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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP v.8 n.2 Ribeirão Preto dez. 2007

 

ARTIGOS

 

Integrando farmacoterapia à psicoterapia e a medidas gerais no tratamento dos quadros ansioso-depressivos

 

Integrating pharmacotherapy to psychotherapy and general care in the treatment of anxious-depressive disorders

 

Integracíon de la farmacoterapia a la psicoterapia y otras medidas generales em el tratamiento de disturbios ansioso-depressivos

 

 

Breno Serson 1

Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Busca-se mostrar que quadros ansioso-depressivos têm o melhor tratamento possível quando se potencializam mutuamente as seguintes modalidades terapêuticas: farmacoterapia, psicoterapia e medidas gerais de promoção e harmonização da saúde física e mental, em proporções adequadas às singularidades de cada caso clínico.

Palavras-chave: Ansiedade; Depressão; Farmacoterapia; Psicoterapia.


ABSTRACT

We attempt to demonstrate that anxious-depressive disorders get the best possible treatment when pharmacotherapy, psychotherapy and general care measures mutually augment their effects, in individually adapted proportions.

Keywords: Anxiety; Depression; Pharmacotherapy; Psychotherapy.


RESUMEN

El objetivo de este trabajo es mostrar que los disturbios ansiosos y depresivos reciben el mejor tratamiento cuando hacemos una potenciación mutua en los modos terapéuticas farmacoterápicos, psicoterápicas y medidas generales de promoción de salud física y mental, en proporciones adecuadas a las singularidades de cada caso clínico.

Palabras clave: Ansiedad; Depresión; Farmacoterapia; Psicoterapia.


 

 

INTRODUÇÃO: O TRIPÉ

Ao longo de anos de clínica em psiquiatria, tratando majoritariamente de depressões, fobias, ansiedades mais e menos somatizadas e também pânicas, além de quadros com componentes compulsivos, aditivos e obsessivos, maturei junto aos pacientes um ideal de tratamento constituído por um “tripé” de medidas terapêuticas. A idéia do tripé é que os quadros clínicos descritos acima &– que eu agrupo sob o nome de quadros ansioso-depressivos &– têm o melhor tratamento possível quando se apóiam sobre três pés ou pilares: (1) médico-farmacológico, (2) psicoterápico e (3) medidas gerais de promoção e harmonização da saúde física e mental.

Nem todos os pacientes necessitam ou se dispõem a apoiar o tratamento sobre estes três pilares ou vertentes. Por vezes, só psicoterapia ou só medicação é prescrita. Na média das consultas pouco se fala sobre “medidas gerais”. Neste artigo busco demonstrar o benefício de apoiar, na medida do possível, o tratamento sobre um tripé de medidas.

Medidas gerais de promoção e harmonização da saúde psicofísica incluem mudanças de estilo de vida não suscitadas por cuidado médico ou psicoterápico no senso estrito. Atividade física &– ao menos saída de sedentarismos maciços &– deve ser sistematicamente prescrita. Prospectam-se as possibilidades de medidas de harmonização, tais como yoga, artes marciais ou meditação. Correção de biorritmos e “biocargas” excessivas ou faltantes, medidas dietéticas e de repouso/atividade, complementam recomendações de mero bom senso médico tradicional (redução de estresses evitáveis, férias, atividades criativas, socialização, revisão do uso de medicamentos e substâncias, entre outras). As medidas gerais desempenham um papel complementar ou multiplicador da farmacoterapia e psicoterapia; podem mesmo agir como medida única nos casos especialmente brandos.

Todavia, seja em função da demanda dos pacientes, do pouco tempo disponível ou da super-especialização dos profissionais envolvidos, como psicofarmacologista, psicólogo, acupunturista, é comum apoiar o tratamento em apenas um “pilar” ou modalidade terapêutica, por exemplo, antidepressivos ou psicoterapia ou acupuntura. Em muitos casos, o tratamento melhora visivelmente com dois apoios, como medicação e atividade física bem dosada; psicoterapia e acupuntura.

A metáfora do melhor tratamento enquanto tripé de modalidades terapêuticas, em proporções adequadas e/ou possíveis a cada paciente acabou se condensando em um gesto com três dedos na escrivaninha do consultório, fincados um a um. Acredito, assim, propor aos pacientes o conceito de melhor tratamento possível, nos limites da vida paulistana e do que se pode explanar ou debater em uma ou duas consultas, partindo-se de uma plêiade variável de desinformação e preconceito.

A idéia do tripé justifica-se pela estabilidade do bem-estar assegurado ao paciente em longo prazo, bem como pelo ideal ético da desmedicalização e descronificação possível, isto é, passar a cuidar-se para não ter que tratar-se, minimizando-se reagudizações, recaídas de dependências e crises psicológicas. Creio que esta concepção preventivista tem grande afinidade com o regime de vida harmonizador proposto pela antiga medicina hipocrática (JAEGER, 2003, p. 1001-1059).

O “pilar” inicial é o cuidado médico. Compreende as consultas médicas, com seu imperativo de estabelecer ou refinar um diagnóstico multiaxial (psiquiátrico, psicológico-existencial, de personalidade, de saúde geral, entre outros), de iniciar ou melhorar uma relação médico-paciente (vínculo emocional), capaz de fazer com que as orientações do médico se transformem em ações terapêuticas conduzidas pelo paciente, em seu pleno livre-arbítrio e autonomia.

O pilar médico converge para o estabelecimento de uma conduta clínica inicial: exames complementares, encaminhamentos eletivos ou de urgência, medicação, orientações a respeito do que fazer e não fazer, reasseguramentos prognósticos e quanto ao vínculo, orientações à família ou círculo próximo ao paciente.

Tal pilar médico cria condições para tratar e, se possível, desmedicalizar o paciente em uma escala de vários meses, fincando-se neste tempo os pilares da psicoterapia (escala de anos) e das medidas gerais. Estas têm freqüentemente proposta de duração indefinida, na medida em que visam desfavorecer condições de recorrências ansioso-depressivas.

 

1- ANTIDEPRESSIVOS

Quadros ansioso-depressivos, apesar da sua heterogeneidade, tendem a responder notavelmente ao tratamento farmacológico com medicamentos ainda hoje chamados “antidepressivos”. A heterogeneidade tratada acaba por criar uma categoria nosográfica, com base na responsividade farmacológica (COSER, 2003, p. 43-59), conforme discutiremos a seguir.

Outros medicamentos &– neurolépticos, ansiolíticos, estabilizadores do humor &– podem ser associados aos antidepressivos quando indicado, cuidando-se para não se cair no exagero de medicar sintomas ao invés de pacientes e buscando uma perspectiva crítica diante de modismos “científicos” em torno do diagnóstico de “transtornos” e comorbidades (bipolaridades, hiperatividades...) com a banalização do uso de anfetamínicos, neurolépticos e anticonvulsivantes.

O diagnóstico de quadros depressivos e ansiosos cada vez mais se faz presente nos atendimentos psiquiátricos e de clínica geral, recebendo nomes tais como TOC, depressão, “estresse”, pânico, fobias. Pari passo, a prescrição de medicamentos psiquiátricos por psiquiatras e não psiquiatras, sobretudo antidepressivos, como terapêutica por vezes única e acrítica, generaliza-se e banaliza-se a olhos vistos.

Há razões claras: os novos antidepressivos são muito eficazes em diversas condições clínicas envolvendo ansiedade e depressão; suas avaliações de risco-benefício são muito favoráveis, sobretudo do ponto de vista cardiológico e de problemas de dependência e superdosagem.

Os novos antidepressivos são em geral seguros e bem tolerados, tendendo a determinar menos efeitos adversos, mesmo em longo prazo, do que os medicamentos que se conheciam até os anos 1990, como já estabeleceu enorme experiência clínica mundial.

Suas contra-indicações relativas e problemas têm sido recentemente valorizados, embora sigam “propagandeados” aos médicos e pacientes por uma indústria bilionária, uma brain pharma florescente e de ética questionável. Como já aconteceu com calmantes dos anos 60, como Lexotan ou Dalmadorm, eles também têm sido propagandeados e receitados crescentemente por não psiquiatras, por vezes com riscos sérios, por não avaliarem sistematicamente riscos de suicídio, uso de outras substâncias psicotrópicas e/ou não firmarem diagnóstico psiquiátrico preciso.

Os não especialistas seguem facilmente propagandas como “levante a moral do seu paciente” ou “dose fixa e igual desde o início, fluoxetina X, 1 cp. de 20 mg/dia” e incorrem também em insucessos por imprecisão diagnóstica e má escolha dos fármacos. Ocorrem abandonos do tratamento quando não se monitora o paciente a fim de titular doses ao longo do tempo, com base na variação dos efeitos adversos e terapêuticos. Observam-se freqüentemente sub-tratamentos por não se elevarem adequadamente doses ou potencializar o antidepressivo inicialmente prescrito, quando necessário.

Mas mesmo nas mãos dos psiquiatras, o antidepressivo prescrito sem escuta, diálogo e conseqüente obtenção do efeito pharmakon (SERSON, 2007) acaba por resultar em mais insucessos, efeitos colaterais e sub-resultados do que poderíamos supor a priori.

Assim, o perfil risco/benefício, tão favorável aos antidepressivos modernos, não se traduz nas melhoras e evoluções favoráveis que se poderiam esperar através do uso destes novos medicamentos na vida real. Isto se verifica sobremaneira:

(i) Quando são o único tratamento prescrito,

(ii) quando o diálogo médico-paciente é reduzido ou quase nulo, mesmo ao longo dos muitos meses de tratamento,

(iii) quando não são gradualmente introduzidos, titulados à dose adequada e retirados, nos tempos certos individualizados e contingentes à vida real dos pacientes, que devem assim ser minimamente ouvidos.

(iv) quando são avaliados em longo prazo e do ponto de vista de muitos pacientes sem outras medidas de tratamento; desiludidos, estes acabam abandonar o tratamento com as “pílulas da felicidade” do momento (como o Prozac nos anos 1990, ou o Valium nos anos 1960).

Todavia, a questão vai mais além dos tratamentos incorretos e aqueles sem a devida orientação do paciente. Mesmo com o correto manejo farmacológico, obtêm-se por vezes sucessos terapêuticos pífios ou o abandono precoce, melhoras sub-ótimas (não se obtendo a restitutio ad integrum que é possível em geral em muitos quadros ansioso-depressivos).

Não dispomos ainda de avaliações objetivas a priori (exames, perfis neuroquímicos e genéticos) para escolher fármacos, doses, potencializações adequadas. Mesmo o melhor empirismo da ars medica pode encontrar dificuldade no acerto do melhor tratamento de um dado paciente. Com freqüência fica a pergunta: se o grau de restituição de funcionamento pré-mórbido foi o máximo e se o perfil de efeitos colaterais seria mais favorável com outro(s) fármaco(s) e doses?

Efeitos terapêuticos e adversos podem sentidos como intoleráveis, sobretudo, na psiquiatria hoje em voga, que tende a multiplicar diagnósticos e, assim, conduz à polifarmácia, comprometendo percepções de interações, melhoras, pioras e recidivas, por parte dos pacientes e dos médicos.

As taxas de resposta a antidepressivo apresentadas nas estatísticas da psiquiatria clínica americana atual (60-70%), por questionáveis que sejam os critérios, contrastam com os bons “80-90%” anedóticos que acredito serem alcançados em tratamentos no espírito do “tripé”.

Isto corresponde a integrar (i) farmacoterapia crítica e dinamicamente conduzida, variando doses e fármacos quando necessário (ii) psicoterapia ainda que breve ou muito restrita e (iii) medidas psicopedagógicas individualizáveis de caráter geral, buscando a promoção da saúde mental, algo como seis a 10 horas diante do paciente, ao longo de um tratamento típico de um ano a um ano e meio.

 

2. PSICOTERAPIA

Ainda que o paciente não queira ou possa iniciar uma psicoterapia formal, que é freqüentemente o caso em quadros ansioso-depressivos, este deve receber uma abordagem psicoterápica mínima. Isto compreende ter seus preconceitos desfeitos ao ser sensibilizado para a importância deste “pilar” terapêutico, que tem menos urgência de ser instituído, mas que é o que mais assegura uma mudança estrutural. Modificando a maneira do paciente de interagir com o futuro, objetiva-se a melhor estabilidade de bem-estar ao longo da vida, no melhor estilo da medicina preventiva.

Psicoterapia é em geral indicada nos quadros ansioso-depressivos e como sugerem curiosamente alguns estudos, seu resultado dependeria mais do preparo humano do terapeuta e de condições de trabalho do que estritamente da “linha” teórico-clínica seguida (DUBOVSKY; DUBOVSKY, 2004, p. 233-249, 253-280). Não obstante, há hoje uma ênfase, a meu ver errônea, no mero escopo psicoeducativo e/ou de mera abolição de sintomas proposto pelas linhas cognitivo-comportamentais, que não resultariam em mudanças duráveis de bem-estar propostas.

Tais linhas, adotadas pelo discurso psiquiátrico de estilo americano, chegam a arrogar-se exclusividade terapêutica, ao proclamarem-se as únicas “validadas” por estudos científicos, com freqüência de curta duração. Psiquiatria malabarista esta, que oscila em poucos anos de um psicanalismo mal lido em Winnicott sobre a falta de holding da mãe à completa mesmerização por estatísticas e pelo design de studies e scales no estilo DSM.

Neste contexto, abordagens tradicionais, como a psicanálise ou da análise existencial, não são atualmente valorizadas. Não cabem na métrica do publicável hoje nos journals, dado seu prazo aberto e sua casuística única e pouco reprodutível em padrões tido como “científicos”. E assim perdemos muito, já que os quadros clínicos ansioso-depressivos superpõem-se ou imbricam-se, em algum grau, com personalidades ansioso-depressivas e estilos pessoais antes chamados neuróticos e com o que é propriamente humano e singular em cada paciente.

Na minha percepção da clínica cotidiana, as abordagens psicodinâmicas constituem as modalidades de tratamento mais aptas a obter mudanças mais profundas e permanentes. Não importa a meu ver discutir se psicanálise ou análise existencial constituem ciência validável, na esteira de K. Popper (SAPORITI, 1994). Sendo a clínica soberana, os tratamentos psicológicos psicodinâmicos mostram seus resultados com ou sem studies e estatísticas nos padrões hoje em voga e acabam por conservar sua importância no tratamento a longo prazo dos quadros ansioso-depressivos.

Isto é reconhecido por biologicistas mais perspicazes, que chegam a propor uma interface clínica entre psicanálise e neurociências, antecipando um inevitável diálogo, de conseqüências imprevisíveis (KANDEL, 1999, ANDRADE, 2003).

 

3. MEDIDAS GERAIS DE PROMOÇÃO DA SAÚDE PSICO-FÍSICA

O “pilar”, que chamei de “medidas gerais”, compreende todo tipo de medida não estritamente médica ou psicoterápica, desde que beneficie o paciente e que este deve praticar e pôr em prática; algo que não se recebe em pílulas nem através da reflexão em sofás e divãs.

Como já esboçado acima, as medidas gerais abarcam orientações sobre descanso e atividade física adequadas, de benefício ubíqüo, bem como avaliação e orientação nutricional, incluindo inventários de dieta atual, uso de alimentos ricos em ácidos graxos essenciais e vitaminas, precursores de neurotransmissores.

Busca-se avaliação de rotinas estressantes e desestressantes e suas mudanças possíveis. Deve-se pesquisar sobre medicação e automedicação (analgésicos, antiinflamatórios, “relaxantes musculares”, laxantes, descongestionantes nasais), uso de drogas psicoativas, lícitas ou ilícitas, incluindo cafeína, álcool, tabaco, fórmulas para emagrecer, soníferos, “suplementos nutricionais”, fitoterápicos. Excessos contemporâneos, de exposição à TV, fones, jogos, filmes ou mundos virtuais podem ser sintomas ou fatores evidentes de piora, ainda que pouco diagnosticados ou valorizados.

O viés médico das medidas gerais se confunde com o pilar do cuidado médico que almeja enxergar holisticamente a pessoa que é o paciente. Isto inclui reconhecer e tratar, como um antigo médico de família, todas as condições de saúde desfavoráveis, de micoses a verminoses, do mp3 alto demais do adolescente à falta de aparelho auditivo no idoso, de hipotireoidismos subclínicos a hipertensões arteriais evidentes.

Temos também que considerar a dor nos joelhos que supostamente impediria a atividade física do sedentário, as cefaléias, infecções e alergias de repetição, por vezes complicadas por medicamentos. Contraceptivos, “energéticos” de academia, agentes redutores do colesterol, anti-hipertensivos e corticóides podem, por exemplo, induzir ou piorar depressões.

Em função destes diagnósticos parciais e simultaneamente totalizantes, cuja elaboração demanda mais tempo que uma consulta padrão na rede pública ou conveniada, prescreve-se o tratamento assentado no mais bem estruturado tripé cabível àquele paciente.

Na explicação do tratamento emprega-se idealmente mais tempo que o “padrão”, tempo que se reverte multiplicado para o paciente, graças à obtenção do efeito pharmakon (SERSON, 2007) e à elaboração de freqüentes fantasias e temores que prejudicam a boa adesão ao tratamento com psicofármacos.

Alguns exemplos destas fantasias são a de ficar dopado, com emoções anestesiadas, a de acabar sob controle sutil de outros, a de viver sob alteração química do eu ou aquela da dependência latu sensu, ainda que sofrendo de efeitos colaterais intoleráveis.

Neste complexo contexto, vejo o psiquiatra atual como este anfíbio médico, que é como o antigo clínico que conhecia a vida do paciente e sabia medicar bem, farmacólogo, psicólogo e que ainda propõe tratamentos não clínico-cirúrgicos convencionais, leigos aos olhos da medicina, tais como psicanálise, ioga ou Alcoólicos Anônimos.

Em qualquer caso, tal psiquiatra permanece informado e balizado pelos raciocínios clínicos e bases científicas da Clínica Médica e da Psiquiatria Geral, sempre buscando a melhor ética e isenção, dada a peculiar ascendência e influência do psiquiatra sobre, digamos, a alma do paciente.

O conjunto de medidas terapêuticas proposto pode ultrapassar a atuação do psiquiatra individual e não é sem razão que hoje é consensual a idéia que a atenção à saúde mental deve ser dada por uma equipe multidisciplinar. Assim, como parte das medidas gerais, deve-se saber sem soberba encaminhar o paciente a profissionais médicos e leigos. Paralelamente às condutas médicas ou psicoterapêuticas pertinentes, o psiquiatra prescreve, quando útil, abordagens não-médicas que são terapêuticas.

Podem ser grupos de mútua ajuda como os Alcoólicos Anônimos (AA), Narcóticos Anônimos (NA), Jogadores Anônimos e assemelhados. Portadores de doenças como depressão bipolar clássica, Alzheimer e Parkinson, beneficiam-se de sites sérios de informação e partilha de experiências. Pacientes outros se beneficiam muitíssimo do legado da antiqüíssima sabedoria oriental, sobretudo da acupuntura e da medicina chinesa e das técnicas de harmonização corpo-mente (ioga, tai-chi-chuan, meditação, artes marciais, práticas zen, e tantas outras).

Nos moldes de Oliver Sacks, que muito me inspira em sua clínica, fazer com que alguém volte a tocar o piano ou o violão pode significar uma volta à vida, mesmo depois de um AVC ou uma grave dependência. Uma associação de bairro ou um clube pode fazer reviver um idoso. Cuidar e conviver com animais pode ser surpreendentemente terapêutico (SERVAN-SCHREIBER, 2004, p. 187-192).

O médico atual não deve se abster ou envergonhar de “prescrever” tais gêneros de medidas. Cada medida do tripé terapêutico é mais que aditiva ou somatória, pois acaba por potencializar o tratamento convencional para os quadros ansiosos e depressivos e seus correlatos somáticos (quadros de gastrites, dores lombares, contraturas, sintomas vertiginosos e intestinais, cefaléias, certos zumbidos, insônias, faltas de ar, colapsos, entre outros).

Busca-se idealmente encontrar junto ao paciente toda uma dieta de vida, não só dieta alimentar como aquela hipocrática, a isomoiria grega dos regimes físicos e mentais, dos hábitos e do que é “adequado a cada idade e às capacidades que lhe são próprias” (JAEGER, 2003, p. 1006).

Isto pode traduzir-se também em mudanças nas relações trabalho/descanso; ganho/consumo; só/casal/amigos/família/outros. Pode ser mudança física para residências menos estressantes e para mais vida fora de eventos e shoppings, mas pode ser, inversamente, a mudança do octogenário demenciado da casa de bairro para o edifício estruturado e equipado, conveniado a um hospital. Para alguns as mudanças incluem mais (ou até menos) vida espiritual, religiosa ou mesmo esotérica, ou ainda buscas filosóficas de sentido (MARINOFF, 2005, p. 33-44).

Podemos recordar o bom senso dos médicos antigos a respeito de hobbies tais como a música, culinária, leituras, coleções, a manutenção de objetos e máquinas, o ikebana, os jogos virtuais e não virtuais, o ubíqüo cultivar de plantas e jardins, como recomendava Voltaire, ou o convívio com animais. Início ou retomada de atividades de criação como música, pintura, escrita ou teatro ganham o viés terapêutico da sublimação da qual já falava Freud enquanto “sintoma” social e emocionalmente bem canalizado. O que importa em suma, a decisiva pedra de toque, é que seja algo “psicofavorável” e factível.

Pragmaticamente, a prescrição de medidas gerais deve beneficiar o paciente enquanto mix individualizado para aquele indivíduo em seus desejos e potencialidades. Deve-se, por exemplo, atentar à ressocialização após depressões e surtos psicóticos francos, favorecer a sublimação obtida pelos atos de criação artística, ainda que diletante ou amadora. Insistir na ioga aos “paniquentos” que curto-circuitam a respiração. Incentivar as coleções ou hobbies detalhistas nos obsessivo-compulsivos como remodelagem de sintomas (solução de compromisso) mais socializáveis e geradores de auto-estima e conhecimento do que o adoecer atual e o gozo, no sentido dado por Lacan, do paciente em seus sintomas atuais.

Vivendo o espírito da época atual que, como tendência geral, me parece remeter mais ao patogênico que ao libertário, busco contemplar as boas possibilidades da vida contemporânea. Evoluindo para uma influência inédita sobre a vida humana, o mundo midiático e a Internet já isolam e socializam o planeta em um ritmo vertiginoso, seja para quem circula em uma periferia cultural, numa insidiosa suburban life, em um suposto top fetichizado ou nas portas de clubs da moda.

A vida virtual pode divulgar e facilitar o contato humano em torno de interesses específicos, como música, encontros, hobbies, interesses técnicos, trabalho comunitário e voluntário, por exemplo. O médico pode usar bem sua retórica ao conseguir que o idoso com baixa mobilidade passe a redescobrir o mundo na rede ou que o jovem deprimido sem perspectiva possa se ressocializar pesquisando e reencontrando gente no YouTube ou Orkut &– ou, inversamente, deixar enfim de ter que navegar 12 horas por dia na rede.

Em tese, um enorme conjunto de medidas gerais pode ser proposto, desde que se possa entender o “jeito de ser” do paciente. Minha posição pessoal acaba por privilegiar contrapesos à inflação dos simulacros pós-modernos, tais como tendenciosidades em informações e desinformações, propostas de consumo e “estilo” de um suposto cool, hiperfrívolo e cheio de “caretas”. Busco pensar contrapontos aos modelos de univocidades narcísicas, desamparos humanos enrustidos, bebedeiras pouco dionisíacas, doppings, shoppings e corpos modelados sem sentido.

A clínica se faz mais desafiadora pelas subjetividades permeadas por securas existenciais amargas, por acelerações inéditas e por valores em crise. Como no filme O céu que nos protege (The sheltering sky), de Bernardo Bertolucci, baseado no romance de Paul Bowles, chego à imagem desolada da desertificação do real proposta por Zizek (2003) e lembro do mundo antevisto na cultura do narcisismo (LASCH, 1979) e aquele descrito por Bauman (1998) em O mal-estar da pós-modernidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, V. M. Um diálogo entre psicanálise e neurociência: A “psicanálise maior” prevista por Freud torna-se realidade no século XXI como metapsicologia científica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. 207 p.

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 272 p.        [ Links ]

COSER, O. Depressão: clínica, crítica e ética. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. 170 p.        [ Links ]

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SERVAN-SCHREIBER, D. Curar: o estresse, a ansiedade e a depressão sem medicamento nem psicanálise. São Paulo: Sá Editora, 2004. 298 p.        [ Links ]

ZYZEK, S. Benvindo ao deserto do real! São Paulo: Boitempo, 2003. 194 p.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Breno Serson
E-mail: brenoserson@terra.com.br

Recebido em 04/09/07.
1ª Revisão em 19/11/07.
Aceite Final em 11/12/07.

 

 

1 Médico pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Especializado em Psiquiatria pelo Hospital das Clínicas da FMUSP. Doutor em Filosofia (EHESS, Paris) e pós-doutorado em Ciências Cognitivas (PUC-SP).