamanho, só que mais gordo.

Psicoterapeuta &– É Lucas, e que tal foi essa aventura?

Lucas &– Doutora, minha tia me disse que se eu não comer vou ficar anão. Ela é professora.

Gi &– Xi, Lucas... Eu vi na TV que tem anão no mundo porque eles têm problemas de “onomios”.

Jú &– Bom, eu não sei, mas minha avó disse que é castigo.

Lucas &– Castigo? Por quê? Doutora, será que ele foi desobediente?

Jú &– Eu acho que minha avó acha que sim.

Psicoterapeuta &– Fiquei com algumas dúvidas sobre anão. Gi, o que é problemas de “onomios” que você viu?

Gi &– Tia, eu não sei né!... Mas, é o que faz a gente crescer. Eu menti para minha mãe. Disse que ia dormir e fiquei embaixo do sofá e assisti o “Fantástico”. Mas, não entendi nada direito.

Psicoterapeuta &– Outra coisa: o que é desobedecer?

Lucas &– A Gi assistir a TV sem a mãe deixar.

Jú &– Tia, eu obedeço minha avó porque tenho medo de apanhar.

Gi &– Credo, gente! Que bobagem! Sabe, tia, eu joguei o dinheiro do meu pai pela janela.

Jú &– Nossa, Gi!

Lucas &– Você é louca. Louco é que joga dinheiro pela janela.

Gi &– Vocês são burros, sabiam? O meu pai me disse que não tinha dinheiro, não podia comprar nada, nem para eu ir ao passeio da escola. Se ele não tem dinheiro, o que era aquilo então? Lixo. Peguei da carteira dele e joguei fora, ele não disse que não tinha? Então não tem diferença! (ri... e faz gesto de dúvida)

Jú &– Gi, você tem que conversar com minha avó.

Gi &– Ela é mais chata. Você precisa conversar com ela, não é, tia?

Lucas &– Você não pode falar assim com a Júlia, não é, doutora?

Gi &– Tia, porque ele te chama de doutora?

 

DISCUTINDO O PRECONCEITO POR INTERMÉDIO DO GRUPO

Observando o desenrolar de uma sessão de grupo infantil podemos perceber alguns componentes preconceituosos permeando o imaginário infantil. Apesar de sabermos que a personalidade infantil vive em constante crescimento neste momento de vida, de transformações e desenvolvimento, sabemos, no entanto, que é nesse período que ocorrem as mudanças ou as estratificações.

A criança, quando embebida de aspectos preconceituosos, vive uma dor mental intensa, e esta dor a restringe de tal modo que a obriga a olhar e entender o mundo apenas de seu solitário universo. O grupo colabora, se assim seus componentes quiserem, para abrir lentamente uma cortina com a ponta de seus dedos e começar a olhar sorrateiramente para além do peitoral da janela e observar mais de perto a realidade. Dessa maneira a criança poderá crescer, evoluir e sentir-se cada dia mais dona de um conhecimento real de si e do outro.

Tal como diz Fernandes (2003, p. 44) a partir do relacionamento com a mãe e o pai, “as pessoas introjetam modelos de vínculos &– as matrizes vinculares: o bebê introjeta as estruturas vinculares a partir do mundo externo, começando pelos pais, e passa a conservá-los como padrão”.

Zimerman (1999, apud FERNANDES, 1994, p. 3) no diz, referindo-se às contribuições de Bion: “a estruturação de qualquer indivíduo, necessariamente, requer a sua participação em diferentes grupos, onde ele sempre sofre a influência dos outros, ao mesmo tempo em que ele também é um agente ativo de transformação”.

Dentro do setting grupal poderão dialogar intra, inter e transubjetivamente e, assim, contribuir para seu desenvolvimento emocional. Sem o desenvolvimento emocional dificilmente conseguirão libertar-se das amarrar do pré-conhecimento, não adquirido, mas emprestado e não elaborado. O mundo do mal (impulso de morte) acaba, às vezes, prevalecendo e impedindo a mente de transformar-se.

Abrindo brecha para a vida (instinto de vida), observa-se que a alegria de viver e crescer aumenta. A repressão cede seu lugar para a criatividade e, conseqüentemente, para o desenvolvimento.

Sob o domínio do preconceito percebemos que as crianças ficam cegas para a vida. São perseguidas por seus fantasmas que a aterrorizam noite e dia; vendo apenas o que o seu medo permite, imaginando que nisso se resume à realidade.

O preconceito é revestido de punição, de um aprisionamento conceitual, invejoso e recheado de ódio, que é projetado em alguém ou em uma determinada situação.

No tocante à grupoterapeuta e a técnica, alguns preconceitos também invadem a mente. Ficar presa, tentar fazer apenas o que aceitamos como correto tecnicamente. Mas há momentos em que percebemos que nem tudo é uma mera reedição de fatos e emoções. Graças a Zimerman encontro apoio às idéias criativas:

Sentimentos tranferenciais não representam exclusivamente uma mera repetição de antigas experiências emocionais com figuras do passado; elas podem também estar refletindo novas experiências que estão sendo vivenciadas com a pessoa real do grupoterapeuta e de cada um dos demais (ZIMERMAN, 1998, p. 239).

Muitas vezes, aprisionados que estamos, deixamos a pressa, o imediatismo, nos vencer e fracassamos no sentido de abraçarmos algo historicamente e, com isso, desviamos nossos objetivos. Deixamos de colocar água na semente plantada e a condenamos à seca.

É um modo cômodo de lidar com dificuldades e com o desconhecido. É um meio de não se responsabilizar, de dizer que aquilo não é minha propriedade, não é minha criação. Por exemplo: Menino desobediente é malvado. Menina que não obedece é castigada. Menina que não come quando a mãe manda é teimosa.

Ora, o que está compreendido nas frases mencionadas no parágrafo anterior? Levanto a questão: por que obedecer sempre é ser bom? Não observamos nossos clientes nos grupos, não levantamos questões acerca de suas atitudes e, com isso, os vemos construírem sua própria subjetividade, colocando em discussão os pontos favoráveis e desfavoráveis do tema?

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Creio que nas considerações do parágrafo anterior encontramos a chave que vai permitir a abertura de um refletir saudável, da ponderação, da dialética, portanto do aprender. Anular seu EU em favor de uma opinião imposta ou adotada por comodismo, ou por influência do ódio leva-nos a um estancamento emocional.

É preciso deixar surgir dentro de nós espaço, tanto para mim como para o outro, que não cause danos, que não nos encha de culpa, e parar de fazer o que anula nossa livre escolha. É preciso apenas realizar o que está dentro de nossa capacidade de fazer ou aceitar.

No espaço grupal se vivencia o imaginário como real. Deste modo é tranqüilizante, permitir a vivencia de certas fantasias onipotentes, e com isto, obter, passo a passo, a aceitação da realidade e a perda da fantasia. O grupo é um espaço de descobrimento e um laboratório de experimentação, onde se podem fazer ensaios sobre diferentes químicas e elementos.

Ou como diz Aliatti (1998, p. 309): “no grupo a possibilidade de diferentes identificações encorajam mudanças e adquirem um equilíbrio com seu ego mais fortificado. As crianças aprendem novas técnicas para lidar com seus conflitos, visando a um melhor domínio da realidade e possibilitando melhor relacionamento interpessoal”.

Percebe-se no fragmento exposto que muitos conceitos empregados, que foram assumidos, não são da autoria das crianças ou simples concordâncias, foram na verdade legados, transmitidos e muitas vezes sem justificativa plausível que os sustente como legítimos ou verdadeiros.

Nesse sentido, Gi é o modelo, embora exacerbado de questionar, duvidar, desconfiar de fórmulas prontas. Não somente com o intuito de encontrar respostas prontas, mas minimamente para discriminar verdades de mentiras, que povoam nosso dia-a-dia. Ou até para obedecer, caso seja uma opção, mas de livre escolha.

Deparei-me também com uma situação muito nova. Gi nunca agiu na sessão como o descrito. É verdade que sempre reluta antes de concordar com uma decisão grupal onde não prevalece sua vontade. Duvida, questiona e consegue ponderar e acata a decisão. Diante de uma citação inusitada, optei apenas por continuar conversar sobre o verso e o reverso do que era falado, pois percebi que Gi ajudava Lucas e Jú a se libertarem, e estes conseguiam mostrar certo limite a Gi, não a deixando de lado. A olharam com medo e esclareceram, no final, “que tinha um jeito esquisito de resolver coisas, que dava medo neles, assim como o anão”.

Percebi também que eu mesma, enquanto terapeuta, necessitei abrir-me, sair das amarras técnicas, repensar neste momento qual o caminho a percorrer com estas crianças, perceber a sensibilidade das mesmas, e calmamente, participar da construção de uma interpretação, por meio de alguns recursos que despertem funções do ego da criança ainda em formação.

Concordo com Fernandes (2005, p. 10) quando diz: “tanto o analista como os pacientes temem a mudança e o crescimento, porque a ameaça do desconhecido é acompanhada de uma dolorosa angústia catastrófica”.

Janine Puget traz em recente trabalho a possibilidade de que seja de ordem inconsciente o fato de que somos subjetivados com valores, modelos de vida, de pensar, de crer, de vestir, de sentir. “Agrega-se também a convicção de que “esse modo, o nosso, é o apropriado e não deverá ser questionado” (PUGET, 2005, p. 3), o que pode colaborar para permanecermos estagnados no crescimento.

É preciso estar preparado para o novo. Para aquilo que ainda se desconhece. É necessário manter uma abertura e se despojar de pré-concepções que em nada favorecem o crescimento. Elas são necessárias como primeiro momento, mas atar-se a elas não propicia desenvolvimento.

Parece à primeira vista d´olhos que o preconceito está sempre no outro. Esquecemos de nós, e ver o quanto carregamos dele é doloroso.

Creio que, sem citar ou transcrever muitos autores, encontro neste fragmento muitos conceitos de Klein e Bion que estão presentes em nosso trabalho cotidiano. Apresentados de forma singela pelas crianças do grupo, ajudaram-me assim a refletir e compartilhar minhas inquietações.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALLIATI, I. Grupoterapia com crianças. In: OUTEIRAL, J. (Org.). Clínica psicanalítica de crianças e adolescentes: desenvolvimento, psicopatologia e tratamento. Rio de Janeiro, RJ: Revinter, 1998, p. 302-310.        [ Links ]

FERNANDES, W.J. O processo comunicativo vincular e a psicanálise dos vínculos. In: FERNANDES, B. S.; SVARTMAN, B.; FERNANDES, W. J. (Orgs.). Grupos e configurações vinculares. Porto Alegre: Artmed, 2003, p. 43-56.        [ Links ]

FERNANDES, W. J. Como trabalho com grupos. Trabalho apresentado no Congresso Brasileiro de Psicoterapia Analítica de Grupo, Canela, RS, 1994. Trabalho não publicado.        [ Links ]

FERNANDES, W. J. Preconceito e grupanálise: o verso, o diverso e o adverso nos grupos. Apresentado no VIII Encontro Luso-Brasileiro de Grupanálise e Psicoterapia Analítica de Grupo. Lisboa, 2005. Publicado em http://pwp.netcabo.pt/0150419901/revis/miolo3.pdf p. 8-13.        [ Links ]

PUGET, J. Qué y como podemos pensar, en tanto psicoanalistas, acerca de lo que se llama terrorismo y teroristas. Trabalho apresentado no 44º Congresso Internacional de Psicanálise. Rio de Janeiro, 2005. Trabalho não publicado.        [ Links ]

ZIMERMAN, D. E. Fundamentos psicanalíticos. Porto Alegre, RS: Artmed, 1999. p. 439-454.        [ Links ]

ZIMERMAN, D. E. Psicoterapia de grupo. In: CORDIOLI, A. V. (Org.). Psicoterapias: abordagens atuais. Porto Alegre, RS: Artmed, 1998, p. 225-242.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Beatriz Silverio Fernandes
E-mail: bibitriz@terra.com.br

Recebido em 25/02/06.
1ª Revisão em 19/05/06.
Aceite Final em 08/06/06.

 

 

1 Psicóloga clínica, membro docente e fundador do NESME &– Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares e SPAGESP &– Sociedade de Psicoterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo.