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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.9 no.2 Ribeirão Preto dez. 2008

 

ARTIGOS

 

A experiência do vínculo amoroso: ser um ou ser dois?

 

The experience of the loving link: to be one or to be two?

 

La experiencia del vinculo cariñoso: ¿para ser uno o ser dos?

 

 

Fernanda Kimie Tavares Mishima 1

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - FFCLRP-USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O vínculo de amor entre as pessoas sofreu modificações consideráveis, após tantas mudanças sociais e econômicas. O mundo atual destaca a fluidez dos relacionamentos, busca em satisfazer as próprias necessidades e desconfiança em relação ao outro para sobreviver. Este trabalho retoma a diferenciação entre o amar e o gostar, o vínculo experienciado pelo ego e pelo id, considerados à luz da psicanálise winnicottiana. O amar é visto como dificuldade em perceber o outro como diferente de si e o relacionamento vivido para satisfazer a própria necessidade, diferentemente do gostar winnicottiano, tido como relacionado ao ego e ao desejo de ter a companhia do outro, como complemento, não como parte de si mesmo. É comum na clínica contemporânea encontrar pacientes que buscam o outro para satisfação das próprias necessidades (relação anaclítica), o que acarreta sentimentos de solidão e desvalorização de si; com predomínio de organizações borderline. Finalmente, na relação analítica, é possível pensar o vínculo com o outro que possibilite autonomia e confiança, por meio do oferecimento de um ambiente suficientemente bom, holding e apoio ao estilo de ser pessoal.

Palavras-chave: Vínculo emocional; Amor; Psicanálise; Provisão ambiental; Análise terapêutica.


ABSTRACT

Linking of love between the people suffered considerable modifications, after as many social and economic changes. The current world detaches fluidity of the relationships, searchs in satisfying their necessities and diffidence in relation to the other to survive. This work retakes the differentiation between loving and liking, the experience lived for ego and id, considered to winnicott’s psychoanalysis. Love is seen as difficulty in perceiving the other as different of itself and the lived relationship to satisfy their necessity, differently of winnicott’s liking, had as related to ego and the desire to have the company of the other, as complement, not as part of itself exactly. It is common in the clinical contemporary finds patient that searchs the other for satisfaction of their necessities (dependency relation), what it causes feelings of solitude and depreciation of itself; with predominance of organizations borderline. Finally, in analytical relation, it is possible to think the linking with the other that makes possible autonomy and confidence, by means of the provide a enough good environment, holding and support to the style of being personal.

Keywords: Emotional linking; Love; Psychoanalysis; Ambient provision; Therapeutic analysis.


RESUMEN

El vínculo del amor entre las personas sufrió considerables modificaciones, después de tantos cambios sociales y económicos. El mundo actual separa la fluidez de las relaciones, la búsqueda de la satisfacción de las necesidades y falta de confianza en sí mismo apropiadas en lo referente a la otra para sobrevivir. Este trabajo vuelve a tomar la diferenciación entre el amor y teniendo gusto, el vínculo vivió para el ego y id, considerado a la winnicott psicoanálisis. El amor considerado como dificultad en percibir el otro como diferente de sí mismo y de la relación viva para satisfacer la necesidad apropiada, diferentemente de tener gusto de Winnicott, tenía con respecto al ego y al deseo de tener la compañía del otro, como complemiento, no como parte de sí mismo. Es común en el paciente contemporáneo clínico que la búsqueda el otro por satisfacción de las necesidades apropiadas (relación del dependencia), qué causa sensaciones de la soledad y depreciación de sí mismo; con predominio de las organizaciones borderline. Finalmente, en la relación analítica, es posible pensar vínculo con el otro que hace autonomía y confianza posibles, por medio del oferecimento de un bastante buen ambiente, holding y ayuda al estilo de apropiado de ser.

Palabras clave: Vinculo emocional; Amor; Psicoanálisis; Disposición ambiente; Análisis terapéutico.


 

 

Diante de um mundo contemporâneo que enfatiza relações cada vez mais fluidas, tanto relacionadas às aquisições materiais quanto aos vínculos pessoais, relacionar-se com o outro se transformou em um assunto pouco discutido e raramente experienciado.

Pensar o vínculo interpessoal é um tema recorrente; diversos autores trazem suas contribuições (BICK, 1964; BOWLBY, 1969, 2004, 2006; RICOTTA, 1994). Neste estudo, levando-se em consideração a freqüência dos questionamentos trazidos pelos pacientes na clínica, pensar-se-á o vínculo de amor entre os indivíduos à luz da psicanálise winnicottiana.

Nos atendimentos clínicos atuais, o questionamento mais abordado pelos pacientes centra-se na dificuldade em reconhecer aquilo que realmente deseja, na falta de conhecimento das próprias necessidades, na vivência de relações permeadas pela insegurança e intensas idealizações. Em contrapartida, no início do século XX, o foco era o famoso “Édipo”, de Freud (1974), momento em que as pessoas vivenciavam seus relacionamentos amorosos, porém, com dificuldade de entrar em contato com seus desejos sexuais mais reprimidos.

Tal mudança remete-nos aos principais conceitos de desenvolvimento emocional humano e a relação com o mundo compartilhado, ou seja, antes do indivíduo vivenciar a experiência edípica, é importante que ele tenha tido contato físico e afetivo com a primeira figura de amor, representada pela figura materna, o que se conhece pela díade mãe-bebê (KLEIN, 1996; MACDOUGALL, 1996; WINNICOTT, 1993).

Anterior à experiência de se relacionar com o ambiente externo, Winnicott (2000) traz contribuições que auxiliam a pensar no vínculo criado com o objeto subjetivo, ou seja, a experiência vivida na mais tenra infância que permite que o bebê possa se sentir integrado, ocupando um corpo e com necessidades próprias, para que consiga buscar no mundo externo aquilo que satisfaça seus desejos. Assim, o objeto subjetivo passa a ser concebido como objeto objetivo. Neste ponto, insere-se a discussão entre a relacionabilidade do ego e o relacionamento do id, com suas diferenças.

O relacionamento do id está ligado às necessidades pulsionais, àquela fase em que a pessoa se relaciona com o objeto, ou seja, este objeto é para a satisfação de suas próprias necessidades, o indivíduo ainda não vê o outro como diferente dele, mas como parte de si mesmo. Aí também está o conceito de amar winnicottiano e o orgasmo físico vindo de uma excitação local (WINNICOTT, 2000).

Já a relacionabilidade do ego está ligada ao uso pessoal que se faz de um objeto (considerando o usar como apropriação pessoal de algo, dado pela criatividade pessoal), ou seja, o indivíduo é capaz de ver o outro como diferente dele mesmo. Desse modo, a pessoa também consegue “estar só” na presença desse outro, pois houve a experiência de integração, personalização e realização, processos primordiais para o desenvolvimento emocional humano (WINNICOTT, 1993). Ao se considerar a relacionabilidade do ego, tem-se presente o desejo mais do que a necessidade e também a relação com o conceito de gostar winnicottiano, além do orgasmo do ego (aquele em que o indivíduo pode relaxar na presença do outro, atingir o clímax, o êxtase do ego).

Desta contraposição entre os vínculos vivenciados a partir das instâncias psíquicas do id ou ego, é possível pensar na diferença entre o gostar e o amar, e, conseqüentemente, no orgasmo do ego. Nesse sentido, tem-se a interrogação: os vínculos atuais são primordialmente vivenciados de que maneira? Como é concebida a busca pelo parceiro ideal?

Para responder tais perguntas faz-se necessário remeter à ideia winnicottiana: as pessoas se relacionam para satisfazer as suas próprias necessidades e suas pulsões do id, ou para “fazer uso” do outro como objeto separado de si e, assim, permitir a relacionabilidade do ego? Como é o vínculo de amor que as pessoas buscam? É o amor particular, único, de ter o parceiro ideal que possa satisfazer suas próprias necessidades? Ou é ter aquele amor que seja companheiro, que possa ficar ao seu lado e permitir que haja possibilidades de “estar só” em sua companhia?

De qualquer forma, para pensar nas diferenças entre um e outro é preciso observar como a pessoa vivencia seus relacionamentos e como são seus vínculos criados. Quando o paciente fala de um ‘amor ideal’ criado para suprir suas próprias necessidades, isto não parece real, não é sentido como sendo conquista própria do indivíduo. Já quando o paciente retrata um amor que seja companheiro, que possa ser ele mesmo e que ele pode “relaxar” ao seu lado (e também ser ele mesmo), o terapeuta vê sentido, há um encontro real.

Em auxílio à psicanálise, há a música, que geralmente traz o amor como tema principal, que movimenta a vida do indivíduo. Como exemplo, há duas canções compostas por Chico Buarque: “Eu te amo” e “Valsinha”.

Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir
Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir
Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair
Não, acho que estás só fazendo de conta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir
(BUARQUE; JOBIM, 1980)

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar
Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda a cidade enfim se iluminou
E foram tantos beijos loucos
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz
(BUARQUE; MORAES, 1970)

A primeira música possibilita pensar no vínculo de amor fusional, em que o corpo da pessoa amada se confunde com o corpo do amante, não se consegue diferenciar quem é quem, ou o que cada um quer (se as necessidades são diferentes ou não). Pode ser tido como a lembrança do conceito de amor no sentido winnicottiano, uma relação com o objeto em um nível de relacionamento do id.

Já a segunda música traz a referência ao vínculo amoroso como aquele mais voltado para o desejo da pessoa amada, o sentido de gostar e a presença de dois em uma relação (é possível diferenciar duas pessoas, que se respeitam como diferentes entre si), a qual é fortemente marcada por uma relacionabilidade do ego.

Outros autores trouxeram contribuições ao tema ‘amor’, como Fromm (1995). Em seu livro, “A Arte de Amar”, o autor inicia com afirmações de que o homem sempre está em busca de diminuir sua ansiedade (provocada pela sua separação com a natureza) e, para isso, busca o orgasmo sexual. Quando isto não é permitido, ele usa outras formas, como o alcoolismo e as drogas (soluções que não resolvem), ou até busca a união com seu grupo (o casamento é uma dessas formas). No entanto, a verdadeira resposta e, a mais completa, está no amor, na busca pela realização de uma unidade interpessoal.

Em relação aos vínculos amorosos, há dois tipos diferentes a serem destacados: o simbiótico, semelhante ao amor fusional, ligado ao relacionamento do id e ao conceito winnicottiano de amor; e a união de um amor amadurecido, similar à relacionabilidade do ego, ao respeito pelo outro e ao conceito de gostar winnicottiano. Neste, é possível conviver com o outro sem perder a própria identidade, “no amor ocorre o paradoxo de que dois seres sejam um e, contudo, permaneçam dois” (FROMM, 1995, p. 36).

Fromm (1995) também aponta para diferenciação entre o amor materno e o paterno. O primeiro é considerado incondicional, representado pela terra, onde escorre “leite e mel”, o leite representa o cuidado com o filho e o mel representa a doçura e o gosto pela vida, que devem ser transmitidos pela mãe. Já o amor paterno é o amor condicional, aquele que aparece quando a pessoa é merecedora de tê-lo, quando o filho corresponde às expectativas do pai.

Paralelo a esse pensamento, Winnicott (1982) considera a figura materna como parte do bebê, para, posteriormente ser vista como seu primeiro objeto de amor, que vai permitir a entrada do pai, considerado ambiente indestrutível, que sobrevive e impõe os limites necessários.

É importante salientar que Fromm (1995) afirma que a capacidade de amar de um indivíduo depende da influência da cultura em que ele vive. Na cultura ocidental atual, todas as pessoas querem parecer iguais, apresentam as mesmas necessidades e, no fundo, sentem-se muito sozinhas. É como se o mundo representasse o seio e as pessoas os eternos sugadores. Esse mesmo autor enfatiza que o amor é uma verdadeira arte e, como toda arte, é preciso que haja algumas qualidades pessoais para desenvolvê-la, como disciplina, concentração, paciência e preocupação em aprender.

De forma mais específica, para que haja a experiência de um vínculo amoroso amadurecido, é preciso que o indivíduo conheça seus próprios limites e capacidade, tenha confiança em si e respeite suas limitações para, assim, confiar na capacidade do outro e respeitá-lo. Infelizmente, tais aspectos não são valorizados no contexto social atual, em que o mais importante é receber, ganhar e estar à frente, mesmo que seja necessário subjugar o outro.

Pensando no tipo de vínculo criado entre as pessoas, que remete ao vínculo que o indivíduo cria com seus próprios objetos internos e externos, observa-se que, na clínica contemporânea, há a presença marcante de pessoas que funcionam na organização borderline. Os estados-limite hoje estabelecem um novo paradigma, considerados pela psicanálise atual o que era antes a histeria.

Segundo Deutsch (1942 apud NAFFAH NETO, 2007), os pacientes do tipo borderline não foram capazes de desenvolver um superego internalizado real, em contrapartida, mostram-se dependentes de controles externos que limitam seus comportamentos e sua ação no mundo. A autora também comparou a personalidade histérica, caracterizada pela repressão emocional, às personalidades borderline (conhecidas como “as if”), caracterizadas pela deficiência emocional. De acordo com esse pensamento, Bergeret (1998) também ressaltou que as organizações limítrofes não introjetaram um superego real, tendo como verdadeiro organizador da personalidade o ideal de ego (ichideal).

Nas organizações borderline o Édipo é vivenciado de maneira incompleta, ou seja, tem-se elementos edípicos e superegóicos, mas não o suficiente para permitir que o ego esteja de tal maneira fortalecido como nas estruturas neuróticas, onde impera o primado genital. Assim, há pontos de fixação relacionados a um ideal de ego pueril e gigantesco. Por conseqüência, o relacionamento de tais indivíduos com o outro é permeado por tentativas heróicas e desmedidas a fim de assegurar o amor e a presença do objeto anaclítico (de dependência) a qualquer custo (BERGERET, 1998).

Diante disso, é possível afirmar que a metapsicologia dos casos borderline envolve uma linhagem narcisista, ou seja, ideal de ego, ferida narcisista, vergonha, angústia de perda de objeto. A fim de comparar, as linhagens neuróticas apresentam outros aspectos, como Édipo, superego, conflito genital, culpa, angústia de castração (BERGERET, 1998). De acordo com esta afirmação, é possível considerar a organização limítrofe como uma patologia do narcisismo, em que o indivíduo se relaciona com o outro para satisfazer suas próprias necessidades, com dificuldades de tolerar frustrações e medo constante de perder o objeto que o supre.

Pensando no tipo de vínculo amoroso criado pelos indivíduos com organização borderline, comum na clínica atual, remete-se ao sentido de amor dado por Winnicott (2000), em que há dificuldade em se considerar a existência do outro como real, assim como é vista a própria existência. Os indivíduos com tais organizações apresentam intensa necessidade de apoio, compreensão e holding.

No atendimento clínico a esses pacientes, faz-se necessário que haja acolhimento das necessidades mais primitivas, de amor e ódio, para que eles se sintam capazes de viver experiências no mundo compartilhado, com presença de criatividade e esperança. O verdadeiro encontro com o analista acontece por meio do oferecimento de um ambiente suficientemente bom, indestrutível e amoroso. Nesse encontro, os pacientes vivenciam relação de confiança, de limitações e capacidades, sentindo-se capazes de agir no mundo de maneira espontânea, verdadeira e real.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Fernanda Kimie Tavares Mishima
E-mail: fktmishima@srv1.ffclrp.usp.br

Recebido em 27/09/08.
1ª Revisão em 17/11/08.
Aceite Final em 19/12/08.

 

 

1 Psicóloga. Mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo (USP).