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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.11 no.2 Ribeirão Preto  2010

 

ARTIGOS

 

As tensões entre a individualidade e a grupalidade

 

The tensions between individuality and groupality

 

Las tensiones entre la individualidad y la grupabilidad

 

 

Lazslo Antonio Ávila 1

Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, São José do Rio Preto, SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo trata de um tema inarredável em qualquer discussão, seja teórica ou técnica, sobre os grupos humanos. Por definição, o grupo é composto por indivíduos, porém não se resume a eles. O grupo é uma totalidade, sempre maior do que suas partes, os indivíduos. Assim, as tensões entre a individualidade e a grupalidade tanto fazem parte da própria concepção do que seja o Grupo quanto são parte inerente do manejo técnico dos grupos. Para fundamentar nossa argumentação recorremos a Freud e a René Kaës.

Palavras-chave: Grupo; Indivíduo; Psicanálise; Grupanálise.


ABSTRACT

The present work deals with an irremovable issue (indispensable theme/topic) in any discussion, both theoretical and technical, about human groups. By definition, the group is composed by individuals, although it cannot be reduced to them. The group is a totality, always greater than its constituent parts, the individuals (always greater than the individuals who constitute its parts). Thus, tensions between individuality and groupality are not only part of the conception of what the Group is, but they are also an inherent part of the technical handling of the groups. In order to give basis for our ideas, we use Freud and René Kaës.

Keywords: Group; Individual; Psychoanalysis; Group-analysis.


RESUMEN

El presente artículo se refiere a un tema inamovible en cualquier discusión, sea teórica o práctica, acerca de los grupos humanos. Por definición, un grupo es compuesto por individuos, sin embargo no se resume a ellos. Un grupo es una totalidad, es siempre mayor que sus partes, los individuos. Así, las tensiones entre la individualidad y la grupabilidad hacen parte tanto a la propia concepción de lo que es un Grupo; Ya que es parte inherente al manejo técnico de los grupos. Para fundamentar nuestro argumento recurrimos a Freud y a René Kaës.

Palabras clave: Grupo; Individuo; Psicoanálisis; Grupo-análisis.


 

 

Formar um grupo, seja terapêutico, operativo ou de reflexão, envolve um grande número de variáveis. Objetivos, local, participantes, encaminhamentos, diagnósticos, modelos de intervenção etc., vão compor a complexa trama que irá configurar a especificidade daquele grupo. Porém, há certa dimensão fundamental, inerente à composição de qualquer grupo, e que se repete necessária e obrigatoriamente: o grupo é formado por indivíduos e suas relações, e entre cada indivíduo e os demais, assim como entre cada indivíduo e o conjunto dos demais, isso é, o grupo, ocorrem tensões.

De que natureza são essas tensões? Com quais modelos teóricos podemos contar para processar uma investigação da origem, do desenvolvimento e das consequências dessas tensões? Quais são seus desencadeantes? Quais seus componentes? O que motiva o coordenador/terapeuta e o próprio grupo a buscar seus determinantes? Como atuam sobre o coordenador/terapeuta, a nível contratransferencial, esses processos grupais? Como essas tensões podem funcionar enquanto recurso para a compreensão da dinâmica das interações grupais? O que contribui para o seu esclarecimento e resolução?

Dentre os principais autores que vêm contribuindo para a construção da teoria e técnica da coordenação dos grupos, priorizaremos aqui as concepções originais de Freud e Kaës. Esses autores apresentaram diversas ideias e constructos úteis para a investigação dos fenômenos grupais e cada um deles se preocupou, ao seu modo, com a natureza das tensões indivíduo-grupo.

Comecemos por Freud. Sem dúvida alguma, o marco zero de qualquer concepção psicanalítica dos grupos é o seminal trabalho intitulado "Psicologia das Massas e Análise do Ego", que já foi pormenorizadamente discutido em muitos trabalhos. Cito aqui um comentário que fiz anteriormente: "Fazemos aqui a versão do título em espanhol, que é também a do título em alemão, porque consideramos que o tradutor inglês, e depois o que verteu para o português, utilizou de forma, a nosso ver, inadequada a palavra "Grupo" para traduzir a alemã "Massen". O texto freudiano deixa, de forma incontroversa, estabelecido que Freud descreve ora a massa no sentido de multidão, ou a massa enquanto instituição, quando fala do Exército e da Igreja... Pensamos que esta uniformização é inadequada, pois reduz a especificidade do conceito "Grupo". (ÁVILA, 2000, p. 46)

Já na escolha do título, Freud se preocupa com o rigor das conceituações. Em sua famosa introdução, ele destaca a proximidade da psicologia social ou coletiva com a psicologia individual, dado que todos os processos psíquicos da mente individual incluem necessariamente a referência ao "outro", seja como objeto, como auxiliar, como adversário ou como modelo (FREUD, 1921 / 1973, Psicologia de las Masas..., p. 2563). Observa-se que essa inerência básica, que faz do "outro" uma parte obrigatória do "Eu", já nos remete a uma discussão sobre como, ao se situar num grupo, cada indivíduo defronta-se imediatamente com dois grupos: o grupo "real", externo, concreto, e outro grupo, também "real", mas feito de personagens "internos", as introjeções do sujeito, suas imagos, aquilo que Melanie Klein (KLEIN, 1946/1991) denominou "objetos internos" e que foi extensamente pesquisado por Enrique Pichon Rivière (1977). Como esses dois grupos se relacionam tem sido objeto de muitas teorizações na psicanálise dos grupos.

Mas retomando o texto freudiano, encontramos a seguinte descrição: "No que diz respeito à produção intelectual está, em troca, demonstrando que as grandes criações do pensamento, as descobertas capitais e as soluções decisivas de grandes problemas não são possíveis senão ao indivíduo isolado que trabalha na solidão" (FREUD, 1921, p. 2570) Após ter assinalado o quanto, na massa, o indivíduo pode sofrer efeitos do contágio emocional que o levem a um decréscimo de seu julgamento crítico e de seu controle sobre seus impulsos, Freud vai valorizar essa conjugação entre cada indivíduo e o conjunto do qual ele é parte integrante: "No entanto, também a alma coletiva é capaz de dar vida às criações espirituais de ordem genial, como prova, em primeiro lugar, o idioma e depois os contos populares, o folclore, etc... Haveria, além disso, de precisar-se o quanto devem o pensador e o poeta aos estímulos da massa e se são realmente mais do que os aperfeiçoadores de um trabalho anímico no qual os demais colaboram simultaneamente." (p. 2571)

Retomando seu texto de 1912, Totem e Tabu, Freud irá discutir a relação entre o líder e o grupo, representantes modernos da horda primitiva, e construirá uma ousada hipótese: "Haveremos, pois, de deduzir que a psicologia coletiva é a psicologia humana mais antiga. Aquele conjunto de elementos - que isolamos de todo o referente à massa para construir (grifo meu) a psicologia individual - não se diferenciou da antiga psicologia coletiva se não mais tarde muito pouco a pouco, e ainda hoje em dia, só parcialmente". (FREUD, 1921, p. 2596)

Essa ideia retorna modificada em 1923 no magistral "O Ego e o Id":

Os acontecimentos do Ego parecem, a princípio, não ser suscetíveis de constituir uma herança, porém quando se repetem com freqüência e intensidade suficientes em indivíduos de gerações sucessivas, se transformam, por assim dizer, em acontecimentos do Id, cujas impressões serão conservadas hereditariamente. Deste modo abriga o Id em si inumeráveis existências do Ego, e quando o Ego extrai do Id seu Super-Ego, não faz, talvez, senão ressuscitar antigas formas do Ego. (El Yo y el Ello, 1923/1973, p. 2716)

Esses dois textos, escritos com um intervalo de apenas dois anos, demonstram a preocupação de Freud em integrar sua compreensão da riqueza do psiquismo, revelada exatamente na transferência e na participação do indivíduo em inúmeros grupos, instituições e massas:

Vemos surgir um acúmulo de complicações... Cada indivíduo forma parte de várias massas; se acha ligado, por identificação, em diversas direções, e construiu seu ideal de ego conforme aos mais diferentes modelos. Participa assim de muitas almas coletivas: as de sua raça, sua classe social, sua comunidade religiosa, seu estado, etc., e pode, além disso, elevar-se até certo grau de originalidade e de independência. Tais formações coletivas, permanentes e duradouras, produzem efeitos uniformes. (FREUD, 1921, p. 2600)

Passemos agora para René Kaës. Em sua obra mais significativa, encontramos:

‘Grupo’ nesta obra irá designar a forma e a estrutura paradigmáticas de uma organização de vínculos intersubjetivos, sob o prisma de que as relações entre vários sujeitos do Inconsciente produzem formações e processos psíquicos específicos. Essa estrutura intersubjetiva de grupo, as funções que desempenha e as transformações que nelas se manifestam são perceptíveis nos grupos empíricos e contingentes. Os grupos empíricos formam o quadro de nossas organizações intersubjetivas organizadas; eles se recortam sobre um fundo de organizações mais complexas (grupos sociais-históricos, institucionais, familiares) e formam o fundo das figuras intersubjetivas do casal, do par, do trio, por oposição à singularidade do sujeito. (...) ‘Grupo’ irá designar também a forma e a estrutura de uma organização intrapsíquica caracterizada por ligações mútuas entre seus elementos constitutivos e pelas funções que desempenham no aparelho psíquico. De acordo com essa perspectiva, o grupo se especifica como grupo interno, competindo à pesquisa descrever suas estruturas, funções e transformações. Na concepção proposta por mim, a grupalidade psíquica é uma organização da matéria psíquica. (KAËS, 1997, p. 18)

Essa longa citação permite a apreensão do essencial da concepção kaesiana de que o grupo conforma uma realidade psíquica própria e ao mesmo tempo é o aparelho capaz de gerar ao menos uma parte da realidade psíquica dos membros do grupo. Assim, o grupo configura uma entidade psíquica regida por determinações e processos próprios capazes de produzir conteúdo psíquico nos participantes.

Diz Kaës que:

A realidade psíquica do nível de grupo se apóia e se modela sobre as estruturas da realidade psíquica individual, principalmente sobre as formações da grupalidade intrapsíquica. Estas são transformadas, dispostas e reorganizadas conforme a lógica do conjunto. Disso resultam formações e processos psíquicos que podem ser denominados grupais na medida em só são produzidos pelo agrupamento. O grupo desde então deve ser pensado como o aparelho dessa transformação da matéria psíquica, o lugar de sua transmissão. Diremos também que os efeitos subjetivos e o valor da realidade psíquica do nível de grupo são constituídos pela contribuição de cada um no grupo, parte constituída daquilo que o individuo coloca, investe, projeta, rejeita e põe à disposição no grupo. (KAËS, 1977, p. 86)

E mais adiante: "No grupo, cada sujeito é solicitado nas múltiplas facetas de sua grupalidade psíquica, nas suas colocações fantasmáticas, na malha de suas identificações, de suas relações de objeto, no seu Eu dividido, plural, multifacetado". (KAËS, 1977, p. 104)

Vemos, então, como tanto Freud quanto Kaës não apenas insistem na interpenetração das realidades do grupo e do indivíduo, mas também nos obrigam a pensar que essas duas entidades fenomênicas constituem, de fato, duas facetas de uma mesma realidade una. Ao coordenador de grupos cabe identificar as contínuas interações do mundo interno de cada participante do grupo (incluindo a ele mesmo, em sua análise da contratransferência) com o mundo externo desses outros significativos que configuram o grupo.

Analisar a grupalidade consiste em indagar como o grupo se faz ao se constituir de indivíduos e, ao mesmo tempo, como cada indivíduo se faz ao se constituir de grupos. Desse modo, podemos inverter a clássica e óbvia afirmativa de que o grupo é formado por indivíduos e dizer, com razão, que o indivíduo é formado por grupos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ÁVILA, L. A. A alma do grupo. Pulsional: Revista de Psicanálise, São Paulo, v. 13, n. 136, p. 46-53, 2000.         [ Links ]

FREUD, S. Psicologia de las masas y analisis del yo. In: FREUD, S. Obras Psicológicas Completas. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1973. Original publicado em 1921.         [ Links ]

FREUD, S. El yo y el ello. In: FREUD, S. Obras Psicológicas Completas. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 1973. Original publicado em 1923.         [ Links ]

KAËS, R. O grupo e o sujeito do grupo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.         [ Links ]

PICHON-RIVIÈRE, E. El proceso grupal. Buenos Aires: Paidós, 1977.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Lazslo Antonio Ávila
E-mail: lazslo@terra.com.br

Recebido em 10/06/2011.
Aceite Final em 01/07/2011.

 

 

1 Lazslo Antonio Ávila é psicólogo, grupoanalista, mestre e doutor pela Universidade de São Paulo. Membro e docente da SPAGESP e do NESME. Livre Docente da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, SP.