SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 número2A guerra e os grupos: um encontro entre Bion e LacanGrupo de apoio para casais pretendentes à adoção: a espera compartilhada do futuro índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP v.7 n.2 Ribeirão Preto dez. 2006

 

ARTIGOS

 

A construção de um estágio em psicoterapia de grupo: uma perspectiva construcionista social

 

Constructing an internship in group therapy: a constructionist perspective

 

La construcción de una práctica en psicoterapia de grupo: una perspectiva construccionista social

 

 

Emerson Fernando Rasera1; Livia Andrade Santos2; Luciane Guedes Santana de Faria2; Renata Leite Cândido de Aguiar2; Viviane Silva Pires2

Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse artigo consiste de um relato de experiência cujo objetivo é descrever a estrutura e o funcionamento do atendimento em psicoterapia de grupo, orientado por uma perspectiva construcionista social, tal como realizado em um estágio curricular do curso de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia. A perspectiva teórica utilizada enfatiza a análise do processo social de construção dos sentidos; uma postura de co-construção entre terapeuta e cliente; o olhar sobre os relacionamentos nos quais o cliente está envolvido; a multiplicidade de formas de descrever um problema; e um discurso de potencialidades positivas e de construção de realidades futuras. Os grupos, realizados sob supervisão de um docente, são coordenados por quatro estagiárias divididas em duplas de campo e equipe reflexiva. Os grupos fechados têm 12 sessões semanais de 1h30 de duração e têm como clientela a população adulta. Os principais desafios enfrentados pelas estagiárias se referem à aprendizagem da postura de não-saber e à utilização de perguntas conversacionais. Por meio deste estágio, tem sido possível reconhecer a produtividade, bem como os desafios, da construção desta nova perspectiva em terapia de grupo.

Palavras-chave: Psicoterapia de grupo; Construcionismo social; Formação profissional.


ABSTRACT

This article describes the structure and the functioning of a social constructionist group therapy program, as carried out in the Psychology internship at the Universidade Federal de Uberlândia. This theoretical perspective emphasizes the analysis of the social process of making sense; a stance of co-construction between therapist and client; a focus on the relationships in which the client is involved; the multiplicity of forms to describe a problem; and a discourse of positive potentials and the construction of future realities. The groups are coordinated by four trainees divided in pairs of field therapists and reflecting team members. The closed groups have 12 weekly sessions of 1h30 of duration and are attended by adult people. The main challenges faced by the trainees are related to the learning of the not-knowing position and the use of conversational questions. Through this experience, it has been possible to recognize the productivity, as well as the challenges, of the construction of this new perspective in group therapy.

Keywords: Group psychotherapy; Social construction; Professional training.


RESUMEN

Este artículo consiste de un relato de experiencia cuyo objetivo es describir la estructura y el funcionamiento del atendimiento en psicoterapia de grupo, orientado por una perspectiva construccionista social, tal como realizado en una práctica curricular del curso de Psicología de la Universidade Federal de Uberlândia. La perspectiva teórica utilizada enfatiza el análisis del proceso social de construcción de los sentidos; una postura de co-construcción entre terapeuta y cliente; la mirada sobre los relacionamientos en los cuales el cliente está envuelto; la multiplicidad de formas de describir un problema; y un discurso de potencialidades positivas y de construcción de realidades futuras. Los grupos, realizados con supervisión de un docente, son coordinados por cuatro practicantes dividas en duplas de campo y equipo reflexivo. Los grupos cerrados tienen 12 sesiones semanales de 1h30 de duración y tienen como clientela la población adulta. Los principales desafíos enfrentados por las practicantes se refieren al aprendizaje de la postura de no-saber y a la utilización de preguntas conversacionales. Por medio de esta práctica, ha sido posible reconocer la productividad, bien como los desafíos de la construcción de esta nueva perspectiva en terapia de grupo.

Palabras clave: Psicoterapia de grupo; Construccionismo social; Formación profesional.


 

 

CONSTRUCIONISMO SOCIAL, PSICOTERAPIA E GRUPOS

O construcionismo social abarca um conjunto de proposições teóricas nas ciências humanas que enfatizam o processo de construção da realidade através dos sistemas de significação definidos sócio-historicamente (GERGEN, 1997, 1999; SHOTTER, 1993; SPINK, 1999). Esta perspectiva epistemológica construcionista tem servido de justificativa a propostas terapêuticas que enfatizam: uma postura de co-construção entre terapeuta e cliente; o olhar sobre os relacionamentos nos quais o cliente está envolvido; a multiplicidade de formas de descrever um problema; e um discurso de potencialidades positivas e de construção de realidades futuras (GRANDESSO, 2000; MCNAMEE, GERGEN, 1998; RASERA, JAPUR, 2004).

Segundo Anderson e Goolishian (ANDERSON, 1997; ANDERSON, GOOLISHIAN, 1998), em um processo de terapia colaborativa influenciada pela perspectiva construcionista, o terapeuta deve atuar a partir de uma posição de não-saber. Esta posição, influenciada pelas teorias hermenêuticas que afirmam que a criação de sentido é sempre um processo dialógico permanente (o chamado ‘círculo hermenêutico’), sustenta que o terapeuta

não tem acesso à informação privilegiada, de que ele nunca pode compreender outra pessoa completamente, que ele sempre precisa estar em um estado de ser informado pelo outro, e sempre precisa aprender mais sobre o que foi dito ou não foi dito (ANDERSON, 1997, p. 134).

Desta forma, o terapeuta deve estar aberto e curioso para ouvir e compreender a história do cliente, confiando no discurso que o mesmo traz e deixando ser hermeneuticamente conduzido pelos sentidos de tais narrativas. A intervenção proposta por Harlene Anderson (1997) que traduz tal postura consiste de perguntas conversacionais. Não são perguntas pré-determinadas, que seguem uma metodologia específica e buscam uma confirmação de hipóteses; mas aquelas que permitem ao terapeuta entender o cliente a partir da perspectiva sempre em mudança de sua experiência de vida, possibilitando a construção de novos sentidos e o agenciamento dos clientes. Elas marcam o caráter exploratório da perspectiva construcionista.

Também com o objetivo de promover a produção de novos sentidos, Tom Andersen (1996) desenvolveu a prática da equipe reflexiva/processos reflexivos3. Ao propor um momento na sessão em que terapeutas e clientes param sua conversação para ouvir os comentários de terapeutas convidados, Andersen aposta na reflexão como um motor potente para novas significações. Segundo este autor, em uma conversa terapêutica há sempre as conversas internas dos participantes e uma conversa externa realizada entre eles. As conversas internas permitem à pessoa construir novas descrições, sem que sua integridade seja ameaçada. O momento em que a equipe reflexiva oferece cuidadosamente suas contribuições possibilita um momento de suspensão das conversas externas entre os clientes, e uma oportunidade de reflexão sobre os próprios dizeres, bem como sobre o que os outros disseram. Ouvir o já-dito sob outras perspectivas, próprias ou alheias, permite emergir o não-dito e os novos entendimentos sobre as situações relatadas.

White e Epston (1990), influenciados por uma metáfora narrativa, desenvolveram um método em psicoterapia no qual buscam identificar situações nas quais as pessoas não foram influenciadas em suas ações pelas exigências do problema - os chamados acontecimentos extraordinários - e ampliam as descrições sobre estas situações, visando fortalecer estas narrativas que não estão saturadas pelo problema.

Estas propostas se originaram no contexto da terapia familiar e encontram seus primeiros passos no campo da terapia de grupo (BECVAR, CANFIELD, BECVAR, 1997; GUANAES, 2006; RASERA, JAPUR, 2001). No Brasil, Rasera (2004), utilizando-se dos pressupostos construcionistas, propõe que o grupo seja compreendido como uma prática discursiva, definindo o problema e a mudança como construções linguísticas, a atuação do terapeuta como derivada de uma parceria conversacional, e o contrato grupal como uma forma de circunscrever as condições de produção de sentido.

Considerando o caráter embrionário da aproximação das idéias construcionistas ao campo da prática grupal, o objetivo deste trabalho é descrever a estrutura e o funcionamento do atendimento em psicoterapia de grupo, orientado por uma perspectiva construcionista social, tal como realizado em um estágio curricular do curso de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia. Este relato buscará contribuir com tal aproximação ao descrever tanto o modelo de atendimento proposto a partir de tais idéias, bem como ao refletir sobre o processo de formação de terapeutas nesta perspectiva teórica.

 

A CONSTRUÇÃO DO ESTÁGIO

Considerando a estrutura de estágios da instituição e os aportes construcionistas, descreveremos a seguir a construção do estágio a partir de nossa prática, tanto no que se refere ao modelo de atendimento, quanto ao processo de supervisão, e à avaliação dos terapeutas-estagiários

O estágio é anual, sendo oferecido aos alunos que já cursaram as disciplinas do oitavo semestre do curso de Psicologia. O processo de seleção dos quatro estagiários inclui entrevistas e participação em dinâmicas de grupo. São analisadas as motivações, formação anterior, disponibilidade para o trabalho em duplas e interesse em psicoterapia de grupo. As atividades do estágio compreendem: leitura e discussão de textos, realização de sessões individuais, coordenação de grupos, redação de cartas-relatos das sessões, e participação na supervisão dos atendimentos. Os estagiários coordenam dois grupos fechados e de curto prazo ao longo do ano, se revezando ora como parte da dupla de terapeutas de campo de um grupo, ora como membro da equipe reflexiva do outro grupo. Todos os grupos são realizados na clínica escola da instituição.

 

DESCRIÇÃO DO MODELO DE ATENDIMENTO

O modelo de atendimento seguido no estágio é decorrente do diálogo entre a proposta de prática grupal influenciada pelas idéias construcionistas desenvolvida pelo docente supervisor e as condições impostas pelas regras da clínica escola, bem como pelos objetivos de formação de terapeutas no contexto de um estágio profissionalizante.

a) As sessões individuais para a seleção e a preparação dos participantes

O processo de seleção, composição e preparação para o grupo, realizado pelos estagiários, se dá por meio de duas sessões individuais de 50 minutos de duração, sendo uma para acolhimento e outra para preparação dos participantes.

Em virtude da demanda da clínica escola do Instituto de Psicologia e a estrutura dos estágios oferecidos por esta, a sessão de acolhimento tem um caráter de triagem, ou seja, de seleção e encaminhamento dos clientes. Considerando a estrutura deste estágio que propõe a realização de grupos fechados e de curto prazo, busca-se uma clientela com faixa etária e queixas aproximadas. Este critério funciona como orientador na conversa com os participantes, sendo, contudo, negociado com cada um deles segundo seu entendimento das características dos outros participantes na sessão de preparação.

A sessão de acolhimento tem como objetivo conhecer o cliente e permitir que este conheça o terapeuta, desenvolver um clima de respeito e aproximação com o mesmo, ouvir sua narrativa e identificar o motivo pela procura do serviço, refletir sobre os recursos utilizados por ele diante dos problemas, apresentar a instituição e o tipo de atendimento, seus objetivos e regras, e juntamente com o cliente construir o encaminhamento a ser tomado.

A sessão de preparação, realizada apenas com aqueles clientes que vão participar de um grupo, tem como objetivo criar um contexto de diálogo e preparar para o processo terapêutico, fazendo com que o grupo e a mudança comecem a existir para o participante já neste momento. Para isso, realizamos perguntas conversacionais que buscam ampliar as possibilidades de significação e diálogo, além de identificar as expectativas dos participantes, fornecer descrições sobre o funcionamento e composição do grupo, refletir sobre as reações dos clientes frente à proposta apresentada, identificar o que seria de ajuda, bem como, quais as dificuldades imaginadas por eles.

Essa sessão de preparação também tem um caráter de negociação entre terapeuta e participante, em que são compartilhadas algumas regras sobre o grupo, tais como: o grupo é composto por, no máximo, oito participantes, podendo ocorrer a entrada de um novo participante até a segunda sessão; as sessões, de 1h30 de duração, ocorrem semanalmente, ao longo de doze semanas, no mesmo horário e local, havendo uma tolerância de 10 minutos de atraso. O sigilo deve ser mantido e o contato externo evitado. Conversamos sobre a importância da presença dos participantes para o funcionamento do grupo e para a mudança dos participantes, e esclarecemos a regra institucional que define que após três faltas consecutivas sem justificativas, o cliente é automaticamente desligado da clínica escola.

Nesta sessão de preparação também são realizadas breves descrições sobre os potenciais participantes do grupo com o objetivo de que cada membro reflita sobre as interações imaginadas com os outros participantes, reconhecendo possibilidades e dificuldades.

b) As sessões grupais: os terapeutas de campo e os membros da equipe reflexiva

Apoiados pelas propostas construcionistas, os terapeutas-estagiários atuam de forma a promover conversas dialógicas e reflexivas, buscando fortalecer narrativas de enfrentamento e identificar os acontecimentos extraordinários nas narrativas saturadas pelo problema. As perguntas que focalizam o acontecimento extraordinário têm como objetivo ajudar o participante a se separar da dificuldade enfrentada, podendo, então, reconhecer suas competências e recursos que contradizem a narrativa saturada pelo problema.

Utilizando o modelo da equipe reflexiva criada por Andersen (1999), os estagiários se dividem em duplas, ficando uma dupla como terapeutas de campo e a outra dupla como equipe reflexiva, sendo que os terapeutas de campo coordenam as conversas do grupo e a equipe reflexiva mantém uma posição de escuta, compartilhando suas reflexões quando solicitada pelos terapeutas de campo.

Nos momentos em que os terapeutas de campo consideram as conversações estagnadas ou precisando de uma interrupção em seu ritmo, eles convidam a equipe reflexiva a dar a sua contribuição. Os membros da equipe olham-se enquanto falam, para que estejam em comunicação entre si e não com os membros do grupo. Após a fala da equipe, os participantes escolhem se querem discutir as considerações feitas pela mesma, sendo possível que os terapeutas de campo retomem algumas questões que chamaram sua atenção.

Os terapeutas de campo buscam abrir espaço para o diálogo, convidando os participantes a conversarem sobre suas preocupações, ou seja, refletirem sobre suas questões e se colocarem de forma aberta ao outro. Neste diálogo grupal, é necessário legitimar as narrativas de enfrentamento e mudança dos participantes, bem como, ajudá-los a identificar como os recursos e aprendizados adquiridos no grupo podem ser utilizados em outros contextos.

A utilização da equipe reflexiva no contexto de formação de terapeutas funciona como um suporte aos terapeutas de campo, promovendo um senso de auto-confiança e maior liberdade a eles para se conectarem com o momento interativo e com os detalhes das falas de cada participante. Para aqueles terapeutas que atuam na equipe, trata-se de um exercício de cuidar pacientemente dos próprios pensamentos, de conter a necessidade de falar e opinar, de se interessar pelos diferentes sentidos, e de aprimorar a habilidade de se comunicar de forma a gerar acolhimento.

c) O relato das sessões por meio de cartas

Após cada sessão, os terapeutas-estagiários redigem relatos da sessão que servem, ao mesmo tempo, como forma de registro do atendimento para fins institucionais e como cartas a serem entregues aos participantes. Essas cartas, influenciadas pelas propostas narrativas em terapia (WHITE, EPSTON, 1990), têm a função de convidar a novas reflexões sobre as histórias construídas no grupo. As cartas trazem uma breve alusão a algumas situações relatadas pelos participantes e oferecem um conjunto de questionamentos que buscam promover a ampliação das narrativas, a partir de processos reflexivos e dialógicos (ANDERSEN, 1999; ANDERSON, GOOLISHIAN, 1998). A leitura das cartas é feita no início de cada sessão, sendo realizada voluntariamente tanto pelos terapeutas de campo quanto pelos participantes do grupo.

A utilização de cartas no contexto de formação de terapeutas contribui de diversas maneiras para o processo de aprendizagem. De forma geral, a redação das cartas permite a revisão das intervenções dos terapeutas na sessão anterior e a reflexão sobre as narrativas trazidas pelos clientes. Ela também permite que o terapeuta desenvolva a capacidade de realizar perguntas conversacionais, pois pode construí-las num ritmo mais lento e favorável à reflexão, e de forma aprimorada à medida que a carta é escrita e reescrita até sua versão final. Além disso, a leitura da carta no início da sessão promove um resgate das questões e do clima da sessão anterior, facilitando literária e afetivamente a conexão com as pessoas e suas histórias.

 

SUPERVISÃO

A supervisão é realizada entre o docente responsável pelo estágio e os quatros estagiários, semanalmente, durante duas horas, logo após o término da sessão de grupo. O objetivo desta é discutir aquelas questões eleitas pelos estagiários como importantes para o desenvolvimento de sua postura como terapeutas. Essas questões são baseadas na leitura de textos e nas dificuldades vividas no atendimento. Este é um momento de criar um espaço de reflexão sobre as ações dos terapeutas-estagiários no contexto grupal e gerar novos entendimentos a respeito das situações vivenciadas pelos mesmos, promovendo a ressignificação das angústias e anseios dos terapeutas, e a identificação de recursos potencialmente úteis para os atendimentos seguintes.

Tal como no próprio contexto psicoterápico, a postura do supervisor é também influenciada pelas contribuições construcionistas, que ao sustentar uma postura de não-saber, busca promover conversações dialógicas e reflexivas, ampliando as narrativas dos estagiários sobre suas ações como terapeutas, bem como sobre as histórias trazidas sobre os membros do grupo. Trata-se de construir, também neste contexto, uma parceria conversacional entre supervisor e estagiário pautada por uma ‘investigação compartilhada’ (ANDERSON, 1997).

 

A PERSPECTIVA DOS ESTAGIÁRIOS

Por meio das conversas ocorridas durante a supervisão das sessões, da discussão dos textos lidos para o estágio, e da participação de todos os estagiários do ano de 2005 na redação deste artigo, foi possível que supervisor e estagiários identificassem as principais contribuições deste estágio para a formação dos alunos como terapeutas, bem como reconhecessem as dificuldades enfrentadas neste processo.

Quanto às contribuições do estágio, segundo os alunos, este permitiu: a ampliação do conhecimento teórico sobre grupos e construcionismo social; o desenvolvimento de habilidades para atendimento individual e de grupo; o reconhecimento da importância da postura do terapeuta no processo de mudança, ao possibilitar que o cliente reflita sobre as questões que narra e encontre, reflexivamente, recursos para superar as dificuldades apresentadas; a relevância da utilização da equipe reflexiva para o processo terapêutico; e a criação de novos valores na relação terapeuta-cliente. Estas aprendizagens e recursos desenvolvidos no diálogo do grupo passaram, muitas vezes, a serem utilizados também nas relações cotidianas dos estagiários.

Os desafios enfrentados pelos estagiários se referiram à aprendizagem da postura de não-saber; à utilização de perguntas conversacionais; a lidar com as pré-concepções dos clientes em relação ao papel do terapeuta e dos terapeutas sobre os clientes; à superação do modelo do profissional como especialista; à habilidade de confiar no que o grupo está trazendo ao invés de se apoiar em hipóteses; a aprender a acreditar no processo e respeitar o tempo de reflexão do outro. Tais situações foram vivenciadas como desafios, pois exigiam uma postura profissional até então desconhecida, e que muitas vezes contrariava as aprendizagens recebidas, tanto acadêmicas quanto culturalmente, as quais privilegiavam uma visão da atuação do psicólogo como aquele especialista que revela a verdade sobre o outro, detendo o conhecimento sobre ele e dominando de forma previsível e sistemática o processo terapêutico.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo relata uma experiência ainda em construção que busca utilizar, no contexto de uma clínica escola universitária, uma proposta de atendimento influenciada pela perspectiva construcionista. Trata-se de uma proposta que articula conceitos e práticas de diferentes autores construcionistas atuantes no campo da terapia familiar, de forma a torná-los úteis no contexto grupal. Uma ampliação desta experiência permitirá novas reflexões sobre as potencialidades de tal empreendimento, possibilitando, talvez, uma futura fertilização mútua entre estes dois campos a partir das contribuições construcionistas.

Por meio desta experiência relatada, pudemos também observar que a participação no estágio requer a aceitação do convite construcionista a refletir sobre as tradições, sejam acadêmicas ou culturais, e a nos responsabilizar por nossas escolhas e pelas implicações relacionais de nossas práticas, retirando uma suposta garantia transcendental do conhecimento aprendido no curso. O estágio contribui assim para a construção de uma nova identidade profissional e para a formação de um terapeuta reflexivo, engajado com o outro e criador de novas possibilidades de entendimento e relacionamento.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECVAR, R. J., CANFIELD B. S.; BECVAR, D. Group work. Londres: Love Publishing Company, 1997. 163p.        [ Links ]

GUANAES, C. A construção da mudança em terapia de grupo. São Paulo: Vetor, 2006. 287p.        [ Links ]

ANDERSEN, T. Processos reflexivos. Rio de Janeiro: Instituto NOOS / ITF, 1999. 149p.        [ Links ]

ANDERSON, H. Conversation, language and possibilities: a postmodern approach to therapy. New York: Basic Books, 1997. 308p.        [ Links ]

ANDERSON, H.; GOOLISHIAN, H. O cliente é o especialista: a abordagem terapêutica do não saber. In: MCNAMEE, S.; GERGEN, K. J. (Orgs). A terapia como construção social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. cap. 2, p. 34-50.        [ Links ]

GERGEN, K. J. Realities and relationships. Cambridge: Harvard University Press, 1997. 356p.        [ Links ]

GERGEN, K. J. An invitation to social construction. 1999. Londres: Sage, 1999. 248 p.        [ Links ]

GRANDESSO, M. Sobre a reconstrução do significado. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. 422 p.        [ Links ]

MCNAMEE, S.; GERGEN, K. J. (Orgs.). A terapia como construção social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. 236p.        [ Links ]

RASERA, E. F. Grupo como construção social: aproximações entre o construcionismo social e a terapia de grupo. 188 f. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2004.        [ Links ]

RASERA, E. F.; JAPUR, M. Contribuições do pensamento construcionista para o estudo da prática grupal. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 201-209, 2001.        [ Links ]

RASERA, E. F.; JAPUR, M. Desafios da aproximação do construcionismo social ao campo da psicoterapia. Estudos de Psicologia, Natal, v. 9, n. 3, p. 431-439, 2004.        [ Links ]

SHOTTER, J. Conversational realities. Londres: SAGE, 1993. 201 p.        [ Links ]

SPINK, M. J. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentido no cotidiano. São Paulo: Cortez, 1999. 296 p.        [ Links ]

WHITE, M.; EPSTON, D. Medios narrativos para fines terapéuticos. Buenos Aires: Paidós, 1990. 222 p.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Emerson Fernando Rasera
E-mail: emersonrasera@gmail.com

Recebido em 15/02/06.
1ª Revisão em 07/04/06.
Aceite Final em 22/04/06.

 

 

1 Psicólogo, doutor em Psicologia, docente do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
2 Alunas do curso de graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
3 A concepção de processos reflexivos, tal como definida por este autor, está referida aos desenvolvimentos construcionistas e pós-modernos em psicoterapia, não guardando semelhanças com as propostas de grupos reflexivos descritas na literatura psicanalítica sobre grupos.