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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.10 no.2 Ribeirão Preto dez. 2009

 

ARTIGOS

 

O estilo clínico ser e fazer como proposta para o cuidado emocional de indivíduos e coletivos 1

 

The being and doing clinical style as a propose for the emotional caring of both individual and groups

 

El estilo clínico ser y hacer cómo propuesta de cuidado emocional de personas y colectivos

 

 

Fabiana Follador e Ambrosio I, 2; Tânia Maria José Aiello Vaisberg II, 3

I Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUCCAMP
II Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - IPUSP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O cenário de pesquisa psicanalítica brasileira conta, há alguns anos, com um grupo de pesquisadores que, inspirados pelas concepções epistemológicas do psicanalista argentino José Bleger, juntamente com uma interlocução com o pensamento winnicottiano, propõe um modelo de intervenção clínica denominada estilo clínico ser e fazer. Apresentamos as características e o uso deste tipo de intervenção na pesquisa psicanalítica e no cuidado de indivíduos e coletivos, em âmbito institucional.

Palavras-chave: Winnicott; Grupo; Psicanálise.


ABSTRACT

The Brazilian psychoanalytical scene has, for some years now, a group of researchers who have been inspired by the epistemological conceptions of the Argentinian psychoanalyst José Bleger. Such conceptions, combined with the winnicottian thought, propose a model to clinical interventions called being and doing clinical style. We hereby present the characteristics and use of such interventions in psychoanalytical research and for the caring of both individual and groups, within an institutional environment.

Keywords: Winnicott; Group; Psychoanalysis.


RESUMEN

El escenario de la investigación psicoanalítica brasileña cuenta con un grupo de investigadores que, inspirados por las concepciones epistemológicas del psicoanalista argentino José Bleger, conjuntamente con una interlocución con el pensamiento winnicottiano, propone un modelo de intervención clínica llamada estilo clínico ser y hacer. Presentamos las características y el uso de este tipo de intervención en la investigación psicoanalítica y en los cuidados de personas y colectivos en el contexto institucional.

Palabras clave: Winnicott; Grupo; Psicoanálisis.


 

 

O HOMEM CONCRETO, SUA CONDUTA E A PSICANÁLISE

Compreendemos, com a ajuda do psicanalista argentino José Bleger, que o objeto de estudo da psicanálise é a conduta humana (1963). Dessa forma, assumimos que nos encontramos maximamente próximos à dramática da vida, ao homem concreto, como apontava Politzer (1972) na sua Crítica à Psicanálise. Bleger, além de contribuir para a divulgação do pensamento do filósofo estudioso da obra freudiana aos latino-americanos, também respondeu a esse apontamento, propondo que as ciências humanas estudam um único fenômeno, a conduta, mantendo-se, assim, contato com uma psicanálise verdadeiramente concreta, voltada ao acontecer humano e não a teorias que favoreçam abstrações ou um olhar biologizante para a dramática da vida humana:

Trabajar en psicologia con el concepto de conducta es una especie de retorno aos hechos mismos, en la medida en que esto es factible en cualquier ciência. (...) Nuestro estudio de la conducta se hace en función de la personalidad y del inseparable contexto social, del cual el ser humano es siempre integrante; estudiamos la conducta en calidad de proceso y no como 'cosa', es decir, dinámicamente (BLEGER, 2001, p. 27).

Encontramos semelhante atenção à contextualização dos fenômenos na obra winnicottiana. Este psicanalista inglês sempre esteve atento ao ambiente onde se encontravam as pessoas, onde acontecia a vida. Entre os estudiosos de sua obra é consenso compreender que a noção de ambiente para Winnicott não é apenas levada em conta para proporcionar elementos explicativos acerca dos fenômenos. Para muito além, o ambiente winnicottiano é constituinte da subjetividade. Estamos, portanto, em outro patamar antropológico, onde o ambiente humano tem papel ativo, preponderante, no amadurecimento emocional humano:

Gostaria de dizer que, nestas primeiras e importantíssimas semanas de vida do bebê, os estágios iniciais dos processos de amadurecimento têm sua primeira oportunidade de se tornarem experiências do bebê. Onde o ambiente de facilitação – que deve ser humano e pessoal – possuir características suficientemente boas, as tendências hereditárias de crescimento que o bebê tem podem, então, alcançar seus primeiros resultados favoráveis (WINNICOTT, 1999, p. 8).

Compreendendo por “resultados favoráveis” a possibilidade de viver a vida a partir de um sentimento de realidade, não submisso ou defendido, a viabilidade deste estado experiencial inclui obrigatoriamente a participação ativa e ética do ambiente humano. Sendo assim, não apenas como elemento contextualizador, o ambiente aparece constituindo a sensação de ser si mesmo, o self.

Postura absolutamente diversa encontramos nas teorizações metapsicológicas. No pensamento freudiano, o indivíduo é concebido como uma mônada movida por pulsões que exigem satisfação desde os primórdios da existência, e o contato com a realidade, com o não-eu, acontece de forma submissa para que consiga sobreviver (MACHADO; AIELLO-VAISBERG, 2003).

Dentro desse panorama e adotando a concepção psicopatológica implícita na obra winnicottiana, compreendemos que o cuidado emocional a indivíduos e coletivos não pode ser concebido como uma técnica, ou um conjunto de procedimentos que independa do encontro inter-humano e das pessoalidades envolvidas, mas sim exige uma postura existencial, ética, que facilite a realização do potencial humano, a gestualidade espontânea pessoal e singular (AIELLO-VAISBERG, 2004a).

 

O AMBIENTE SUFICIENTEMENTE BOM

Ao mesmo tempo que compreendemos o homem como concreto, ou seja, alguém que habita um mundo que o constitui e que é constituído por ele, enfatizamos que a noção de saúde emocional relaciona-se com a possibilidade de viver de forma não dissociada, capaz de gestualidade espontânea transformadora do mundo.

Sabemos que essa capacidade depende da ação do ambiente humano, no sentido de favorecer o amadurecimento emocional e sustentar o acontecer humano. Winnicott nomeia essa “tarefa” ambiental por holding e apresenta-a como uma característica materna em uma situação especial, a preocupação materna primária (WINNICOTT, 1993a), onde a mãe sintoniza-se profundamente com as necessidades de seu bebê, não permitindo que este conheça as agonias impensáveis (WINNICOTT, 1993b).

Compreendemos que esse cuidado estende-se para além do relacionamento mãe-bebê, uma vez que a tarefa de integrar as experiências vividas no self nunca cessa. Daí decorre que o ambiente suficientemente bom deveria encontrar-nos em todas as situações e períodos da vida, não apenas na infância.

Enfatizamos que uma mudança essencialmente importante como a concepção antropológica ou psicopatológica, necessariamente carrega inovações no que tange à proposição de intervenções (AIELLO-VAISBERG, 2004b).

Quando se posiciona sobre quais são os objetivos do tratamento psicanalítico, Winnicott aponta para alternativas no que concerne ao enquadre de trabalho:

Em minha opinião, nossos objetivos ao aplicar a técnica clássica não são alterados se acontece interpretamos mecanismos mentais que fazem parte dos tipos de distúrbios psicóticos e dos estágios primitivos do desenvolvimento emocional do indivíduo. Se nosso objetivo continua a ser verbalizar a conscientização nascente em termos de transferência, então estamos praticando análise; se não, então somos analistas praticando outra coisa que acreditamos ser apropriada para a ocasião. E por que não haveria de ser assim? (WINNICOTT, 1983, p. 155)

Este convite, compreendido por nós como uma abertura rigorosamente inserida no método psicanalítico, visa a modificação do enquadre clínico não somente em seus termos contratuais, mas sim, em seus objetivos psicoterapêuticos.

Para além de alterações na forma, seja da sala de atendimento, da freqüência e duração dos encontros, das atividades realizadas, concluímos que a profunda modificação deve-se à recolocação do papel do psicanalista, não mais compreendido como um decifrador de sentidos recalcados, mas sim como um sustentador do potencial criativo humano.

 

A CRIAÇÃO DE MUNDOS TRANSICIONAIS

Temos respondido ao convite feito por Winnicott com o estilo clínico ser e fazer 4, no sentido de que, sendo psicanalistas, busquemos sempre fazer o que é mais apropriado a cada situação de sofrimento, cultivando uma postura de rigoroso respeito ao método psicanalítico.

As características fundamentais que compõem este estilo clínico centram-se na apresentação do enquadre e da intervenção psicanalítica adotada. Vale a pena ressaltar que o estilo clínico ser e fazer refere-se a uma postura do psicanalista frente às necessidades percebidas, englobando, portanto, os enquadres grupal, individual, institucional, em âmbito psicoterapêutico ou psicoprofilático. É importante destacar que compreendemos que as necessidades não atendidas, reconhecidas pelo psicanalista, são alvo de cuidado emocional. Dessa forma, a realização do objetivo terapêutico independe da capacidade dos indivíduos em oficializarem pedido por psicoterapia, seguindo a proposição blegeriana (BLEGER, 1984).

Com o propósito de realizar a criação de mundos transicionais (AIELLO-VAISBERG, 2004c; AMBROSIO, 2005), adotamos intervenção de tipo não interpretativo e a apresentação de materialidades expressivas na composição desta proposta de cuidado terapêutico. Esses elementos encontram-se concordantes às concepções antropológica e psicopatológica assumidas e constituem nossa forma especializada de brincar. Citando Winnicott (1975, p. 80): “Parece-me válido o princípio geral de que a psicoterapia é efetuada na super posição de duas áreas lúdicas, a do paciente e a do terapeuta”.

A partir de uma leitura paradigmática do Jogo do Rabisco (WINNICOTT, 1994), que ressalta a importância da presença concreta e real do analista no encontro, bem como sugere o uso dialógico de uma atividade, apresentamos a conceituação de materialidades-rabisco, que são peças-chave na criação dos mundos transicionais (AMBROSIO, 2005; CAMPS, 2004, 2009; GRANATO, 2002, 2004; MENCARELLI, 2003; VITALI, 2004). Essas materialidades expressivas presentificam o ‘ser’ do analista, tendo, portanto, contundente importância afetiva; fazem parte de seu mundo, que será apresentado ao paciente, seguindo o conceito winnicottiano de apresentação de objeto (WINNICOTT, 1982).

A criação de mundos transicionais – papeleiros, florais, entre outros - tem papel fundamental neste estilo clínico porque favorece a criação/encontro das experiências, em termos do amadurecimento emocional de cada paciente.

Pretendemos, por fim, sublinhar que este tipo de proposta pode alcançar os consultórios privados e os serviços públicos de saúde, sem abrirmos mão do referencial psicanalítico, mas sim inspiradas na concepção psicopatológica inferida na obra winnicottiana e na sua importante inovação quanto ao conceito de transicionalidade, sermos psicanalistas fazendo algo mais apropriado à ocasião.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Fabiana Follador e Ambrosio
E-mail: fabfoll@uol.com.br

Recebido em 11/11/08.
1ª Revisão em 05/12/08.
Aceite Final em 24/01/09.

 

 

1 Trabalho apresentado no XVIII Congresso Latino Americano FLAPAG e X Simpósio CEFAS - “Práticas Institucionais na América Latina: Casal, Família, Grupo e Comunidade”, 2009.
2 Doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCCAMP. Bolsista CNPq. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IPUSP. Pesquisadora do grupo de pesquisa “Atenção Psicológica Clínica em Instituições: Prevenção e Intervenção” da PUCCAMP. Membro do NEW – Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo. Co-Editora da Federação Latina de Associações de Psicanálise de Grupos – FLAPAG.
3 Professora Livre Docente pelo Instituto de Psicologia da USP– IPUSP. Orientadora dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia do IPUSP e da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCCAMP. Coordenadora da Ser e Fazer: Oficinas Psicoterapêuticas de Criação e do NEW –Núcleo de Estudos Winnicottianos de São Paulo.
4 Convidamos o leitor a conhecer o nosso site: www.serefazer.com.br.