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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.11 no.1 Ribeirão Preto June 2010

 

ARTIGOS

 

Grupo com adolescentes em privação de liberdade: circulação da palavra como possibilidade de ressignificação do ato infracional

 

Group with teenagers in custody: circulation of the word as a possible redefinition of the infracional act

 

Grupo con adolescentes con pena privativa de libertad: circulación de la palabra como posibilidad de reformular el acto de infracción

 

 

Ângela Buciano do Rosário 1

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo versa acerca do modo de ser sujeito do adolescente que cumpre medida socioeducativa privativa de liberdade. Inicialmente, será analisado o modo de subjetivação do adolescente autor de ato infracional em situação de confinamento, concebendo o contexto da instituição que o abriga. Descreveremos o cotidiano institucional a partir da circulação de seus discursos e problematizaremos a participação dos adolescentes nas atividades propostas (impostas) pela instituição. Tal obrigatoriedade indica a construção de uma posição subjetiva. Com a aposta na palavra como possibilidade de ressignificação do ato, mencionaremos a experiência de um grupo temático realizado no interior da instituição. Tal atividade, considerada dispositivo alternativo em uma instituição, cuja característica é a objetificação do sujeito, viabilizou a circulação da palavra sem que as prescrições institucionais estivessem tão presentes.

Palavras-chave: Adolescência; Ato infracional; Subjetividade; Instituição; Grupo.


ABSTRACT

This article is about the way of being of teenagers who attend socio-educational program and are deprived of individual liberty. Initially, it will be analyzed the process of subjectivation of the teenager who commits infracional act in a situation of incarceration, designing the context of the institution that shelter them. We'll describe the institutional routine through the movement of its speeches and problematize the participation of teenagers in the activities proposed (imposed) by the institution. This requirement indicates the construction of a subjective position. With the emphasis on the word as a possible reinterpretation of the act, we will present the experience of a thematic group held within the institution. Such activity considered an alternative mechanism in an institution, whose main characteristic is the objectification of the subject, made the circulation of the word possible without the institutional requirements so present.

Keywords: Adolescence; Infraction act; Subjectivity; Institution; Group.


RESUMEN

El artículo es acerca del modo de ser sujeto del adolescente castigado con pena de privación de la libertad. Inicialmente, se tendrá en cuenta el modo de la subjetividad del adolescente autor de acto de infracción en un estado de confinamiento, teniendo en cuenta el contexto de la institución que lo alberga. Se describirá la rutina institucional del movimiento de sus discursos y ponemos en duda la participación de los adolescentes en las actividades propuestas (impuestas) por la institución. Este requisito se indica la construcción de una posición subjetiva. Con el énfasis en la palabra como una posibilidad de reformular el acto, vamos explayarse de la experiencia de un grupo temático celebrado dentro de la institución. Esta actividad, considerada como un mecanismo alternativo en una institución cuya principal característica es la objetivación del sujeto, permite la circulación de la palabra sin los requisitos institucionales muy presentes.

Palabras clave: Adolescencia; Acto de infracción; Subjetividad; Institución; Grupo.


 

 

INTRODUÇÃO

Buscamos, neste estudo 2, pensar o modo de subjetivação do adolescente autor de ato infracional que cumpre medida socioeducativa privativa de liberdade 3. A contribuição de Foucault (1984) sobre o controle disciplinar na instituição em estudo nos mostra que tal controle contribui para a formação de um modo de subjetivação. A posição institucional enfatiza uma distância com uma lei rígida, integrante de um regime disciplinar por meio do qual os internos deveriam executar, sem questionamentos, tudo o que lhes era imposto.

Em nosso estudo, trabalhamos com a hipótese de que os mecanismos de controle e de disciplina, utilizados pela instituição, contribuem para a formação de modos de subjetivação.

Nesse contexto, a experiência do grupo temático realizado no interior da instituição buscou, dentro das possibilidades institucionais, considerar as peculiaridades do sujeito adolescente e valorizar a circulação da palavra como tentativa de significação do ato.

 

OBJETIVAÇÃO DA SUBJETIVIDADE: O CONTROLE DISCIPLINAR

O adolescente em conflito com a lei e privado de liberdade, ao ser submetido a regras e códigos impostos institucionalmente, apresenta certo modo de subjetivação. Ao abordarmos esse adolescente na condição de interno, devemos considerar as prescrições às quais esse sujeito está submetido. Em consonância com Foucault (1984), entendemos que a sujeição às regras e aos códigos impostos e o grau de concordância ou discordância deles é que irá definir o sujeito moral ou, dito de outra maneira, um determinado modo de ser sujeito. É nesse sentido que Foucault (1984) oferece-nos importante contribuição para a compreensão das diferentes formas de subjetivação. Para tanto, o autor se empreende no estudo das formas e das transformações da "moral".

Há dois aspectos que, segundo Foucault (1984), toda moral comporta: o dos códigos de comportamento e o das formas de subjetivação ou práticas de si, ou seja, quando o sujeito desenvolve um trabalho sobre si mesmo. Ambos os aspectos se desenvolvem com autonomia parcial, já que não podem estar inteiramente dissociados, porque é a partir do grau de concordância ou de discordância dos códigos ou regras que se estabelecem as formas de subjetivação.

Entendemos que a instituição estudada possui dispositivos 4 de controle associados a um campo da moral em que a importância é dada aos códigos. Esse campo se caracteriza pela capacidade de ajustar-se a todos os casos e de cobrir todos os campos de comportamento.

Os locais em que predominam esse aspecto da moral frequentemente são instâncias da autoridade que fazem valer os códigos para garantir o controle e a disciplina, assim como a instituição pesquisada. São, portanto, os dispositivos de controle institucional que garantem a ordem e a disciplina dos internos.

A instituição em pesquisa tem como ponto de âncora em seu funcionamento o controle disciplinar. A disciplina engloba desde a distribuição dos adolescentes no espaço institucional até as condutas de comportamento estabelecidas. Para tanto, logo que ingressa na unidade, o adolescente é orientado pelo funcionário que o recebe e apresenta-lhe as Normas de Convivência. Trata-se de um regimento interno que orienta as condutas que o adolescente deverá manter durante sua permanência no regime de internação.

A ordem estabelecida deve ser seguida. Aqueles que se destacam pelo bom comportamento, pela boa avaliação no ensino formal e pelas atividades extracurriculares são recompensados. Aqueles que transgridem as normas de convivência são punidos.

É importante lembrar que as medidas socioeducativas não preveem um período estabelecido para seu cumprimento. Assim, o tempo que o adolescente irá permanecer na instituição depende da sua evolução, que deve ser relatada periodicamente ao juiz de competência. A periodicidade de envio do relatório poderá ser determinada por esse juiz. Foucault (1987) nos lembra:

O juiz de nossos dias – magistrado ou jurado – faz outra coisa bem diferente de "julgar". E ele não julga mais sozinho. Ao longo do processo penal e da execução da pena, prolifera toda uma série de instâncias anexas. Pequenas justiças e juízes paralelos se multiplicaram em torno do julgamento principal: peritos psiquiátricos ou psicológicos, magistrados da aplicação das penas, educadores, funcionários da administração penitenciária fracionam o poder legal de punir... (FOUCAULT, 1987, p. 15).

Dessa forma, os funcionários ou juízes paralelos decidem o merecimento de uma progressão de medida por intermédio da constante avaliação do adolescente no cotidiano de sua internação, com o envio de relatório para o informe do juiz.

Uma vez disciplinado, no sentido foucaultiano de adestramento, esse adolescente estaria correspondendo às expectativas institucionais e conquistando, por intermédio dos juizes paralelos, a almejada liberdade.

 

CABEÇA VAZIA, OFICINA DO DIABO: O SUJEITO REFLEXO

Entre as expectativas institucionais que visam à reeducação do adolescente está a "oferta" de diversas atividades pedagógicas. Uma vez que seu cumprimento é obrigatório, entendemos que essa oferta se trata de uma imposição. Nesse ponto é importante frisar o questionamento de Rosa (2005) em relação ao cumprimento compulsório das atividades pedagógicas nos estabelecimentos que acolhem os adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação. Para esse autor, o Estado não possui legitimidade democrática para impor as atividades pedagógicas. Rosa (2005) compara tal postura a uma atitude nazista, em que se obrigava a realização de trabalho nos campos de concentração. Entendemos que, ao sermos submetidos a um Estado democrático, não podemos impor a participação nas atividades, uma vez que o cumprimento da medida socioeducativa privativa de liberdade já é uma punição. No entanto, na instituição em pesquisa, eram oferecidas diversas atividades com o objetivo de preencher a totalidade do tempo do interno. Não por acaso, um discurso comumente circulado na instituição entre funcionários e adolescentes era: "Cabeça vazia, oficina do diabo".

A partir desse fragmento discursivo, abrimos a discussão em dois vieses. Com relação ao adolescente, tal frase mostra a importância que ele atribui em participar das atividades. Conforme relato de internos, tal importância não diz respeito ao sentido que tal atividade pode oferecer a eles. O interesse dos adolescentes diz respeito à possibilidade que tal participação oferece para a confecção de um bom relatório de acompanhamento (realizado pelo técnico responsável – psicólogo ou assistente social).

Assim, ao responderem às exigências de participação nas atividades, os adolescentes cooperam para o bom funcionamento institucional e contribuem para que sua desinternação seja solicitada nos primeiros relatórios.

O outro viés do discurso presente na frase analisada é o da disciplina e do controle que a distribuição ordenada dos internos nas diversas atividades possibilita. Entendemos que a obrigatoriedade de participação nas atividades tenha o objetivo de padronizar o comportamento visando à docilização 5 do adolescente. Conforme o artigo 46 do Capítulo VI do Regimento Interno das Unidades de Atendimento de Internação e de Semiliberdade:

A disciplina é instrumento e condição de viabilização do projeto político pedagógico e do plano individual de atendimento, a fim de alcançar o conteúdo pedagógico da medida sócio-educativa, e consiste na manutenção da ordem, por meio de ações colaborativas, na obediência às determinações das autoridades e de seus agentes, na participação nas atividades pedagógicas e no cumprimento da medida imposta (GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2007) (grifos nossos).

Segundo o artigo acima, a participação nas atividades é condição de viabilização do conteúdo pedagógico da medida socioeducativa e tem como instrumento, para tal objetivo, a disciplina. Uma vez que a instituição em pesquisa tem como princípio de seu funcionamento o controle disciplinar, a oferta de atividades 6, em caráter compulsório, pode ser uma estratégia de controle dos adolescentes para o preenchimento de seu tempo.

A distribuição dos adolescentes para a prática das atividades dava-se de maneira aleatória e, muitas vezes, o interno era obrigado a participar de alguma sem que houvesse interesse por ela. Apesar da oferta de atividades durante todo o período em que o adolescente permanecesse internado, de acordo com as prescrições do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA 7, elas eram, muitas vezes, isentas de qualquer sentido para aqueles sujeitos.

Assim, a frase amplamente veiculada na instituição – "cabeça vazia, oficina do diabo" – possui dupla conotação. Por um lado, a participação dos adolescentes em atividades visava uma avaliação positiva dos juízes paralelos a fim de conquistar, com brevidade, a desinternação via progressão de medida. Por outro lado, o discurso conota a importância de ocupar o tempo do interno, a fim de garantir a ordem e a disciplina, objetivando mais controle sobre eles. Nesse sentido, encontramos na garantia da ordem e da disciplina com fins de controle a ocupação das "cabeças".

Tal característica aproxima-se daquilo que Drawin (1998) infere sobre a figura do sujeito epistêmico-reflexo. Esse autor, ao discorrer acerca da subjetividade no pensamento moderno, indica três figuras da subjetividade moderna. Na primeira, a figura do sujeito epistêmico-reflexivo, instaurada no racionalismo cartesiano, é uma subjetividade "desenraizada do solo histórico-cultural e esvaziada de conteúdo existencial" (DRAWIN, 1998, p. 23). Esse sujeito não é apreendido na vivência e não pode ser confundido com o indivíduo empírico. O sujeito epistêmico é fundante do saber: pensa sobre o mundo e é condição de possibilidade desse mundo. O critério da certeza é decorrente da capacidade de autorreflexão.

A segunda figura é do sujeito epistêmico-reflexo. Cunhado no empirismo inglês, diferente do sujeito epistêmico-reflexivo, parte da experiência empírica. A subjetividade é transformada em objeto interior, resultado de uma percepção interna que leva a uma dissociação do eu. Isso porque o conhecimento do sujeito é da mesma natureza do conhecimento das coisas, é reflexo do exterior. O sujeito transforma-se em objeto de uma ciência. É a objetivação da subjetividade.

A terceira figura é a do sujeito autonômico-transcendental. Solução do criticismo kantiano, esse sujeito, assim como o conhecimento científico, deixa de ser dado e passa a ser construído. Trata-se de um sujeito prático que se torna norma para si mesmo. Diferente do sujeito epistêmico cartesiano, que era fechado em si, o sujeito epistêmico kantiano abre-se ao mundo do direito e da história.

Parece-nos que o modo de subjetivação do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa privativa de liberdade está próximo da segunda concepção de sujeito cunhado por Drawin (1998), a figura do sujeito epistêmico-reflexo.

O fragmento discursivo "cabeça vazia, oficina do diabo" nos remete à necessidade de manter a "cabeça cheia". Como uma máquina, esse sujeito é somente reflexo das imposições advindas do exterior. Não deve refletir (figura do sujeito epistêmico-reflexivo), mas executar, sem pensar, aquilo que lhe foi determinado, objetificando sua subjetividade.

Assim, ao ofertar (impor) a prática de atividades como condição de possibilidade de realização de um relatório favorável à desinternação, esse sujeito reflexo irá cumprir o que a instituição espera, ou seja, a disciplina e a consequente progressão de medida socioeducativa.

Entendemos que essa forma de se relacionar com o adolescente não considera sua individualidade, tampouco o considera sujeito. Se não o considera sujeito, leva em conta menos ainda sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, assim como preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

CIRCULAÇÃO DA PALAVRA COMO POSSIBILIDADE DE RESSIGNIFICAÇÃO DO ATO: A EXPERIÊNCIA DO GRUPO TEMÁTICO

No contexto deste estudo em que vimos a incidência de um discurso institucional prescritivo, mencionaremos a experiência do grupo temático oferecido como atividade pela pesquisadora no período em que fez parte do corpo funcional da instituição. Ao concebermos as peculiaridades presentes no adolescer e ao considerarmos esse adolescente sujeito, partimos do pressuposto de que as atividades não podem ser impostas. Nesse sentido, o grupo oferecido aproximava-se de tal perspectiva.

Tratava-se de um trabalho realizado semanalmente com os adolescentes, no intuito de favorecer a circulação da palavra e a reflexão de conteúdos, sugeridos por eles mesmos, como maneira de significar seus atos. Os temas abordados eram da escolha dos adolescentes e discutidos com o auxílio de recursos como filmes, músicas, reportagens (jornais e revistas) e literatura. Importante ressaltar que tal grupo era realizado de "portas fechadas" e sem a presença do profissional responsável pela segurança, o que viabilizava uma fala em que as prescrições institucionais não fossem impostas de forma explícita. Dessa forma, o grupo revelou-se um dispositivo de viabilização de circulação da palavra dos adolescentes, com uma incidência menor das normas institucionais.

Inicialmente, o grupo contava com a participação de cinco adolescentes. No entanto, a presença do profissional responsável pela segurança, que a todo o momento intervinha com as normas institucionais, inviabilizava qualquer proposta de trabalho cuja premissa era a circulação livre da palavra e a produção de sentido. As intervenções realizadas por esse profissional diziam respeito à postura dos adolescentes, às palavras utilizadas por eles, além do próprio conteúdo sugerido pelos participantes acerca dos temas discutidos.

Sob os argumentos do reduzido número de participantes do grupo e da necessidade de o adolescente se expressar livremente, a pesquisadora assumiu, diante da direção, toda a responsabilidade e os riscos em realizar a atividade prescindindo do profissional da segurança. Somente dessa maneira foi possível a realização de um trabalho que propiciasse, de fato, a circulação da palavra em uma instituição com características de controle e de disciplina.

Assim, com o grupo temático oferecido como atividade pela pesquisadora, pudemos vislumbrar outra forma de posicionamento dos adolescentes. Diferentemente das demais atividades, o princípio para seu funcionamento era a inscrição de adolescentes interessados na tarefa, não tendo sido aceitos aqueles cuja participação tivesse caráter de obrigatoriedade.

Um fato que aponta a aceitação dos adolescentes por esse grupo foi o interesse e a procura para participar dos encontros. Devido a essa demanda, foi necessário abrir outro grupo durante a semana e, posteriormente, mais um no período matutino (para atender aos internos que estavam no ensino formal no período da tarde 8).

Assim, temos nessa experiência um exemplo de dispositivo que viabilizou a circulação da palavra entre os adolescentes em uma instituição em que a normalização de comportamentos que visam à disciplina e ao controle perpassa não somente os hábitos e as formas de agir, mas também a própria fala do sujeito. A experiência desse grupo mostra-nos que seu funcionamento operou como dispositivo para viabilizar a circulação da palavra e o consequente favorecimento da reflexão sobre o ato que levou o adolescente à internação.

É importante lembrarmos que para a Psicanálise, na adolescência ocorre a reorganização do mundo pulsional, devido à substituição do corpo infantil, o qual era identificado, por um corpo sexuado, e a aquisição da sexualidade genital leva o sujeito a se distanciar dos objetos edípicos. A retirada da catexia desses objetos desvia a libido para o eu, o que implica a escolha narcísica de objeto baseada no ideal de ego. Portanto, temos que na adolescência, com o afastamento dos genitores, o sujeito está em busca de um ideal de ego. Ele busca pelo outro, de maneira socializante, visando alcançar a gratificação narcísica de reconhecimento e de pertencimento ao grupo social. Considerando esse evento, o adulto que lida com o adolescente na condição de educador deve indicar possibilidades e não simplesmente as impor.

Como tentativa de criar possibilidades para além da tradicionalmente imposta que se vincula às idéias de disciplina, de condicionamento das almas e docilização dos corpos, pensamos em oferecer um espaço para a palavra junto aos adolescentes. Isso porque, ao concebermos o adolescente autor de ato infracional como sujeito, devemos permitir que sejam percebidos em sua individualidade, em sua história. Desse modo, evitaríamos que fossem reduzidos ao ato infracional cometido. O adolescente deixaria de ser mais um corpo a ser treinado, um caráter a ser moldado, para ser considerado em sua subjetividade (ALTOÉ, 2004).

É imprescindível pontuar que quando questionamos o controle disciplinar não estamos abdicando de regras nas instituições. O que ponderamos é a forma como elas são impostas e o objetivo que perseguem. Entendemos que qualquer instituição que lide com adolescentes deva ser norteada por normas e regras. Isso porque, ao se distanciar da infância, o adolescente está também na condição de afastamento daquilo que denominamos heteronomia e caminha em direção à autonomia.

A palavra heteronomia é formada pelo prefixo hetero (outro) e o sufixo nomia (normas). O homem heterônomo está sujeito à vontade do outro, em uma circunstância em que não há consciência moral 9. Nesse sentido, a criança é essencialmente heterônoma, ou seja, ela depende das normas do outro (adulto). À medida que cresce, conquista gradativamente a autonomia; em outros termos, suas próprias normas.

O conceito oposto ao de heteronomia é o de autonomia, palavra formada por auto (próprio) e nomia (normas). Diz das leis que o sujeito tem interiorizadas em si. Assim, o adolescente sai de uma condição de submissão às normas dos outros e vai à busca de suas próprias normas, a partir de relações de reciprocidade e de reconhecimento.

Ao considerarmos a condição de passagem da heteronomia para a autonomia feita pelo adolescente, regras e normas disciplinares são fundamentais. Entendemos que a autonomia está em construção na adolescência, pois nesse momento o sujeito está se afastando das normas alheias e instituindo suas próprias. Nesse sentido, é imprescindível a presença de uma lei que norteie o sujeito. No âmbito da nossa questão, o adolescente em conflito com a lei, essa necessidade torna-se ainda mais imperativa, visto que, na história de vida desses sujeitos a lei, por vezes, encontra-se frágil. A esse respeito, é interessante notarmos na fala dos adolescentes a expressão: "sempre fui bicho solto". Entendemos que se trata de um apelo a uma lei, a algo que norteie esse sujeito e lhe dê sustentação para suas escolhas futuras.

Portanto, as instituições que acolhem esses sujeitos não podem abdicar de regras e normas. Tais prescrições devem, no entanto, ser formuladas visando ao cuidado com os adolescentes, considerando-os sujeitos com história e singularidade e não almejando o arranjo institucional que vislumbre a ordem e o disciplinamento com fins de controle.

Nesse sentido, é importante que o adolescente, ao ingressar na instituição, saiba como funciona a lei e quais são os ideais institucionais (ALTOÉ, 2004). Estes, no entanto, não podem esmagar o sujeito; deve haver espaço para a singularidade. O que vemos, porém, é que os ideais institucionais de reeducação, disciplinamento e adestramento do adolescente aniquilam qualquer possibilidade de manifestação do desejo e de reconhecimento desse sujeito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BRASIL. Lei 8.069 de 13 jul. 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990. 156 p.         [ Links ]

DRAWIN, C. R. As seduções de Odisseu: paradigmas da subjetividade no pensamento moderno. In: KISHIDA, C. A.; LANNES, E. S.; BRITO, E. L. M. G.; ALBUQUERQUE, J. D.; CAVALCANTE, A.; SAMPAIO, N. (Orgs.). Cultura da ilusão. IV Fórum Brasileiro de Psicanálise, set. 1997. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998. p. 9-36.         [ Links ]

FOUCALT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. 277 p.         [ Links ]

FOUCALT, M. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984. 232 p.         [ Links ]

FREITAG, B. Itinerários de Antígona: a questão da moralidade. São Paulo: Papirus, 1992. 308 p.         [ Links ]

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Fundação Casa. Centro de Atendimento Socioeducativo do Adolescente. Regimento Interno das Unidades de Atendimento de Internação e de Semiliberdade da Fundação CASA. Portaria Normativa n. 136/2007. Seção I, Capítulo VI – Do Regulamento Disciplinar, art. 46. Disponível em: www.casa.sp.gov.br. Acesso em: 04 jun. 2008.

ROSA, A. M. Direito Infracional: Garantismo, Psicanálise e Movimento Anti-Terror. Florianópolis: Habitus, 2005. 240 p.         [ Links ]

ROSÁRIO, A. B. Ato infracional e reconhecimento: vicissitudes do adolescente no contato com o outro. 2008. 90 p. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.

 

 

Endereço para correspondência
Ângela Buciano do Rosário
E-mail: angelabr@ig.com.br

Recebido em 10/04/2011
1ª Revisão em 29/04/2011
Aceite Final em 04/05/2011

 

 

1 Psicóloga clínica, Mestre e Doutoranda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). E-mail: Email: angelabr@ig.com.br
2 Esse artigo é parte da pesquisa de mestrado intitulada: "Ato infracional e reconhecimento: vicissitudes do adolescente no contato com o outro", defendida em 2008 no Programa de Pós- Graduação – Mestrado em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
3 O material analisado são registros da autora, do período de 2001 a 2003, ocasião em que fazia parte do quadro efetivo de funcionários da Fundação CASA do município de Guarujá - SP.
4 Foucault (1987) utiliza o termo dispositivo para demarcar um conjunto heterogêneo contendo discursos, instituições, leis, medidas administrativas, proposições filosóficas, morais. É uma formação que, inserida em determinado momento histórico, tem como função responder uma urgência.
5 A docilização é o objetivo da disciplina. Segundo Foucault (1987), a disciplina fabrica corpos submissos e exercitados, corpos "dóceis". (p. 127).
6 Entre algumas atividades oferecidas (além da educação formal), citamos os cursos profissionalizantes (hotelaria, panificação), a prática esportiva (futebol, basquete, musculação, xadrez), as atividades culturais, como dança (street dance), capoeira, teatro, além de oficinas de artesanato e de computação.
7 "Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas". BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n. 8.069 de 13 de julho de 1990. Seção VII – Da Internação – parágrafo único, artigo 123.
8 No grupo matutino concentravam-se os adolescentes que estavam matriculados nas séries iniciais do Ensino Fundamental (oferecido no período da tarde). Eram adolescentes mais jovens, com idade entre 12 e 14 anos, muitos deles não alfabetizados, o que demandou certa adaptação do conteúdo a ser discutido, priorizando-se materiais lúdicos para a abordagem dos temas.
9 Conceito da teoria moral de Kant, que serve de base para a teoria moral de Piaget. Segundo esses autores, a consciência moral, ou os critérios da moralidade, pertence à razão, ver: FREITAG, B. Itinerários de Antígona: A questão da moralidade. São Paulo: Papirus, 1992.