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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.9 no.2 Ribeirão Preto Dec. 2008

 

ARTIGOS

 

Sociabilidade grupal entre jovens de camadas populares: subjetividade e gênero 1

 

Group sociability between young adults from low income families: subjectivity and gender

 

Sociabilidad grupal entre jóvenes de clases populares: subjetividad y género

 

 

Eduardo Name Risk 2; Geraldo Romanelli 3

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo - FFCLRP-USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A juventude assume características próprias conforme o contexto sociocultural e histórico. A socialização dos jovens ocorre por meio de instituições como a família e a escola responsáveis pela transmissão de modelos de conduta às novas gerações. A convivência com os pares permite que os jovens incorporem atributos gerais do grupo que integram. As referências identitárias forjadas no grupo de pares e na família são fundamentais para a constituição da subjetividade e masculinidade juvenil. O presente artigo teórico objetiva discutir a constituição da subjetividade e masculinidade de jovens do sexo masculino pertencentes às camadas populares, a partir das relações de sociabilidade vividas por eles. A dimensão da masculinidade, que não deve ser reduzida à virilidade, perpassa as trocas sociais, compondo afetividades diversas, evidenciando a complexidade da sensibilidade grupal desses jovens.

Palavras-chave: Jovens; Gênero; Masculinidade; Subjetividade; Classe trabalhadora.


ABSTRACT

Youth assumes particular characteristics according to the sociocultural and historical context. The socialization of the young adults occurs by institutions like family and school, responsible for the transmission of values and behavior models to the new generations. The coexisting between the pairs allows young adults to incorporate general attributes of the group which they are part of. The references of identity built in the group of pairs and in family are essential for the constitution of the subjectivity and masculinity youth. The present article aims to discuss the constitution of the subjectivity and masculinity of young adults from low income families, from the sociability relations experienced by them. The masculinity dimension, that should not be reduced to virility, includes the social trades composing affectivity, evidencing the complexity of the group sensibility of these young adults.

Keywords: Young adults; Gender; Masculinity; Subjectivity; Lower class.


RESUMEN

La juventud asume características propias conforme el contexto sociocultural y histórico. La socialización de los jóvenes ocurre por medio de las instituciones como la familia y la escuela, responsables por la transmisión a las nuevas generaciones de modelos de conducta. La convivencia en grupo permite que los jóvenes incorporen atributos generales del grupo que integran. Las referencias de identidad desarrolladas en los grupos de convivencia y en la familia son fundamentales para la constitución de la subjetividad y masculinidad juvenil. El presente artículo objetiva discutir la constitución de la subjetividad y masculinidad juvenil de los jóvenes del sexo masculino pertenecientes a las clases populares, a partir de las relaciones de sociabilidad vividas por ellos. Más allá de la virilidad, la dimensión masculinidad pasa por los intercambios sociales, compuesto de diversas afectividades, evidenciando la complexa sensibilidad del grupo de esos jóvenes.

Palabras clave: Jóvenes; Género; Masculinidad; Subjetividad; Clase trabajadora.


 

 

Este artigo objetiva discutir alguns aspectos da constituição da subjetividade e masculinidade de jovens do sexo masculino pertencentes às camadas populares, a partir das relações de sociabilidade vividas por eles. Pretende-se apresentar como a construção da masculinidade e da subjetividade estão implicadas nas relações sociais forjadas no grupo de pares, a partir dos referenciais teóricos da antropologia, sociologia e psicologia.

Em termos descritivos, as camadas populares podem ser definidas como a população pobre das cidades que ocupa postos de trabalho no setor formal ou informal da economia caracterizados por baixos salários, e residem, em geral, em bairros periféricos, com precária infra-estrutura de serviços básicos, como rede de água, esgoto, ruas pavimentadas, serviços de saúde e áreas de lazer (ROMANELLI, 1997). Conforme a posição que ocupa no espaço social, cada classe comporta determinado estilo de vida, ou seja, detém propriedades, no sentido material e simbólico, expressas em práticas que lhes são próprias, da mesma maneira que interioriza princípios de apreensão da realidade, isto é, visões de mundo comuns a seu grupo (BOURDIEU, 1983). Dessa maneira, pode-se afirmar que as camadas populares são detentoras de repertórios culturais próprios, e que a sociabilidade entre jovens compreende práticas e modos de apreensão da realidade particulares, que compõem dinâmicas culturais específicas.

A socialização dos jovens ocorre por meio de instituições como família, escola, igreja, mídia, dentre outras, responsáveis pela transmissão de padrões e modelos de conduta às novas gerações, tornando-se “responsáveis pela produção e difusão de patrimônios culturais diferenciados entre si” (SETTON, 2002, p. 109). Se o processo socializador permite aos jovens acesso ao patrimônio cultural das gerações anteriores, ele não se dá sem confronto, já que os filhos reagem às orientações transmitidas pelos pais, o que possibilita que tenham contato com outras fontes de informação, provenientes do contato com outras pessoas e agências socializadoras, o que contribui para enriquecer suas experiências. De acordo com Romanelli (1998), a existência desse confronto evidencia que as relações intergeracionais não consistem apenas na reprodução de estruturas postas, mas possibilitam alterações de alcance e extensão variável, conforme a forma do questionamento e das soluções criadas nesse confronto.

No caso da família, a proximidade afetiva entre seus membros engendra não apenas relações ternas, carregadas de afeto, mas também tensões, sobretudo nas ocasiões em que os interesses da família, enquanto expressão do interesse coletivo do grupo doméstico, entram em colisão com as aspirações individuais de seus integrantes, como ocorre com os filhos durante a juventude, quando questionam a autoridade parental e buscam maior autonomia em relação a seus familiares. Com o crescimento dos filhos, as posições familiares se alteram, sobretudo quando ingressam no mercado de trabalho, o que ocorre precocemente entre as camadas populares (ROMANELLI, 1997).

Os rendimentos auferidos pela prole integram a lógica das obrigações familiares, na medida em que seu trabalho é considerado importante para a manutenção da unidade doméstica. No entanto, por mais que nas famílias de camadas populares haja solidariedade entre seus integrantes, deve-se lembrar que a constituição da identidade do jovem é marcada por ocasionais rupturas em relação às orientações parentais. Para tais jovens, mesmo sendo parte de suas responsabilidades, o trabalho também é concebido como forma de afirmação individual, visto que permite acesso a bens de consumo de alto valor simbólico, que marcam o padrão da juventude urbana: tênis, roupas, aparelhos eletrônicos, dentre outros (ROMANELLI, 2008; SARTI, 2003). Com relação a este segmento social, Watarai (2006) afirma que a família incentiva o ingresso dos jovens no mercado de trabalho, seja de modo direto ou implícito, aprovando a condição de seu filho enquanto “trabalhador”, incutindo-lhes a importância de serem “trabalhadores e honestos”, a fim de que não vivam no ócio ou se envolvam em práticas criminais.

Além da família, os jovens tecem relações de sociabilidade estreitas com o grupo de pares, constituído por amigos diversos da rua, do bairro, da escola, dos clubes, do trabalho, cujo aspecto principal é a igualdade da condição de jovem. Assim, tendem a incorporar atributos gerais dos grupos que integram, sobretudo características definidoras de gênero, que são bastante relevantes para a constituição de suas identidades. No caso dos jovens pertencentes às camadas populares, as relações de sociabilidade entre amigos são fonte de definição e redefinição identitária, cujos primeiros contornos têm início na família. A identidade social, elaborada por meio do contraste e da oposição “nós-outros”, inclui os atributos dos vários grupos dos quais o indivíduo participa, como camada social, ocupação, religião e gênero, permitindo que ele incorpore diferentes identidades sociais que o distinguem dos integrantes de outros grupos (WATARAI, 2006). Assim, a identidade social permite estabelecer semelhanças entre portadores dos mesmos atributos, identificando-os com os membros de um grupo e, ao mesmo tempo, diferenciando-os daqueles que têm atributos diversos e que pertencem a outros grupos. Nesse sentido, de acordo com Oliveira (2006), as identidades sociais são contrastivas, pois operam a separação e distinção entre os que fazem parte de um “nós”, isto é, de um mesmo universo social, e dos “outros”, que participam de espaços sociais diferentes.

Para Pais (1990), que estudou relações de sociabilidade entre jovens portugueses, a participação nos grupos não é livre, ou seja, há normas implícitas e explícitas que determinam aqueles que neles podem ingressar. Nas práticas cotidianas, os jovens elaboram fronteiras simbólicas que delimitam, inclusive, o espaço físico de que se apropriam, cujas referências estão ligadas às práticas que ali engendram, funcionando como suporte de suas identidades sociais.

Nesse sentido, as referências identitárias forjadas no grupo de pares e na família são fundamentais para a constituição da subjetividade dos jovens. Por subjetividade entende-se “o conjunto de modos de percepção, afeto, pensamento, desejo, medo e assim por diante, que animam os sujeitos atuantes (...) (assim como) as formações culturais e sociais que modelam, organizam e provocam aqueles modos de afeto, pensamento, etc.” (ORTNER, 2007, p. 376). Para esta autora, a subjetividade refere-se a “uma consciência cultural e historicamente específica”, mediante a qual os agentes devotam-se à construção e re-construção permanente do self1, sendo minimamente cognoscentes de seus desejos. O sentimento de identidade individual se dá a partir do reconhecimento do outro no encontro das sociabilidades, “a procura de contato é também uma busca de si1, uma vez que as identidades individuais se constituem como resultado de experiências individuais, embora surgidas de ritualizações próprias de identidades coletivas” (PAIS, 2006, p. 18, grifo do autor).

Entre os jovens das camadas populares, as formas de sociabilidade têm conteúdo social e emocional variável e os vínculos entre eles podem compreender desde a amizade estreita até certa indiferença e, inclusive, antagonismo. A amizade representa a possibilidade de estabelecerem laços mais próximos com aqueles com quem compartilham espaços de convivência, vivenciados na vizinhança, na escola, no trabalho e em atividades de lazer, de tal modo que a sociabilidade criada nos grupos de pares do sexo masculino constitui meio para expressarem e redefinirem suas identidades. É importante salientar que a androssocialidade, isto é, a sociabilidade entre homens, compreende marcas de gênero extremamente relevantes, pois constitui um dos recursos para a construção da identidade e da masculinidade, sobretudo em grupos de jovens (ROMANELLI, 1995).

Esses fatos remetem à problemática das relações sociais de gênero, enquanto construção social e histórica das masculinidades e feminilidades, mencionadas no plural, na medida em que há concepções diversas do que é masculino e feminino não apenas entre sociedades, mas no interior de cada uma delas. Atualmente os estudos da área apontam que masculino e feminino não são universos opostos, dicotômicos, mas se diferenciam e se complementam relacionalmente, ou seja, um “pólo” se constitui através do outro (LOURO, 1996, 1997). Dessa maneira, ao se falar de homens, necessariamente fala-se de mulheres, um implica o estudo do outro, e esta forma de entender as relações entre gêneros rejeita a interpretação de “esferas” masculinas e femininas isoladas, como se a experiência de uma nada tivesse a ver com a outra (SCOTT, 1986). Cabe ressaltar que a masculinidade, enquanto conjunto de práticas e representações, será vivenciada e construída de maneira diversa de acordo com o grupo social, a partir de marcadores como classe, raça, etnia, o que também implica determinadas semelhanças no que tange à vivência do masculino. Por exemplo, a experiência da virilidade, tal qual analisada por Bourdieu (2007).

A virilidade pode ser descrita, segundo Bourdieu (2007), como a capacidade reprodutiva, sexual e social, assim como a aptidão ao exercício da violência por parte do homem. Antes de tudo a virilidade é pública, no sentido de que sua potencial ou real violência deve ser reconhecida e atestada pelos pares, um grupo de “verdadeiros homens”. Por exemplo, ritos escolares ou militares consistem em provas públicas de virilidade, “orientadas no sentido de reforçar as solidariedades viris” (BOURDIEU, 2007, p. 65). Determinadas provas de coragem requeridas pelo grupo de pares obrigam os homens a recusar medidas de cuidado, desafiando situações perigosas, a fim de que se mostrem bravos, sob o risco de serem taxados como delicados, fracos, o que poderia desqualificar suas masculinidades. Assim, “o que chamamos de ‘coragem’ muitas vezes tem suas raízes em uma forma de covardia (...) (baseada) no medo ‘viril’ de ser excluído do mundo dos ‘homens sem fraquezas’” (BOURDIEU, 2007, p. 66). A honra, contrapartida da virilidade, revela-se também no corpo, na postura, nas maneiras, no modo de se manter em pé, isto é, na hexis corporal, entendida como a unidade estética do corpo, ou seja, as técnicas corporais, que incluem gestos e atitudes, além dos trajes, que diferenciam os grupos e os corpos uns dos outros (BOURDIEU, 2007).

Vale de Almeida (2000) investigou aspectos da masculinidade em um povoado português chamado Pardais, em que as relações pautavam-se a partir dos valores tradicionais e patriarcais. Segundo o autor, na sociabilidade pública os homens pautam-se na masculinidade homossocial, competitiva, por um lado, mas também solidária, uma vez que está fundamentada na amizade e na comensalidade. Nesse vilarejo, a masculinidade refere-se a um mundo aparentemente desprovido de sentimentos, já que as emoções e sua expressão são tidas como pertencentes ao universo feminino, restando aos homens a manutenção do prestígio e da honra, que se faz na contínua tentativa de serem e de se fazerem homens. Por outro lado, em algumas situações, o antropólogo constatou que é possível que os homens expressem seus sentimentos com relativa1 liberdade, quando estão no café, onde consomem álcool, o que permite que se sensibilizem e possam exteriorizar, poeticamente ou cantando, emoções em geral consideradas feminilizantes, “como o amor, a saudade, a caridade e a compaixão” (VALE DE ALMEIDA, 2000, p. 65).

Enquanto nas interações comuns as mulheres são muitas vezes tratadas como “objeto”, na poesia há espaço para expressão do sentimento amoroso, de perda e abandono, emoções tidas como femininas, como se nota em um trecho a seguir, que trata dos sentimentos de um marido que ao viajar por muitos anos, foi abandonado por sua esposa: “Ambos nós temos razão / explico porque motivo / julgavas de eu não ser vivo / e eu estava numa prisão / não tinha comunicação / pra te escrever adorada / estás com outro homem casada / sendo minha esposa querida / eu penei bastante em vida / que o meu nome deu soada” (VALE DE ALMEIDA, 2000, p. 216).

No caso do Brasil, exemplo dessa forma de expressão encontra-se na música “A Bela e a Fera” de Chico Buarque e Edu Lobo (2007): “Ouve a declaração, oh bela / de um sonhador titã / Um que dá nó em paralela / e almoça rolimã / O homem mais forte do planeta / tórax de Superman / Tórax de Superman e coração de poeta”. A letra dessa canção trata de um trovador que invoca o amor de sua amada, ao mesmo tempo em que evoca seus atributos masculinos, na procura de garantir sua virilidade diante dos sentimentos que declara à “Bela”. Desse modo, ao expressar seu amor e afeto, o eu-lírico poderia feminilizar-se, o que a referência a elementos como “rolimã, titã, Superman” procura neutralizar, evidenciando que a virilidade tem uma contrapartida afetiva, embora recôndita.

Nas vivências pautadas pela homossocialidade, os jovens também levam a cabo interações jocosas caracterizadas por licenciosidade, obscenidades e insultos dirigidos a um ou a vários membros do grupo. Essas brincadeiras, pautadas pela irreverência e pelo humor, muitas vezes expresso de forma grosseira (ROMANELLI, 1995), constituem as “relações jocosas”, isto é, uma peculiar combinação entre amizade e oposição que, em contextos sociais formais, seria sentida como agressiva e geraria hostilidade, mas que não deve ser “levada a sério”, pois nela se imiscuem adversidade e amizade, havendo uma relação de desrespeito consentido (RADCLIFFE-BROWN, 1971).

Os temas das provocações presentes nessas relações são variados e podem versar sobre os atributos físicos, intelectuais e morais de algum de seus integrantes ou conter motivos obscenos, tendo como alvo um ou mais integrantes do grupo, que podem retrucar em tom amistoso. Em princípio, todos podem dirigir insultos ou ser insultados, havendo um suposto igualitarismo entre as partes. Nessas relações há marcadores linguísticos próprios e tende-se a falar alto e a exagerar a entonação, elementos que compõem a amizade em tais circunstâncias (COMERFORD, 1998). As relações jocosas são componentes básicos para a constituição da identidade e subjetividade masculinas e têm um elemento de contestação política, de confronto e de negação da ordem social vigente. Além disso, constituem veículo para expressão da virilidade, a partir de técnicas corporais, como postura, entonação da voz, além das bravatas licenciosas, em que, muitas vezes, temas relativos à sexualidade estão em pauta, visto que, nestes casos, a manifestação da masculinidade é pública.

A análise da virilidade entre as camadas populares deve considerar que os homens desse segmento social encontram uma sanção positiva por meio de condutas “hipermasculinas”, ao contrário do que vivenciam em outras esferas da vida social, nas quais seu poder de atuação e intervenção é menor (OLIVEIRA, 2004). A exacerbação de comportamentos viris permite que obtenham benefícios deles decorrentes em função das relações de gênero estabelecidas, “em situações em que o agente ou o grupo se ressente de algum déficit real (...) ou imaginário, em relação à economia de poder simbólico social” (OLIVEIRA, 2004, p. 215). Para este autor, o homem é visto como “alguém” que vive de modo independente, a despeito dos outros, o que fundamenta a adesão aos valores masculinos entre aqueles que procuram uma identificação positiva. Desse modo, muitas vezes as condutas “hipermasculinas” são fruto da necessidade de afirmar-se positivamente perante outros grupos diante dos quais os homens se contrapõem.

Essa condição pode adquirir relevância social e simbólica quando os grupos masculinos, particularmente aqueles formados por jovens, colocam-se diante de situações em que podem sofrer danos físicos ou até perderem a vida, desafiando-se mutuamente e afirmando-se enquanto homens. Para Bourdieu (2007), ser homem “implica um dever-ser” evidente por si mesmo, em que a honra inscreve-se no corpo a partir de disposições aparentemente tidas como naturais, evidentes na maneira de aprumar a cabeça, manter-se em pé, na postura, que configuram um conjunto de disposições correspondente a representações determinadas. A honra orienta os pensamentos e as práticas tal qual uma necessidade lógica que prescinde de cálculos deliberados, constituindo a identidade masculina, que apesar de sua natureza social, é sentida como destino, um desígnio. A virilidade é pública pelo fato de ser constantemente reposta via desafios, em que o homem deve distinguir-se enquanto tal, afastando-se de atributos tidos como femininos, tais como a sensibilidade e o medo. A virilidade ideal revela sua enorme vulnerabilidade, impelindo os homens a engajarem-se em jogos violentos, especialmente naqueles que são símbolos exaltados de masculinidade, como os esportes de luta (BOURDIEU, 2007). Essa disposição para comportamentos que expressam a virilidade perigosa, inclusive as bravatas masculinas, pode desencadear consequências negativas para os jovens, como é documentado em algumas pesquisas. Dados coligidos em 2002 e 2003 sobre a epidemiologia da morbidade e mortalidade na população brasileira revelam que as taxas de homicídios entre os adolescentes e adultos jovens, entre 15 e 29 anos, são sensivelmente mais altas se comparadas à população total do país (SOUZA; LIMA, 2007).

No que tange à dimensão relacional de gênero, o estudo de Salem (2006) aponta para as formas como masculinidade e feminilidade são construídas nas camadas populares brasileiras. Para Salem, os estudos antropológicos indicam que entre jovens dessas camadas a sexualidade é uma expressão moral, calcada nas relações familiares e nas redes sociais. Tais pesquisas também defendem que as relações sociais nos grupos populares são marcadas pelo binômio dentro (feminino) x fora (masculino), diferenças “que imprimem um caráter legitimamente hierárquico à relação entre gêneros, (tornando-os) verdadeiramente complementares” (SALEM, 2006, p. 420).

Este paradigma está sendo revisto a partir das discussões que colocam as relações de gênero entre jovens das camadas populares não apenas como complementares, mas também marcadas por tensões, além de proposições que apontam a importância da sexualidade e de sua expressão viril na identidade de gênero dos homens. Não deixando de afirmar que as relações de gênero entre homens e mulheres pertencentes às camadas populares são marcadas pelo modelo hierárquico, a autora questiona se a reciprocidade estaria presente nos relacionamentos de homens com mulheres, já que a socialização masculina exige rompimento com o universo doméstico a partir do final da infância e início da adolescência, levando à individuação do homem, isto é, a maior autonomia e independência em relação à casa, o que reflete em suas relações conjugais e familiares (SALEM, 2006). Estas idéias são confirmadas por Leal e Boff (1996, p. 133):

Parece-nos que o ethos do espaço social “rua”, elemento constituidor da identidade masculina, encompassado pela sociedade maior, aciona uma maior individuação (...) na pessoa masculina, em oposição a uma visão mais holista. É condição do exercício da masculinidade o rompimento com a família (ascendente) e com o próprio peer group (...). O que está em jogo, porém, é a capacidade individual e diferenciadora que o faz melhor que os iguais (outros homens) e não, talvez, o valor família per si.

Partindo-se destas proposições, convém explicitar resumidamente as idéias de Salem (2006) a respeito da constituição da masculinidade e da feminilidade entre os segmentos populares. Para a pesquisadora, a construção da masculinidade e feminilidade se dá por meio de relações de reciprocidade e disjunção/tensões, devendo-se notar o caráter reflexivo de sua argumentação, pois ao discorrer sobre a socialização masculina, Salem recorrerá a aspectos da socialização feminina. Como já dito, a socialização do menino é marcada pelo rompimento com relação à unidade doméstica, o que não significa desconsideração em relação aos familiares, já que cabe ao homem o “desempenho de uma obrigação moral”: representar a família no universo público, da rua. Já a socialização feminina dá-se na casa e para casa, seja pelo maior controle familiar seja pelas responsabilidades relativas ao cuidado com o espaço doméstico, cabendo à mulher, enquanto esposa e mãe, a atenção e demonstração de estima e afeto para com os integrantes da família. Salem sintetiza esta constatação na equação: vínculo (mulher) x circulação (homem), “pólos” que se complementam, já que ambos expressam funções de grande importância para reprodução social da família.

Por outro lado, a socialização diferencial dos gêneros, redunda em valores diversos no âmbito conjugal. Enquanto a mulher está comprometida a urdir laços fortes com seu parceiro (namorado, marido), o homem teria tendência a circular, a enredar vínculo tênue com sua parceira, situação em que a traição parece ser consentida entre eles, constituindo manifestação de virilidade diante de seus iguais. A vocação masculina para circulação seria radicalizada por sua posição de classe, premida diante da ameaça ou vivência do desemprego, além dos baixos rendimentos auferidos pelos homens, que dificultam a realização do papel de “homem provedor”, incitando-os a desvencilharem-se de vínculos regulares. Desta maneira, é possível que o homem afirme fisicamente sua virilidade, como forma de compensar seu “fracasso” no exercício de provedor, reafirmando a importância da sexualidade como recurso identitário (SALEM, 2006).

Assim, em termos subjetivos, de acordo com Bourdieu (2007), a virilidade é vivenciada sobretudo como uma “carga”, visto que o homem obriga-se a corresponder a um modelo ideal e exaltado de masculinidade, em contrapartida à angústia que a feminilidade suscita. Em síntese, “a virilidade, como se vê, é uma noção eminentemente relacional, construída diante dos outros homens, para os outros homens e contra a feminilidade, por uma espécie de medo do feminino, e construída, primeiramente, dentro de si mesmo” (Bourdieu, 2007, p. 67, grifo do autor). A afirmação acima permite relacionar o modo como os jovens, neste caso, pertencentes às camadas populares brasileiras, vivenciam subjetivamente o caráter vulnerável de sua virilidade, que Bourdieu refere como “carga”. Cabe ainda considerar que, conforme Luhrmann (2006), a noção de subjetividade é amplamente utilizada pelos antropólogos para se referir à vida íntima do sujeito, sua sensibilidade, seus sentimentos, o que evoca a dimensão psicológica contida nesse conceito. O interesse antropológico pelo tema indica a importância que os pesquisadores dessa área atribuem à análise da influência social na constituição da vida interior, a fim de investigar o aspecto social das emoções.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da revisão teórica acima, podemos considerar que a identidade é fruto da mediação entre os estados afetivos dos agentes sociais e as formações culturais que os permeiam. A dimensão da alteridade é fundamental na constituição da subjetividade, ou seja, é a partir da interação com o outro que esta se constitui. Assim, a socialização via instituições como família, escola, mídia, difunde códigos da cultura vigente às crianças e aos jovens, contribuindo para suas múltiplas identificações e desenvolvimento de suas sensibilidades. Contextualizando a discussão, entre os jovens de camadas populares, a vivência da masculinidade constitui um amplo espectro de manifestações afetivas, que são elaboradas e redefinidas no âmbito da convivência social da família e do grupo de pares, nas quais vigoram códigos culturais específicos que orientam práticas e representações diferentes. A dimensão da masculinidade, que não deve ser reduzida à virilidade, perpassa as trocas sociais desses jovens, compondo afetividades diversas. Nesse sentido, a virilidade, enquanto “carga afetiva”, bem como a constituição da identidade e da subjetividade dos jovens de camadas populares precisam ser analisadas mediante pesquisas que utilizem os referenciais teóricos da antropologia e da psicologia, a fim de construir conhecimento mais amplo sobre essas questões.

 

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Endereço para correspondência
Eduardo Name Risk
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Geraldo Romanelli
E-mail: geromane@ffclrp.usp.br

Recebido em 04/08/08.
1ª Revisão em 17/10/08.
Aceite Final em 28/11/08.

 

 

1 Artigo fruto de pesquisa de mestrado em andamento do primeiro autor sob orientação do segundo autor. Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo apoio concedido.
2 Psicólogo. Bacharel em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Psicologia da mesma instituição, bolsista da FAPESP.
3 Professor Doutor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.