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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.10 no.2 Ribeirão Preto dez. 2009

 

ARTIGOS

 

Fotografias e narrativas: presença-ausência, imagens em ação

 

Photographs and narratives: the presence-absence, images in action

 

Fotografías y relatos: la presencia-ausencia, las imágenes en acción

 

 

Altivir João Volpe 1

Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Fotografias, narrativas e grupos constituem espaços potenciais de compartilhamento da transitoriedade do presente, das ambigüidades e incertezas do caminhar, entre crise e superação. O panorama contemporâneo se caracteriza por um apagamento dos laços sociais, por uma intensificação dos não-lugares e pela ruptura das formações intermediárias. Estas premissas tornam necessário o desenvolvimento de outros enquadres diferenciados, por exemplo, uso de mediadores expressivos como a música, a pintura, a fotografia, a narrativa, os objetos do cotidiano. Alguns desses enquadres diferenciados têm sido utilizados com grupos e instituições, os quais possibilitam a abertura à memória coletiva. Isto contribui com o intenso trabalho próprio do devir humano. Um devir humano que se desenvolve entre o risco contínuo da perda dos referenciais e da busca desses lugares de sustentação.

Palavras-chave: Grupo; Fotografias; Imagens; Setting (Psicanálise).


ABSTRACT

Photographs, narratives and groups compose potential spaces of the transient sharing of the present, of the ambiguities, and the uncertainties of the pace between crisis and overcoming. The contemporary panorama is characterized by a lack of social links, by a “no-places” intensification, and by the intermediate formations rupture. These premises become necessary to the development of other different settings, for example, the use of expressive mediators as music, painting, photography, narrative, daily objects. Some of these different settings have been used with groups and institutions; and they conceive an opening to the collective memory. This contributes to the intense work that is part of the human devenir. A human devenir which is developed between the reference loss continuous risk and the search of these places of holdings.

Keywords: Group; Photographs; Picture; Setting (Psychoanalysis).


RESUMEN

Las fotografias, narrativas y grupos constituyen espacios potenciales para compartir la transitoriedad del presente, de las ambigüidades y de las incertidumbres del caminar entre crisis y superación. El panorama contemporâneo se caracteriza por una perdida de los lazos sociales, por una intensificación de los no-lugares y por la ruptura de las formaciones intermediarias. Estas premisas hacen necesario el desarrollo de encuadres diferenciados, por ejemplo, uso de mediadores expresivos como la música, la pintura, la fotografia, la narración, los objetos del cotidiano. Algunos de estos encuadres diferenciados han sido utilizados con grupos e instituciones, los cuales posibilitan la apertura a la memoria colectiva. Esto contribuye con el intenso trabajo que es propio del devenir humano. Un devenir humano que se desarrolla entre el riesgo contínuo de la pérdida de las referencias y de la búsqueda de estos lugares de sustentación.

Palabras clave: Grupo; Fotografias; Imagenes; Setting (Psicoanalisis).


 

 

IMAGENS: ANCORAGEM E DESLIGAMENTO

Gregor Samsa, em A Metamorfose, de Kafka, pendura em sua cama a imagem de uma mulher de chapéu e estola de peles que recortara de uma revista ilustrada. Ao se perceber transformado em inseto, tenta agarrar-se como pode à humanidade fugidia que ainda ressoa nele. Que faz Gregor Samsa? ― Arrasta-se com rapidez para cima, comprimindo seu corpo ao vidro, que o protege e faz bem à sua barriga quente. Pelo menos esse quadro que Gregor recobria totalmente, com certeza ninguém haveria de levar embora (KAFKA, 2001, p. 65, Grifo nosso).

Tisséron (1997) assinalando a força que essa cena possui, diz que Kafka mostra de maneira extraordinária que a imagem é um território ao qual nos agarramos para assegurar nossa humanidade. Ao nos deixarmos embeber pela imagem, aderimos a ela para que se constitua em território próprio, para encontrar uma espécie de intimidade na qual o humano não nos seja arrancado, para que “ninguém o leve embora!”, como diz Kafka.

Imagens apresentam-se, pois, como meios para viver e pensar nossa condição humana: capturar seus vestígios e brechas, olhar e escutar através deles, de entremeio, diria Guimarães Rosa. Auscultar o que desvelam daquilo que não é dito ou entredito.

A pós-modernidade acentua a violência intrusiva ao generalizar o exílio, o desenraizamento e ruptura dos laços sociais, a experiência dos não-lugares. Persiste um encurtamento dos espaços e a individualização do coletivo. Tentativas são feitas no sentido de abolir os vínculos entre passado e presente, transpor o fluxo do tempo como se este fosse onipresente. Os fundamentos da identidade e o sentido de pertencimento a redes de sustentação encontram-se abalados, afetando os processos de ligação e de religamento no campo da cultura e da vida social. Com o enfraquecimento dessas formações intermediárias, dá-se uma confusão entre o dizer e o fazer, entre a ação e a representação, com conseqüências nos vínculos intersubjetivos e nos processos de simbolização. O humano é metamorfoseado em autômato.

Então, para que o humano não se petrifique ou se torne insensível, para que as angústias não se convertam em aniquilamento de si e do outro, como um antídoto a diferentes intrusões e violências, as pessoas trabalham, fazem arte(s), escrevem, brincam e conversam, mesmo que de escuridão em escuridão.

Na assim chamada modernidade/supermodernidade, o papel dos objetos como elementos de articulação da história e da tradição de um grupo de referência, de uma comunidade de destino, foi se esgarçando e se fragmentando, no contexto da ampliação e predomínio das relações modeladas pelo sistema capitalista. Por outro lado, algumas situações analisadas por Benjamin em O Narrador, de 1936, com relação à construção da experiência coletiva (Erfahrung) e por Winnicott em O Brincar e a Realidade, de 1975, para a criação de áreas de experimentação, levantam a possibilidade de os objetos e algumas situações do cotidiano constituírem lugares de repouso e de passagem da vida humana. Cada um expressaria seu estar-no-mundo em diferentes espaços potenciais compartilhando a transitoriedade das formas no presente, as ambigüidades, reviravoltas e incertezas do caminho (presença e ausência) para se encontrar.

 

GRUPO COMO FORMAÇÃO INTERMEDIÁRIA

Em um trabalho grupal com três encontros no qual foram utilizadas fotografias pessoais trazidas pelos integrantes e, na sequência, construídas narrativas suscitadas por essas fotos, foi possível perceber diferentes leituras desse tempo/espaço imagético organizador. Diz Vacheret (2000): “as imagens são entretecidas, reforçadas ou acumulam-se a ponto de sustentarem o sujeito em sua percepção ou de o afastarem de suas imagens primeiras”. Ao mesmo tempo, a constituição de um dispositivo grupal ativa e reanima decisivamente tais processos. Cada um pode ser ouvido e agir, pode encontrar o outro que fala em si, pode brincar.

O percurso de cada participante previamente ao encontro grupal propriamente dito envolveu um tempo para compreender e deixar emergir, um tempo da experiência. Ao ficar silenciosamente com suas fotos, álbuns, achados e guardados, cada integrante encontra seus objetos, deixa-se penetrar por diferentes sensações, lembranças e acontecimentos. Desloca para o registro do comunicável aquilo que dele estava excluído, experiências a serem usadas (ou não), como algo criado/encontrado em presença de um outro significativo, um saber próprio passível de comunicação.

No grupo, os relatos e as fotos vêm carregados de história, uma vida que inclui a própria experiência do sujeito e também a entretecida com os demais. Mais: ao se apresentar, cada sujeito o faz à sua maneira, e esta também traduz uma forma peculiar – porque sua – de marcar sua presença no mundo, de criá-lo e recriá-lo. À maneira da tessitura de um tapete, de certa forma cada um reflete e testemunha no presente o movimento, o espaço potencial de vida e morte; o entrejogo de refúgio e acolhimento diante dos esgarçamentos, rupturas e recomeços da vida.

A solicitação inicial feita por mim foi de que cada um trouxesse fotos nas quais tivesse a sensação de “encontrar algo de si mesmo, da própria história”. Tal escolha ou situação proposta envolve como se percebe a tomada de decisões: separar, excluir, parar, deixar em repouso, buscar, abrir e fechar, trazer as fotos para perto de si, apalpá-las, senti-las. Nesse processo, cada participante pode (novamente) se localizar consigo mesmo, com sua história, revelar os diferentes outros que o habitam. A seguir, um recorte do que ocorreu no grupo.

Ralf: ... essa foto apresenta uma viagem ao Deserto de Atacama... Criamos um laço muito forte. Meu pai já era meu amigo mas ficamos mais próximos nessa viagem. Eu vi a grandiosidade do mundo. Essa viagem meio que deu uma virada na minha vida... algo mudou em mim... Na época, eu disse a meu pai: “quero ir pros Estados Unidos”. Ele disse: “não, vou te levar prum lugar diferente”. E esse lugar era o Deserto de Atacama, no Chile... entender, se entender... meu pai fez a gente comer a comida deles. A gente andou assim junto com os caras que ficavam levando cabrito para pastar... a gente vê a cultura mesmo!
Clarinha: Você conheceu bem a cultura, né?
Ralf: ... igual no filme do Che Guevara que transformou a vida dele. Aquele tiro mudou a vida dele... e também a vida da América Latina.
Paulo: Quem é esse cara na foto?
Ralf: O terceiro na foto é um cara meu muito interessante, é um guia lá do deserto, o cara já morou no mundo todo, Paris, mas ele gosta mesmo é de lá e então ele fica numa cidadezinha minúscula que se chama São Pedro de Atacama. Ele nos levou num lugar muito especial, foi um momento único na minha vida. Ele levou a gente numa laguna que ele não costuma levar os turistas normais. Ele falou: “eu vou levar prum lugar que eu conheço, assim....” Pegou o Toyota dele no rumo do deserto... virou à direita e entrou no deserto e... foi, foi, foi... e eu falei: “a gente vai se perder aqui!” Ele tinha uma bússola, ele sabe os caminhos, seguia pelo sol e levou a gente nesse lugar que foi extremamente especial... O cara leva uma vida simples lá, e ama estar lá com a natureza, etc e tal. (Faz uma pausa.) Essa outra foto é da minha formatura como ator, em Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago... É o momento no qual o personagem que eu faço volta a enxergar. Essa foto saiu em todos os jornais... o momento em que eu voltei a enxergar... é até uma metáfora...
Angélica: É o começo, né.
Ralf: Quando eu dei por mim, estava fazendo parte de uma troupe teatral!(Pausa.)
Coordenador: Qual das fotos trazidas, você escolheria para construir uma história?
Ralf: (demora a escolher) Uma história nova? Bem... o que eu posso falar dessa história que contei agora (refere-se à última foto apresentada) é que precisamos dos outros... precisamos fazer... Eu fiz para estar lá!
Lavínia: Lutar pelo seu sonho...
Ralf: ... a história da conquista... O nome dessa história seria A conquista de Está-lá-dando-risada.

A seqüência de sua apresentação das fotos parece indicar um movimento crescente em direção a um “tesouro enterrado no meio do Deserto de Atacama”, como metaforicamente a ele se refere. Diz que essa viagem mudou o rumo de sua vida, como o tiro que Che Guevara leva muda sua vida e a vida da América Latina (refere-se a uma cena do filme Diários de Motocicleta). Ralf fala dos sentidos de suas viagens: atravessar as fronteiras do conhecido e seguro, desenraizar-se, deixar-se penetrar pelos outros que falam em si: “depois dessa viagem, eu não podia continuar sendo o mesmo. Ou melhor, eu sentia que agora estava sendo mais eu!”

A seu ver, a criação do dispositivo grupal favoreceu, em suas palavras, “um outro olhar sobre algo que ficou esquecido há muito tempo… dá para me identificar com as histórias dos demais”. Ralf pode dar continuidade a sua vida, ficar sozinho com o pai, ser ator, integrar novos grupos. E constituir-se porta-palavra em diferentes formações intermediárias. Nesse sentido, cada um conteria em si objetos não-identificados, pontos cegos, “tesouros”, desertos e cidades invisíveis a serem descobertos – testemunhas de experiências sensoriais e emocionais vividas.

Os sentidos da vida com esse outro olhar residiriam talvez no constante movimento de transformação e de alargamento dos dispositivos psíquicos e culturais para tornar pensável o não-significado, o não-nomeado. O dispositivo grupal como que organiza uma cena na cena, lugar onde as janelas e as pálpebras se entreabrem, como para Ralf em Ensaio sobre a Cegueira, acontecimento que desvela outras possibilidades de apropriação e reconhecimento. O que Ralf buscaria no grupo real? Talvez...

... a imagem de sua unidade perdida e a ancoragem necessária para superar o desamparo. Busca fora o que lhe falta dentro: a não-divisão, a permanência. É possível que encontre isso se o grupo estiver disposto a ser esse espaço transicional, a repor os mecanismos de regulação deteriorados, a proporcionar apoio e modelo a recursos não utilizados até o momento (KAËS, 1979, p. 75).

O tesouro encontrado por Ralf é o registro interno dos encontros, como ele assinala ao final do trabalho em grupo. Nesse sentido, uma das leituras possíveis de O Ensaio sobre a Cegueira que marca o início de sua trajetória profissional, em um certo sentido, uma metáfora do trabalho realizado com todo o grupo, é a de um discurso sobre a solidariedade e o encontro nos espaços intermediários, como aquilo que garante a sobrevivência em tempos de apagamento dos laços sociais, a ruptura das formações intermediárias, a exemplo do que ocorre na contemporaneidade.

 

PRESENÇA E AUSÊNCIA DE OBJETOS SIGNIFICATIVOS

Podemos dizer que, como leituras do mundo, as fotografias trazidas pelos integrantes do grupo oferecem diferentes possibilidades compreensivas de apreender e construir experiências, uma forma de desvelá-las, transformá-las em carne viva, prenhe de sentidos. São transformações no tempo, deslocando através do olhar e do trabalho da memória fragmentos de relações sociais e de formações intermediárias (por exemplo, a tensão entre passado e presente; continuidade e ruptura; formas de ligação e de desligamento; vida, “ensaios sobre cegueira” e morte).

O mesmo ocorre na narrativa: ser ampliada e desdobrada mil e uma noites ou intergeracionalmente, em uma mobilidade constante, interligando autor e leitor; eu e outro; eu e grupo; eu e as gerações que me antecedem ou que me sucedem. O importante não é tanto a foto ou a narrativa suscitada por ela, antes o uso que cada um faz de ambas em diferentes lugares criados. Nesses espaços de compartilhamento, o cotidiano é continuamente reinventado, novas cenas e histórias são lembradas e desveladas, por palavras e cores carregadas de sentido, ou seja, por palavras sensoriais.

Existe um convite aos atores envolvidos para mergulhar na tessitura da memória, descobrir com a cumplicidade de um grupo de referência as experiências perdidas ou soterradas em seus desertos. Assim, cada um pode se perceber enraizado e eternamente estrangeiro e nômade. Inquietante estranheza, presença/ausência, em um bricolage sem fim. Citando Gurfinkel (1996, p. 67):

Os adultos, quando voltam de suas viagens, (...) trazem lembranças. Quando alguém morre, não repartimos apenas os seus bens, mas distribuímos também aos mais próximos objetos significativos da pessoa que ele foi. Presentes e lembranças, como sua própria natureza lingüística denota, remetem à questão essencial da presença/ausência de objetos significativos e, por decorrência, ao processo de ilusão/desilusão que caracteriza a relação do sujeito com a realidade.

Com o surgimento de diferentes espaços entre-dois e as formações intermediárias que os constituem – fotógrafo/fotografado(s); narrador/interlocutores; sujeito/grupo; dimensão intersubjetiva/dimensão intrasubjetiva, são criados pontos de ancoragem, envoltórios, defesas e apoios compartidos. Tais experiências marcadas pela transicionalidade se intensificam e se complexificam em uma situação grupal, por meio das funções de encarregar-se, receber, sustentar ou dar suporte; conter e incorporar; representar e delegar; transportar e transferir a um outro o emergente deslocado. O dispositivo grupal como lugar da intimidade leva seus participantes a uma situação de começo, às origens, possibilita a intensificação dos vínculos, das transmissões e elaborações. Funções assumidas pelos membros do grupo, pelo dispositivo grupal ou pelo próprio analista.

Na pluralidade e diversidade dos discursos presentes, tais funções permitem a passagem do conhecido ao desconhecido, da crise à superação. Com o uso de mediadores (no nosso caso, fotografias, narrativas, o dispositivo grupal criado), é possível prolongar e intensificar as relações de continuidade da base de sustentação do ambiente, favorecendo sua posterior elaboração.

A exemplo de Ralf, nos demais integrantes do grupo, como ressonância àquilo que aparece em cada história, nota-se um desejo de viver as separações e experiências de ruptura de outra forma, de buscar um caminho próprio. Iniciar o movimento de fazer a travessia entre o já e o ainda não, em um movimento de idas e vindas, com a mediação da palavra, da imagem, dos acontecimentos olvidados. Viver a transicionalidade peculiar da geração que hoje está entre 25 e 35 anos, os participantes do grupo citado, os quais experimentam fortemente a ambigüidade dos tempos modernos. Ambigüidade que se revela na busca por outras configurações vinculares e, ao mesmo tempo, em um olhar dirigido a modelos de uma família estruturada e feliz, “como nossos pais”.

 

UMA PSICANÁLISE EM AÇÃO

Com a família “em desordem”, outras configurações de ligação e desligamento, envoltórios continentes e dispositivos de acolhimento e travessia necessitam ser reinventados. Tais formações intermediárias podem se tornar espaços potenciais a desvelar feridas e fraturas da vida; áreas transicionais que levariam ao surgimento do terceiro, entre o assumido e o não resolvido; dentro e fora; eu e não-eu; meu e não-meu.

A intensidade dessas práticas transicionais passa pela convivência com a pluralidade de relações, a renúncia a uma palavra unificadora, causa de si mesma, o trânsito entre a margem da garantia e o lançar-se a outras margens, diversas e desconhecidas em presença de um outro significativo (ou grupo). O que pode ocorrer em trabalhos de maior duração do que o realizado com o grupo de Ralf, nos quais os processos ligados à realidade corporal, à dimensão intrasubjetiva e às formações intersubjetivas são ampliados e desdobrados.

Trabalhos semelhantes ao realizado no grupo de Ralf podem ser articulados no dia-a-dia das comunidades e instituições, com a organização, por exemplo, de encontros temáticos (oficinas nos CAPS, UBS e Centros de Convivência; adolescentes nos processos de orientação vocacional; professores, psicólogos ou outros profissionais em cursos de especialização/formação didática; atividades em escolas e hospitais; organizações não-governamentais e instituições socioeducativas, como Sesc, Senac).

Esses dispositivos reúnem número restrito de participantes em encontros com ou sem acento psicoterápico mais preciso, muitas vezes assinalados pelo caráter da urgência subjetiva. O que significa propiciar um espaço-tempo que inclua os fenômenos presentes em um dizer, transformando-os em demanda na sequëncia. Através da mediação de meios sensoriais (o sonoro, o gestual, recursos plásticos/expressivos) e objetos culturais pré-constituídos (contos, fotografias, obras artísticas, livros e filmes, por exemplo) são ativados e reanimados processos de natureza intersubjetiva de um modo bastante eficaz. A isso se refere Kaës (2005, p. 246), ao dizer que “um grupo de troca é um grupo onde se pode falar daquilo que se troca. São grupos de palavra”.

Freud em Os instintos e suas vicissitudes, de 1915, assinala (1996, p. 123) que a fertilidade das idéias está associada necessariamente a certa imprecisão em seu deixar-se ver: “não pode haver dúvida quanto a qualquer delimitação nítida de seu conteúdo. (...) o avanço do conhecimento não tolera qualquer rigidez”. Como diz Angélica, uma das participantes do grupo apresentado anteriormente, faz-se necessário aventurar o olhar na direção dos espaços intermediários e dos diferentes “interstícios”, como diz. Abrir-se às incertezas da outra margem, atravessar o deserto, percorrer os caminhos do não-familiar e estrangeiro.

A elasticidade dos enquadres em trabalhos sob demanda ou com curta duração pode trazer estabilidade às situações disruptivas. Cria-se um espaço transicional que estabelece um ralentando às ameaças e agonias que o momento impõe. Trata-se efetivamente de um trabalho que implica o psicanalista, é uma psicanálise em ação porque opera no instante, ativa e intensamente, favorecendo a ressignificação do vivido ou porque impede também, por exemplo, que as situações traumáticas, de violência e catástrofe se cristalizem ou se espraiem e invadam o tecido social.

Benjamin (1994) fala da agonia do narrar artesanal com a aceleração da hegemonia capitalista nos inícios do século XX: a experiência (Erfahrung) perde seu valor fundante de fruição e de compartilhamento. Winnicott (1975), por sua vez, refere-se à criação de áreas de experimentação entre ilusão e desilusionamento, entre eu e outro, entre o já e o ainda não. Nesse sentido, o grupo torna-se um espaço potencial, lugar de experiências prévias à simbolização e da busca de autonomia. Ainda em relação ao grupo, Kaës (2005) propõe um trabalho a partir das formações intermediárias entre crise, ruptura e superação, tendo em vista uma troca e uma distribuição, em uma multiplicidade de tempos, espaços, sentidos e vozes.

Entretecendo as contribuições dos três autores citados, assinalamos a necessidade de acolher outras metodologias articuladas a dispositivos diferenciados, ao tratar das questões grupais e intersubjetivas, respondendo às fortes e pertinentes demandas sociais dos novos tempos diante do sofrimento, violência ou das situações de catástrofe. Para isso, é necessário dar um passo em direção ao “analista cidadão, o analista que deixa de ser um estrangeiro em sua cidade” (NAPARSTEK, 2004, p. 74), em cada um dos lugares que ele habita, seja o hospital, a universidade, as instituições e outras formações intermediárias.

A linguagem, a arte e o trabalho grupal como formações intermediárias eu-outro, transformadoras dos vínculos sociais e instâncias fundadoras do humano, convocam ao encontro, são escudos contra a própria violência e a do outro. Nossa vida é marcada por experiências culturais de passagem com movimentos de abertura e fechamento, crise e criação: são elas que nos dão fôlego para escrever, trabalhar, brincar e falar muito. “Lugares onde colocar o que descobrimos”, diria Winnicott (1975, p. 138), territórios apropriados ao encontro e ao acolhimento de uma intimidade na qual o humano não nos seja arrancado, para que ninguém o leve embora!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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KAFKA, F. A metamorfose. Porto Alegre: L&PM, 2001.

NAPARSTEK, F. A. El psicoanalista em acción. In: BELAGA, G. (Org.). La urgencia generalizada: la práctica en el hospital. Buenos Aires: Grama, 2004.         [ Links ]

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VACHERET, C. Préface Photo, groupe et soin psychique. Lyon: PUL, 2000.         [ Links ]

WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Altivir João Volpe
E-mail: aj.volpe@uol.com.br

Recebido em 15/11/08.
1ª Revisão em 07/01/09.
Aceite Final em 18/02/09.

 

 

1 Trabalho apresentado no XVIII Congresso Latino Americano FLAPAG e X Simpósio CEFAS – “Práticas Institucionais na América Latina: Casal, Família, Grupo e Comunidade”, 2009.
2 Doutor em Psicologia Social pelo Programa de Pós-graduação do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), Professor-adjunto da Universidade Presbiteriana Mackenzie (Teorias e Processos Grupais), Membro Associado à FEBRAP – Federação Brasileira de Psicodrama.