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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.9 no.1 Ribeirão Preto jun. 2008

 

ARTIGOS

 

“Beleza põe mesa?”: transtornos alimentares e grupo

 

Eating disorders and group

 

Trastornos alimentares y grupo

 

 

Elaine Cristina da Silva Gazignato I, 1; Fabio Scorsolini-Comin II, 2; Laura Vilela e Souza II, 3; Ana Lúcia Kazan III, 4; Manoel Antônio dos Santos II, 5

I Prefeitura Municipal do Guarujá
II Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - FFCLRP-USP
III Instituto de Ensino e Pesquisa em Administração – INEPAD

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar uma atualização da literatura acerca dos transtornos alimentares (TA) e refletir sobre a aplicabilidade da estratégia grupal no tratamento da anorexia nervosa (AN) e da bulimia nervosa (BN). Os estudos evidenciam que a psicoterapia de grupo oferece um contexto de apoio centrado nas questões que esses transtornos deflagram, como as angústias, dúvidas e resistências em relação ao tratamento (psicoterapia, tratamento medicamentoso, rotina de consultas, exames e procedimentos, exposição à tecnologia médica e psicossocial), alterações no cotidiano, repercussões na vida familiar e no ambiente social. A situação grupal torna-se um espaço seguro para a expressão emocional e intensa troca de experiências, uma vez que favorece a produção coletiva de significados, que podem ser explorados e canalizados na busca de soluções para os problemas comuns que afetam o cotidiano de todos. Nesse contexto, o artigo destaca os fatores terapêuticos que constituem uma das abordagens que permite analisar o potencial transformador do grupo. A identificação desses fatores, que correspondem a mecanismos promotores de mudança, autorrevelação e apoio no espaço grupal, favorece a compreensão dos TA na perspectiva do próprio paciente.

Palavras-chave: Anorexia; Bulimia; Transtornos alimentares; Grupo.


ABSTRACT

This paper presents a literature review on eating disorders (TA, in Portuguese), examining the effectiveness of group strategies in the treatment of nervous anorexia (AN, in Portuguese) and nervous bulimia (BN, in Portuguese). Previous studies demonstrated that group therapy offers patients a supporting context for the treatment of disturbs caused by eating disorders, such as anguish, self-doubt, life changes with family and social impact, and even resistance to treatments, for instance, psychotherapy, medication, consultation routines, exams, procedures, medical technology and psychosocial interventions. Therapeutic groups offer patients a safe haven for emotional expression and intense experience exchange, as it favors the collective production of meanings that can be channeled into solving group members’ common problems. This paper identifies the factors in therapeutic groups that enhance these groups’ potential transformative role. Identifying groups’ mechanisms conducive to change, self-revelation, and support, helps patients themselves to better understand their TA.

Keywords: Anorexia; Bulimia; Eating disorders; Group.


RESUMEN

El objetivo de este trabajo es presentar una actualización de la literatura sobre los trastornos alimentares (TA) e reflejar sobre la aplicación de la estrategia grupal no tratamiento de la anorexia nerviosa (AN) y de la bulimia nerviosa (BN). Los estudios muestran que la sicoterapia de grupo ofrece un contexto de amparo centrado en las cuestiones que eses trastornos deflagran, como angustias, dudas y resistencia en relación a lo tratamiento (sicoterapia, tratamiento medicamentoso, rutina de consultas, examines y procedimientos, exposición a la tecnología médica y sicosocial), alteración en el cotidiano, repercusiones en la vida familiar y en el ambiente social. La situación grupal tornase un espacio seguro para la expresión emocional y el intenso intercambio de experiencias, una vez que favorece la producción colectiva de significados, que pueden ser explorados y canalizados en la busca de soluciones para los problemas comunes que afectan el cotidiano de todos. En ese contexto, lo articulo destaca aspectos terapéuticos, que constituyen una das abordajes que permiten analizar el potencial transformador del grupo. La identificación de eses factores, que corresponden a mecanismos promotores de cambio, auto-revelación y apoyo en el espacio grupal, favorece la comprensión de los TA en la perspectiva del proprio paciente.

Palabras clave: Anorexia; Bulimia; Trastornos alimentares; Grupo.


 

 

Os transtornos alimentares (TA), que incluem a anorexia nervosa (AN) e a bulimia nervosa (BN), são temas muito discutidos e pesquisados atualmente, principalmente pelo crescente número de adolescentes e jovens adultos que buscam atendimento em clínicas e serviços de saúde e pela importância dada pela mídia e pela cultura ocidental ao culto do corpo esbelto e magro, investido como padrão de beleza. Para se ter uma ideia da repercussão dessa temática não apenas no meio acadêmico, em uma busca no site de relacionamentos Orkut por meio das palavras “anorexia”, “bulimia” e “transtornos alimentares” no ano de 2005, encontramos cerca de 34 comunidades (AN=22; BN=11; TA=1). Em 2010, encontramos 697 comunidades (AN=501; BN=185; TA=11), ou seja, um aumento de 2050%. Utilizando o sistema Google de busca, o aumento de citações também foi expressivo: de 2.960.000 registros em 2005 para 28.980.000 em 2010.

Considerando o aumento do interesse e da visibilidade social que os TA lograram nos últimos anos, o presente artigo tem por objetivo apresentar uma atualização da literatura acerca dos TA, bem como refletir sobre a aplicabilidade da estratégia grupal em seu tratamento.

 

REVISITANDO A LITERATURA SOBRE OS TA

Na contemporaneidade, a relação com o próprio corpo é marcada pelo aumento da incidência de preocupações exageradas que incidem sobre sua forma, peso e desempenho. Os TA constituem a faceta mais dramática e mórbida dessa obsessão que afeta, de maneira mais evidente, as mulheres e a população adolescente. O aumento dos casos de TA deve-se, em parte, à ampliação dos estudos dedicados aos mesmos, que vêm possibilitando um maior reconhecimento de sua incidência na população (DUNKER; PHILIPPI, 2003; SICCHIERI et al., 2007; STROBER et al., 2000). Esses estudos buscaram delinear a etiologia da AN e BN, procurando identificar fatores de risco para o seu aparecimento (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (APA), 2006).

Os principais tipos de TA são a AN e a BN. Na perspectiva do discurso médico, são considerados quadros psicopatológicos e não apenas exagero de valores sociais dominantes, que permeiam as ações e adições contemporâneas. Correspondem a perturbações graves e persistentes da conduta alimentar, cuja prevalência tem crescido nas últimas décadas, atingindo, principalmente, adolescentes e jovens mulheres. Nos últimos anos tem se observado o aumento do número de homens acometidos.

Muitos estudos buscaram delinear a etiologia da AN, procurando identificar fatores de risco para o seu aparecimento. A pressão sociocultural para ser magro é referida por vários autores como fator de risco, constituindo um importante preditor do transtorno (POLIVY; HERMAN, 2002; STICE, 1999; WEINBERG; CORDÁS, 2006). Incluem-se nesse cenário, principalmente, as pressões exercidas pela família, grupos de pares e a mídia.

A concepção psicológica da AN permanece como foco de interesse das pesquisas, que buscam compreender a dinâmica de personalidade específica dos pacientes que desenvolvem um TA. Segundo Stice (1999), a valorização extrema do ideal de magreza pode favorecer sentimentos de depressão, raiva, culpa, estresse e insegurança nas pessoas mais suscetíveis e inseguras. Algumas características apontadas como próprias dos TA são: disfunção da percepção corporal, preocupação excessiva com a aprovação social, tentativa de corresponder com as expectativas dos pais, sentimento de vazio e sintomas depressivos (REGO, 2004).

Segundo o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders-IV Revised (APA, 2006) os critérios diagnósticos para a AN são: recusa na manutenção do peso corporal saudável; medo intenso do ganho de peso ou de se tornar obeso, ainda que esteja abaixo do peso; distúrbio na maneira de perceber a forma física e peso (distorção da imagem corporal) ou negação da seriedade da atual perda de peso; em mulheres considera-se a presença de amenorreia (ausência de menstruação) como um dos critérios diagnósticos.

A AN é considerada uma síndrome psicossomática. Segundo Bruch (1973), é um transtorno caracterizado por limitações dietéticas autoimpostas, com um padrão alimentar bizarro e acentuada perda de peso induzida e mantida pelo paciente, associada a um temor intenso de engordar. De acordo com Crisp (1967), a AN constitui uma regressão psicobiológica, em que a fobia em relação ao peso traduziria a dificuldade em aceitar as transformações induzidas pela puberdade, com a subsequente passagem para a vida adulta. Esse distúrbio parece estabelecer estreita relação com múltiplas causas de natureza biológica, psicológica e sociocultural.

Existem diversas hipóteses que, historicamente, foram relacionadas à etiologia da AN, dentre elas destaca-se a hipótese psicodinâmica (medo da gravidez oral) e a hipótese orgânica (disfunção hipotalâmica, defeito no feedback negativo dos receptores dopaminérgicos centrais). Existe ainda a hipótese de que este TA corresponde a uma apresentação atípica de um transtorno afetivo ou de um transtorno obsessivo-compulsivo (BRUCH, 1973). Esta autora considera que a AN ocorre, predominantemente, em famílias de alto nível social, que apresentam padrões inadequados de relacionamento interpessoal, caracterizados por aparente harmonia e graves conflitos subjacentes. Os objetivos dessas famílias, supostamente elevados, valorizam mais o sucesso e o jogo de aparências do que a realização pessoal de seus membros.

Embora fatores intrapsíquicos e biológicos não devam ser minimizados na etiologia e patogênese dos TA, tais fatores formam claramente uma interface com um período sociocultural específico da civilização ocidental, que contribui para produzir uma síndrome que reflete a cultura (GABBARD, 1998). Associada aos fatores socioculturais, leva-se em conta a existência de uma forte pressão social no sentido do emagrecimento, com a imposição de padrões culturais de beleza que valorizam cada vez mais corpos delgados e esqueléticos.

 

UMA VISÃO PÓS-MODERNA SOBRE OS TA

Em um paradigma pós-moderno de investigação, assume-se que as descrições sobre o mundo e as pessoas são construções sociais, inclusive as descrições científicas, contrapondo-se à visão moderna de ciência, na qual existe uma realidade a ser descoberta por meio da análise objetiva. Portanto, os modelos de explicação teórica da AN não refletem, necessariamente, a “verdade” sobre esse fenômeno, mas fazem parte do repertório de metáforas possíveis para sua descrição (SPEED, 1995). A postura ética e crítica que essa compreensão implica está no reconhecimento de que não existe uma verdade única e irrefutável a ser descoberta ou um ponto de vista que deva ser privilegiado para o entendimento do objeto de análise escolhido pelo investigador. Segundo Ibáñez (1994), as verdades são pautadas em critérios de coerência, utilidade, inteligibilidade e moralidade, e as crenças, que são geradas por meio de processos de comunicação, constroem a realidade e são sustentadas pelas interações sociais.

Segundo Hepworth (1999), a conceituação da AN como uma psicopatologia reproduz as ideias sociais dominantes encontradas no discurso científico e reguladas por meio da linguagem. Os discursos presentes sobre a AN posicionam as pessoas diagnosticadas com esse tipo de sofrimento de maneiras particulares e acabam naturalizando o fenômeno. Por exemplo, em um grupo de pacientes com AN, que será descrito no decorrer deste estudo, as marcas desses discursos e os efeitos de sua naturalização ficam fortemente estampados nas falas das participantes.

Hepworth (1999) defende a concepção de que o nascimento da medicina científica no século XIX, a relação entre a mulher e a psiquiatria, e as ideias sociopolíticas sobre a moralidade influenciam os discursos e sentidos produzidos sobre a AN enquanto categoria diagnóstica. Essa autora defende uma reinterpretação dos TA, a partir do reconhecimento de que alguns discursos são privilegiados para a explicação da AN, em detrimento de outros, o que torna imperioso desvendar as razões que levam à legitimação de determinados modos de ver e lidar com o problema. A autora afirma que sua intenção não é negar que exista uma forma de sofrimento relacionado à alimentação, ao peso e à forma corporal, mas que a categorização desse sofrimento como uma manifestação de um transtorno psicológico é contestável.

 

POTENCIALIDADES DO GRUPO COMO DISPOSITIVOS DE TRATAMENTO DOS TA

A literatura considera que o tratamento mais eficiente para os TA inclui psicoterapia associada à farmacoterapia. Os estudos têm mostrado que a psicoterapia ajuda a minimizar o sofrimento psicológico e a melhorar a qualidade de vida dos pacientes e seus familiares (SANTOS, 2006; STICE, 1999).

A psicoterapia é uma forma de tratamento, por meios psicológicos, de dificuldades de origem emocional. O instrumento do psicoterapeuta é a linguagem e o estabelecimento de uma relação com o paciente. O objetivo principal é eliminar, modificar ou retardar sintomas existentes, promovendo transformação psíquica, ou seja, desenvolvimento positivo da personalidade.

A psicoterapia de grupo oferece um contexto de apoio centrado nas questões que os TA deflagram, como as dúvidas e resistências em relação ao tratamento (psicoterapia, tratamento medicamentoso, rotina de consultas, exames e procedimentos, exposição à tecnologia médica e psicossocial), alterações no cotidiano, repercussões na vida familiar e no ambiente social, que despertam vivências de angústia. Nesse sentido, o enquadre grupal fornece um espaço seguro para a expressão emocional e trocas de experiências, uma vez que favorece a produção coletiva de significados, que podem ser explorados e canalizados na busca de soluções para os problemas comuns que afetam o cotidiano de todos.

A psicoterapia de grupo surgiu como uma alternativa viável para redução de custos, mas o critério econômico não é suficiente nem o mais relevante para justificar sua aplicação nos diferentes contextos em que ela pode ser desenvolvida. O mais importante é a possibilidade de potencializar a diversidade de vozes e perspectivas que ela estimula. O grupo proporciona o confrontamento de diferentes percepções e pontos de vista sobre um determinado tema, o que pode gerar reflexões múltiplas e, muitas vezes, divergentes, que se forem acolhidas e elaboradas, promovem o desenvolvimento de recursos, por parte dos participantes, para lidarem com as diferenças, de modo a desfrutarem de seu potencial transformador.

Os objetivos da intervenção em grupo, no cenário dos TA, são: promover melhor qualidade de vida, proporcionar a expressão de sentimentos relacionados ao transtorno e seu tratamento, reforçar a autoestima e uma autoimagem positiva, fortalecer a vinculação ao tratamento, estimular a recuperação física e emocional, incentivar a comunicação com a equipe de saúde. Além disso, outros objetivos visados são: adquirir novas habilidades de enfrentamento (manejo de ansiedades, formas de resolução de conflitos) que se refletem em situações cotidianas; incentivar a ajuda mútua por meio da partilha de problemas semelhantes, dentro do contexto grupal; auxiliar a pessoa acometida a lidar com o temor da dependência – a perda de autonomia e o medo do futuro (movimentos que vão ao sentido do crescimento); buscar desfechos mais satisfatórios para suas histórias de dor e sofrimento.

Os critérios de inclusão em psicoterapia de grupo, grosso modo, incluem: capacidade de executar a tarefa grupal, apresentar áreas problemáticas compatíveis com os objetivos do grupo e ter motivação para mudar. Entre os critérios de exclusão figuram: a incompatibilidade marcante com as normas do grupo para comportamento aceitável, incapacidade para tolerar situações grupais, incompatibilidade severa com um ou mais membros do grupo e tendência a assumir papel desviante.

No Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares, do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, serviço existente desde 1982, o modelo de tratamento privilegia a abordagem grupal. Os pacientes chegam, inicialmente, com a expectativa de que receberão atendimento médico. Essa percepção é favorecida pelo fato de o serviço estar localizado em uma instituição hospitalar e da problemática ser vinculada, no imaginário social, à noção de “doença”. No ambiente de sala de espera as pessoas sentam-se umas ao lado das outras e, espontaneamente, comentam o que estão vivendo. Desse modo, nasceu a ideia de formalizar e organizar esse espaço informal, explorando seu potencial terapêutico e colocando-se a serviço do tratamento. Nesse contexto de grupo o terapeuta assume uma postura ativa e privilegia alguns temas espontaneamente trazidos pelos pacientes, procurando com sua escuta atenta e empática dar voz a todos. Isso envolve estimular pessoas introvertidas a se manifestarem e conter os mais entusiasmados e falantes que tendem a monopolizar o grupo. Desse modo, o terapeuta busca equilibrar os pontos de vista, permitindo que a diversidade de visões e opiniões prevaleça.

Existem, basicamente, dois tipos de grupos (SANTOS, 2006):

a) Grupo Terapêutico: geralmente fechado, são os mesmos pacientes que participam por um determinado período, que pode ser breve ou de longa duração. O terapeuta é menos ativo, vai deixar surgir a transferência para que possa trabalhar. Portanto, essa estratégia exige um maior nível de tolerância à ansiedade. Os participantes podem ser agrupados por alguma característica uniformizadora, como faixa etária, sexo ou diagnóstico. De acordo com Santos (2006), o objetivo da estratégia grupal é justamente tirar proveito dessa situação de um certo nível de heterogeneidade na relativa homogeneidade. Explora-se o potencial terapêutico do encontro das diferenças individuais (pluralidade de experiências) em um contexto de relativa homogeneidade, garantida – mas só até certo ponto – pelo diagnóstico comum.

b) Grupo de Apoio: nesse modelo os participantes geralmente estão mais fragilizados. É necessário focalizar a intervenção, oferecer estrutura para que o grupo não se desintegre. O vínculo entre os pacientes é mais tênue, o que influencia a emergência de temas menos densos. A heterogeneidade (pacientes de várias idades, sexos, diferentes estágios de evolução da enfermidade, diferentes etapas do tratamento) é outra característica marcante desse tipo de grupo. Segundo Santos (2006), as estratégias grupais de apoio circunscrevem um espaço permissivo e seguro para a expressão emocional, bem como para a troca de experiências entre os membros do grupo, que compartilham situações vitais semelhantes decorrentes do enfrentamento de uma problemática semelhante. Por essa razão, os grupos costumam ser subdivididos por quadros clínicos (como no caso dos TA), de modo que a população beneficiada frequentemente é homogênea em relação ao critério diagnóstico, mas não necessariamente em termos de idade, sexo, nível educacional e outros atributos físicos, sociais ou culturais.

A possibilidade de encontro cria o espaço terapêutico, a partir do intercâmbio, que promove a ajuda mútua. A reunião proporciona a experiência empírica de uma situação análoga à vivência familiar, na qual há confrontação de semelhanças e diferenças convivendo no mesmo espaço. O intercâmbio de experiências entre pessoas que compartilham problemas semelhantes e que têm os mesmos objetivos possibilita discutir situações vivenciadas com o adoecimento e o tratamento. Com a ajuda dos terapeutas, os participantes podem se permitir refletir sobre suas emoções e condutas, a partir de um novo e diferente vértice, criando, desse modo, uma maior possibilidade de mudança.

Santos (2006) afirma que as estratégias de apoio mais utilizadas são: a) Clarificação: visa a facilitar o reconhecimento dos recursos de enfrentamento que cada paciente utiliza para fazer frente à crise vital provocada pela enfermidade ou pelas sequelas eventualmente produzidas por sua cronicidade; b) Confrontação: o grupo gera a necessidade de que os participantes coloquem à prova a sua subjetividade e confrontem o que sentem com os dados objetivos provenientes da realidade biológica, psicológica e social; c) Orientação: tem por objetivo prover apoio emocional para um manejo mais adequado dos conflitos.

Além disso, existe o grupo psicoterápico para familiares dos pacientes, especialmente pais e companheiros. Esse grupo visa a discussão dos problemas deflagrados pelo convívio com o familiar portador de TA. O tratamento só é completo quando propõe a integração da família em um programa terapêutico de assistência integral. Os temas mais frequentes nesse contexto concernem aos riscos de vida que rondam a pessoa acometida, a necessidade de elaborar estratégias específicas para lidar com perdas, tais como o comprometimento da capacidade funcional e da competência profissional do paciente, e os riscos à saúde mental do próprio cuidador, com implicações diretas em sua qualidade de vida. O familiar aprende táticas de manejo dos déficits e sintomas do paciente.

Dentre as abordagens teóricas utilizadas para se compreender o grupo, destaca-se o enfoque dos fatores terapêuticos. Segundo Bloch et al. (1979), fatores terapêuticos são “elementos da terapia de grupo que contribuem para melhorar a condição de um paciente e que podem ser decorrentes das ações do terapeuta do grupo, dos outros membros do grupo e do próprio paciente” (p. 227). Nesse sentido, podemos dizer que fator terapêutico é um mediador de mudança, isto é, de transformação psíquica.

Yalom (1970) elenca 11 tipos de fatores terapêuticos: Instilação de esperança; Universalidade; Oferecimento de informações; Altruísmo; Desenvolvimento de técnicas de socialização; Comportamento imitativo; Catarse; Reedição corretiva do grupo familiar primário; Fatores existenciais; Coesão do grupo; e Aprendizagem interpessoal. Já para Bloch (1986) e Mackenzie (1997) existem 10 tipos de fatores terapêuticos: Universalidade; Instilação de esperança; Altruísmo; Aceitação (Coesão); Autorrevelação; Catarse; Aconselhamento; Aprendizado por intermédio do outro; Aprendizado interpessoal; Autocompreensão (insight). Estes fatores exercem impacto nos participantes e contribuem para sua melhora, ou seja, promovem a redução de sintomas e mudanças em certos padrões de comportamento que obstruem o processo de crescimento pessoal.

Esses fatores podem ser agrupados e definidos da seguinte maneira:

a) Fatores de apoio:

a.1) Universalidade: é a tomada de consciência, pelo paciente, de que há outros que vivem situação semelhante a que ele está vivendo, problemas e conflitos análogos aos seus. Essa descoberta provoca sensação de alívio, melhora da autoestima e redução de estigma social.

a.2) Instilação de esperança: é o despertar do senso de otimismo e confiança quanto ao seu potencial e ao seu futuro. Ocorre quando o paciente tem a sensação de que existe alguma possibilidade de alívio e melhora para seus problemas. Isso reforça a participação na psicoterapia e reduz o risco de interrupção no tratamento, reduzindo a ansiedade e auxiliando-o a enfrentar suas dificuldades.

a.3) Altruísmo: é o comportamento de oferecer apoio, confiança, sugestões e esclarecimentos. Esse processo de auxílio recíproco beneficia e melhora a autoestima de ambas as partes, ou seja, de quem oferece e de quem recebe ajuda.

a.4) Aceitação/Coesão: é sentir-se integrado ao grupo em uma base de confiança, respeito e valorização, o que ajuda a desenvolver o senso de esperança, segurança íntima e melhor autoestima. A coesão do grupo é muito importante para que os outros aspectos terapêuticos tenham efeito.

b) Fator de autorrevelação:

b.1) Autorrevelação: o paciente revela informações pessoais e íntimas, de maneira aberta e franca, o que lhe permite aprofundar ainda mais a descoberta e compreensão de sua pessoa, estimulando os outros participantes a fazerem o mesmo. Isso consolida a confiança no grupo e o compromisso no processo terapêutico.

c) Fatores de aprendizado:

c.1) Aconselhamento: os conselhos do grupo servem para cada um avaliar o que está sendo discutido e proposto, tanto para aquele que os oferece, quanto para os integrantes que os recebem.

c.2) Aprendizado por intermédio do outro: o paciente aprende sobre sua pessoa ao observar e analisar um conjunto de problemas ou comportamentos semelhantes aos seus.

d) Fatores de trabalho psicológico:

d.1) Aprendizado interpessoal: é o aprendizado que o paciente desenvolve pelas informações recebidas de modo compartilhado com os demais integrantes do grupo. Seus traços de personalidade e padrões de comportamento tornam-se evidentes no contexto grupal. Desse modo, o paciente conscientiza-se e responsabiliza-se pelo seu comportamento e relacionamento social inadequado, permitindo correção de interações mal-adaptadas.

d.2) Autocompreensão (insight): adquirir autoconhecimento, maior conscientização e compreensão sobre sua própria pessoa, permite ao paciente enfrentar novas situações com maior responsabilidade e tolerância à frustração.

Compreender os fatores terapêuticos mobilizados no grupo é uma ferramenta que pode contribuir para ampliar as possibilidades de intervenção com pacientes com TA. Obviamente, esses fatores não devem ser entendidos como instâncias teóricas de análise, mas como importantes pilares para compreender a estruturação e funcionamento do grupo, a construção das condições que favorecem a mudança e a manutenção e desenvolvimento do grupo ao longo do tempo.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O grupo, como instrumento auxiliar no tratamento dos TA, não deve ser visto apenas como uma forma de atender mais pacientes em menor período de tempo. Pelo contrário, deve ser concebido como um método de tratamento sério, comprometido, como uma potência específica, a fim de que os pacientes possam se reconhecer na experiência do outro e fazer um exercício de construção da própria identidade e da função que o sintoma assume em suas vidas.

Segundo Santos (2006), na situação grupal há uma produção coletiva de significados, que podem ser explorados e canalizados na busca de soluções para os problemas comuns que afetam o cotidiano de todos. Com essas diretrizes em mente, o coordenador do grupo busca estimular a recuperação física e emocional do paciente. Desse modo se almeja reforçar sua autoestima, atenuando o impacto de uma autoimagem normalmente comprometida na presença da enfermidade. Reconhece-se a distorção da imagem corporal como um sintoma distintivo dos quadros de TA. As raízes psíquicas dessa distorção se assentam na constituição da autoimagem, um aspecto basilar da formação da identidade.

O problema não é apenas como se olha, mas para onde se dirige o olhar. Ao situar sua dor nos confins do próprio corpo, o paciente psicossomático pede para que olhemos de um modo diferenciado para sua pessoa e seu intenso sofrimento psíquico. Assim, destaca-se a necessidade de formação de profissionais não apenas preparados para lidar com a problemática complexa que os TA põe em causa, mas também para compreender o grupo como um espaço propício para se tratar de questões que envolvem o olhar e ser olhado.

O grupo, nas suas diferentes modulações, é um poderoso possibilitador da emergência e negociação de significados, saberes, valores e práticas discursivas em torna dos TA. No grupo de pacientes, percebe-se que os participantes vão se envolvendo uns com os outros ao se dedicarem à arte de cuidar dos demais (SANTOS, 2006). É a partir da descoberta de que é capaz de cuidar do outro que o paciente começa a se perceber como alguém que também pode cuidar de si mesmo, aprimorando essas habilidades no sentido de desenvolver o autorrespeito e uma maior sensibilidade às próprias necessidades emocionais. A mobilização desses recursos revela a assunção de fatores terapêuticos tais como o altruísmo, o aconselhamento e o aprendizado interpessoal e por intermédio do outro.

Nessa vertente, o grupo torna-se, conforme destacado por Santos (2006), o celeiro de novas possibilidades de cuidar de si, especializando-se na produção de práticas mais salutares e de propostas mais autônomas diante da doença e da própria vida.

 

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Endereço para correspondência
Prof. Dr. Manoel Antonio dos Santos
Departamento de Psicologia e Educação
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
Universidade de São Paulo - USP
Avenida Bandeirantes, 3900 – Monte Alegre – Ribeirão Preto/SP – CEP: 14040-901
E-mail: masantos@ffclrp.usp.br

Recebido em 17/03/08.
1ª Revisão em 25/05/08.
Aceite Final em 28/06/08.

 

 

1 Psicóloga pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Desenvolvimento de Recursos Humanos. Psicóloga do Programa de Saúde da Família da Prefeitura Municipal do Guarujá, SP.
2 Psicólogo, Mestre e Doutorando em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Supervisão Educacional e em Gestão Educacional: Administração Escolar. Pesquisador do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (CNPq).
3 Psicóloga, Mestre e Doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Grupoterapia e docente das Faculdades Integradas Fafibe, Bebedouro, SP. Pesquisadora do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Psicologia da Saúde (CNPq) e psicóloga colaboradora do GRATA – HC-FMRP-USP.
4 Jornalista e especialista em Teoria da Comunicação pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Mestre em Comunicação e Doutora em Desenvolvimento de Recursos Humanos e de Comunidades pela The Ohio State University. Consultora na área de autoliderança e docente do Instituto de Ensino e Pesquisa em Administração (INEPAD).
5 Professor Doutor da Universidade de São Paulo, campus Ribeirão Preto. Psicólogo, Mestre e Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo. Diretor Científico da SPAGESP. Coordenador do Serviço de Psicologia do GRATA – HC-FMRP-USP. Líder do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (CNPq). Bolsista de Produtividade Científica do CNPq, nível 1D.