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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.11 no.2 Ribeirão Preto  2010

 

ARTIGOS

 

Além do riso: compromisso social e escuta psicanalítica em uma escola de circo

 

Beyond laughter: social commitment and psychoanalytic listening in a circus school

 

Más allá del riesgo: compromiso social y escucha psicoanalítica en una escuela de circo

 

 

Alice Costa Macêdo 1; José Francisco Miguel Henriques Bairrão 2

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Há onze anos, a Escola de Circo Só Riso foi fundada por uma moradora de um bairro de classe popular, em Ribeirão Preto. Perante uma demanda sobre dificuldades de aprendizagem, a neta da fundadora do circo foi atendida por uma psicóloga voluntária. Uma questão escolar revelou-se porta-voz de inúmeras questões relativas à família circense. Portanto, partindo-se do pressuposto de que os significantes circulam e atingem muitas pessoas (não somente um sujeito empírico isolado), este artigo apresentou uma escuta clínica sobre sentidos que atravessam uma família a partir de um atendimento individual com base na psicanálise lacaniana. Desse modo, interpretações e elaborações da criança, durante seus desenhos e brincadeiras, permitiu compreender que, estando degradada a função paterna, a família torna-se desamparada pelo simbólico. Sem portas (nem pernas), não existem saídas, não há possibilidades de trânsito, o sujeito paralisa-se, incapaz de deslocamentos significantes. Por isso, o trabalho realizado junto à criança consistiu em reposicionar papéis, reabilitar “pernas”, (re)situar o sujeito diante de seu desejo, edificando os muros e as portas definidoras de espaços (dentro e fora, público e privado, eu e outro).

Palavras-chave: Circo; Psicanálise; Psicologia social.


ABSTRACT

Eleven years ago the Circus School 'Só Riso' was founded by a resident of a working class neighborhood in Ribeirão Preto. With a demand on learning difficulties, the circus founder’s granddaughter was treated by a volunteer psychologist. The treatment proved to be a standard for numerous issues related to the circus family. Therefore, assuming that disseminated signifiers reach many people (not only isolated empirical subjects), this paper presents a clinical listening to meanings that affect an entire family through an individual treatment based on Lacanian psychoanalysis. Thus, interpretations and elaborations of the child during his drawings and jokes showed the understanding that, if the paternal figure is degraded, the family becomes symbolically helpless. Without doors (or legs) there are no possible escapes, there is no possibility of transit. On account of it, the subject becomes paralyzed, unable to displace signifiers. That is why the attempt done with the child consisted on the repositioning of subjective roles; on the rehabilitation of symbolical "legs". In other words, it consisted on the relocation of the subject towards his own desire by building the walls and doors that define spaces of being (both inside and outside, public and private, self and other).

Keywords: Circus; Psychoanalysis; Social psychology.


RESUMEN

Hace once años, una moradora de un barrio de clase popular fundó la Escuela de Circo Só Riso, en Ribeirao Preto. Trás un reporte de dificultades de aprendizaje, la nieta de la fundadora del circo fue atendida por una psicóloga voluntaria. Dicho asunto escolar se reveló portavoz de innumerables cuestiones relativas a la familia circense. Sobre el tema implícito de que las evidencias circulan y alcanzan a muchas personas (no solamente a un sujeto empírico aislado) este artículo presenta una escucha clínica sobre la vivencia que atraviesa una familia, a partir de una atención individual basada en el psicoanálisis lacaniano. De ese modo, interpretaciones y elaboraciones de la niña en sus dibujos y juegos, permitieron comprender que, estando degradada la función paterna, la familia se torna desamparada por lo simbólico. Sin puertas (ni piernas) no existen salidas, no hay posibilidad de transitar; el sujeto se paraliza, incapaz de realizar transferencias significativas. Por eso el trabajo realizado con la niña consistió en reposicionar papeles, rehabilitar “piernas” (re)situar al sujeto delante de su deseo, para edificar así los muros y las puertas que determinan espacios (dentro y fuera, público y privado, yo y otro).

Palabras clave: Circo; Psicoanálisis; Psicología social.


 

 

INTRODUÇÃO

Há onze anos, a Escola de Circo Só Riso foi fundada por uma moradora de um bairro de classe popular no quintal de sua própria casa, na cidade de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo. Hoje, em 2011, o projeto conta com sessenta e três alunos.

Em 2007, a Escola começou a receber visitas de uma psicóloga voluntária (um dos autores) que acompanhava as atividades do Projeto Social. Certo dia, a fundadora da Só Riso veio conversar com um dos autores sobre a neta que, embora já tivesse seis anos, apresentava muitas dificuldades na aprendizagem da leitura e da escrita, a ponto de haver uma recomendação explícita da professora da escola para que a família a encaminhasse a uma psicoterapia.

Iniciou-se assim um atendimento individual com a menina. Percebeu-se, ao longo das sessões, que as dificuldades escolares apareciam como “porta-voz” de outras questões ocultas sob a “lona”, pois nos bastidores “psíquicos” do circo e subjacente à angelicalidade da criança, emergiam o terror e o trágico.

Nesse sentido, buscou-se apresentar em que medida o atendimento da pequena artista permitiu a compreensão mais profunda de uma “família circense”, cujos membros compõem os pilares da Escola Só Riso: a avó fundou o projeto e é responsável pelo seu funcionamento; a mãe (filha mais velha da fundadora) praticava números que envolviam fogo e era bailarina de dança do ventre; o pai da pequena é dançarino; as tias e tios são professores de malabares, acrobacias, perna de pau, dentre outros estilos.

 

MÉTODO

O que significa “ser analista”? Certamente, não se trata de uma profissão, e sim de um lugar que não se confunde com o sujeito empírico que o ocupa. Trata-se de uma posição simbólica que pode ser (ou não) ocupada por um instante, pelo espaço ou o tempo de uma sessão (BAIRRÃO, 2001). Diante disso, surge a seguinte pergunta: o lugar do analista deve estar restrito ao enquadre da clínica tradicional ou pode estender-se a outras dimensões de atuação?

O lugar do analista pode se fazer presente, sim, em contextos diversos ao seu consultório, a saber: movimentos sociais, projetos comunitários ou situações cujo foco são as problemáticas socioculturais. Em quaisquer desses casos (na clínica tradicional ou fora dela), o analista se presta a dar ouvidos e voz a sujeitos (não pessoas empíricas). Sendo assim, esses sujeitos poderiam ser instituições, comunidades, ONGs, escolas, entre outros.

Portanto, partindo-se do pressuposto de que uma “clínica social” é possível, o analista deve, pouco a pouco, perceber que cada instante de interação com os membros de um projeto comunitário, por exemplo, torna-se uma preciosa possibilidade de escuta do desejo do sujeito. Dessa forma, a partir de um atendimento individual, é possível escutar sentidos em circulação na comunidade ou marcas inscritas em um todo muito mais amplo do que um sujeito empírico falante.

Isso é possível porque há “uma interseção entre uma subjetividade enunciante e sua inscrição no Outro, segundo linhas de força comuns às condições histórico-existenciais” (BAIRRÃO, 1999, p. 31) de uma comunidade. Para Lacan (1957-1958/1999), o Outro pode ser tratado como “lugar do código”, como a estrutura da linguagem em funcionamento ou, como sugerem Freire e Costa (2008), o Outro ser alojado como alteridade possível. Bairrão (1999) refere-se ao Outro como patrimônio simbólico, genérico da humanidade e peculiar a cada sujeito: graças ao Outro, é possível “tratar da cultura e do sujeito sem rupturas, pois os seus elementos mínimos, os significantes, podem ao mesmo tempo ter implicações da maior universalidade e as mais sutilmente singulares, dependendo da maneira particular como concernem a cada um” (BAIRRÃO, 1999, p. 30).

Diante disso, Bairrão (2005, p. 442) define a dimensão social como uma rica possibilidade da clínica:

O social da psicologia psicanalítica não é uma extensão do saber sobre o psiquismo individual ao social. É a psicologia de cada sujeito que já é constitutivamente social, embora por ser meramente psicologia não precise nem tenha como dar conta de toda a verdade do social (BAIRRÃO, 2005, p. 442).

Sendo assim, os significantes circulam social, cultural e temporalmente, atingindo cada sujeito de modo singular, porém, ao mesmo tempo, eles inter-relacionam-se e estabelecem laços entre um número enorme de pessoas (BAIRRÃO, 2005). Bairrão (2005) destaca ainda que significantes estabelecem laços culturais e intergeracionais, inscrevendo possibilidades de memórias não apenas intrassubjetivamente, mas, sobretudo, rememorações que se delineiam intersubjetivamente.

Nesse sentido, este artigo se propõe como um estudo de caso: trata-se da escuta clínica sobre sentidos que atravessam uma “família circense”, a partir de um atendimento individual de uma criança, com base na psicanálise lacaniana.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O Pai: Homem Palhaço Terrível

O Circo Só Riso funciona em uma casa de mulheres. A fundadora teve seis filhos, cinco meninas e um menino, estando atualmente todos adultos. O filho único foi embora no início de sua juventude. As filhas que ficaram costumam dizer: “ele não aguentou uma casa de mulheres”.

A fundadora da escola casou-se pela primeira vez e teve uma menina, que é a mãe da pequena artista circense (criança atendida por um dos autores deste artigo). O único homem de quem lembra saudosa e com carinho é esse primeiro companheiro, “homem bom”, mas morto. Depois, ficando viúva, casou-se com o segundo marido, com quem teve mais cinco filhos. Devido ao alcoolismo e à agressividade, separou-se do segundo pai de suas crianças.

Uma referência paterna deveria proteger, impor limites, separar. Porém, degradada a função paterna, o homem é mal visto: confunde, assedia a intimidade e viola o infantil. O masculino adulto é percebido como potencialmente agressor e, em decorrência, temido.

No circo, três filhas já são casadas e duas estão namorando há algum tempo. Elas assim se definem: “aqui, as mulheres são os homens da casa”. A mãe da pequena artista circense, por exemplo, trabalha, paga o aluguel, sustenta a casa, lava, passa, cozinha e cuida das crianças. Há muitos anos, ela também se dedicava ao circo, porém precisou escolher entre sustentar a família e dar continuidade à carreira artística. Já não dança e não “brinca com fogo”, pois trabalha como camareira em uma rede de motéis. O próprio “homem da casa” (o marido) diz: “ela é que é o chefe da família, porque ela não me deixa ser”. Ele é bailarino e dá aula de dança de rua: não abre mão da arte, costuma dedicar os finais de semana ao seu grupo de alunos na praça, o que causa grande descontentamento à esposa.

Esse casal tem dois filhos: a pequena garotinha, angelical e feminina (paciente de um dos autores); e seu irmão, o “terrível” (assim são caracterizados pela própria família). Ela brinca de odalisca e fantasia-se de bailarina, sob os olhos de censura do pai, que é “apaixonado” pela dança e dedica-se com ardor aos seus alunos, mas não quer que a filha seja “dançarina”.

Em síntese, a doce criança (seis anos) deseja se tornar a menina bailarina aos olhos do pai, que prefere reconhecê-la como anjo a vê-la vestida de odalisca. O irmãozinho (dois anos), por ser homem, por ser “terrível”, brinca de bicho, fantasia-se de tigre e rosna para a mãe, porque essa é a sua masculina imagem diante do olhar do outro.

Os desenhos da filha têm sereias, princesas e bailarinas, mas nunca homens, maridos e pais, “porque eles nunca cabem na folha branca”, diz a pequena à psicóloga. Nessa família de circo, parece haver um frequente “ataque” à função paterna: o lugar do pai é sempre depreciado nas palavras da avó, na conduta das tias, na relação dos pais e, por fim, na interpretação tecida pelas crianças durante os desenhos e brincadeiras.

A diferenciação entre masculino e feminino soa destrutiva: o homem é associado ao instinto, animalesco, não podendo, portanto, assumir um lugar, o de “homem” (da casa); a mulher é pura virtualidade, é representada por seres míticos, presentes no cenário mágico infantil – anjos, sereias, princesas odaliscas.

Em que resultará um “encontro” entre animais e anjos? O fruto de um “cruzamento” entre ambos não é humano, não é possível. Quem possibilita ao sujeito a condição “humana” é o simbólico (em suas possibilidades de construção de sentido, deslocamentos significantes, criações metafóricas), porém, estando degradada a função paterna, estará o sujeito desamparado pelo simbólico.

A Mãe: Sereias Bailarinas

O atendimento individual da criança (a pequena garotinha) acontecia sempre uma vez por semana na casa da avó (ou seja, no próprio circo). Certo dia, ela trouxe gravuras e colagens a respeito de lendas folclóricas brasileiras. Ela foi incentivada a contar uma daquelas “histórias encantadas”: a pequena desenhista escolheu um dos mitos, a Iara, mas preferiu contar a sua própria lenda, com base em um desenho de sua autoria (ela pintou um fundo azul na folha branca, representando o mar, onde foram ilustrados quatro personagens: uma menina, um bebê, uma sereia e uma baleia). Nas palavras da criança:

Essa aqui é a menina com perna, uma menina, não sereia. Essa é a sereia, ela não tem perna, mas mesmo uma sereia e outra não sereia poderiam ser amigas. Elas estavam brincando de mamãe e filhinho no rio. A mãe era a sereia e a menina era a filha. Tinha um bebê que não sabia nada e, por isso, a sereia cuidava do bebê. Essa cama era onde o bebê dormiu. Agora era um outro bebê. O bebê era da menina com pernas. Mas ela não podia deixar o bebê assim sozinho no rio. Então, uma baleia comeu o bebê. Tinha um peixe que protegia o bebê, mas mesmo assim a baleia engoliu ele. Mas engoliu sem mastigar e depois a baleia cuspiu o bebê no mar. Por isso, a menina com pernas não chorou porque a baleia devolveu o seu bebê. Se a menina e seu bebê se molhassem, eles iam virar sereia para sempre e não iam mais poder sair da água. Por isso, eles não podiam se molhar. Como no filme da sereia. Se entrar no mar, fica para sempre.

Segundo Bairrão (2004), o que é narrado pelo sujeito apresenta-se, a princípio, como significante: a história da sereia parece comunicar algo sobre sua narradora (sem dúvida), mas atravessa igualmente muitos outros falantes (de sua experiência cotidiana) e outros contadores de lendas brasileiras (o pai, a mãe, os avós, os tios, enfim, toda uma família que está inscrita no universo simbólico circense permeado por “significantes mágicos”).

Os enredos criativos da Iara tomam corpo nos desenhos e nas narrativas da criança. São significantes que não se reduzem a palavras, pois têm algo a dizer a respeito dos destinos de uma família, cujas marcas reverberam na voz de uma menina.

A mãe-sereia, em que falta uma metade humana mulher. Uma mãe sem “pernas de gente”, uma mulher “não-bailarina”, sem movimento, que trabalha e executa seus serviços corriqueiros: está paralisada, atada à dimensão de uma vida doméstica (ou de “arrumadeira”), enquanto o pai mantém as pernas (é dançarino).

É possível estabelecer uma hipótese interpretativa, destacando que a menina associa, falicamente, o “ter pernas” ao masculino, ao passo que a mulher, dedicada exclusivamente à família e ao sustento da casa, abre mão do circo e fica “sem pernas”. “Perna” falicamente associada ao desejo do sujeito.

O “bebê que não sabia nada”: a garotinha aparece na história como o personagem pequeno, desprotegido e vulnerável (o bebê), aquele que não sabe nada, afinal foi encaminhada à psicóloga pela avó porque não consegue aprender a ler e escrever. Nesse sentido, a narradora explica a necessidade do bebê (ela mesma) de ser cuidado pela mãe, justamente por “não saber nada”.

Se em um momento o bebê é filho da sereia e deve ser cuidado por ela, em outro momento o bebê é descrito como filho da “menina com pernas”. Nesse sentido, há uma identificação da criança com a mãe (o bebê que precisa ser cuidado ora é dela ora é da mãe) e uma “automaternagem” em razão da angústia diante da falta de cuidados maternos.

Posteriormente, há um medo de tornar-se sereia para sempre, indiferenciada dela, incorporada a ela, completamente imersa, tragada, no mar sem volta. Há, na cena, um temor de voltar a ser engolida pela mãe, retornar às “águas”, sem pernas: se assim o fosse, ela e a sereia representariam um só corpo. Por esse motivo, algo a mantém fora do mar, “separada”, em terra firme (na areia), com os pés no chão. Esse “algo” que a impede de ser “engolida” (fundida à mãe) traduz-se em um corte, uma palavra, uma “pele” que defina dentro e fora, eu e outro. Trata-se da função paterna (o simbólico), que esteja encarnada, inclusive, arquitetonicamente na casa e na estrutura física dessa família circense.

Casa-Corpo

A família nuclear da paciente (o pai, a mãe, ela e um irmão mais novo) mora em uma casa dividida em cinco cômodos, porém sem quaisquer portas em seu interior: todos dormem no mesmo quarto; o beliche das crianças está quebrado. Portanto, hoje só há uma cama de criança e uma cama de casal para as quatro pessoas da família.

O casal não tem privacidade. Sem véu que cubra, sem pele que proteja, não há dentro e fora, o que existe está exposto em carne viva, porque aquilo que se permite aparecer não é amável, mas agressivo demais para os olhos infantis.

As questões relativas à ausência de privacidade (uma pele que separe o público e o privado e que resguarde segredos) apareceram com clareza durante uma brincadeira, proposta pela psicóloga, com a pequena circense (sua paciente).

A psicóloga levou ao atendimento sucatas e uma lâmina de isopor. A proposta era construir a maquete de uma casa de família. Observou-se a necessidade da criança em “erguer”, em primeiro lugar, um muro feito de caixas de remédio, cuidando para que não houvesse nenhum buraco e para que os espaços estivessem nitidamente delimitados: o dentro e o fora.

Começaram-se as divisões dos cômodos, sendo o quarto o grande motivo do conflito: era um espaço pequeno demais (no cantinho do isopor) para caber duas crianças. Solução: foram instaladas duas camas (cada filho com a sua, bem separados).

Indagada quanto ao lugar dos pais, a pequena arquiteta percebeu que um quarto só seria pouco na casa. Criou-se um pequeno cômodo separado. A cama do casal era o pote de margarina. Mas a jovem engenheira resolveu que os pais deveriam dormir dentro da cama-pote. Colocaram-se “os dois” lá dentro e a filha-construtora restituiu o véu ao quarto dos pais, quando cobriu a “caixa-cama de casal” com a peça que lhe cabia, a própria tampa do pote de margarina. Ali e agora os adultos e suas crianças dormem cada um o “sono dos justos” porque existem posições e lençóis que os recobrem diversamente, distingue-os, demarcam lugares.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desse modo, partiu-se da hipótese, como afirma Bairrão (1999), de que a história pessoal e social podem ser duas facetas da mesma realidade: uma criança encaminhada a atendimento revela dificuldades de aprendizagem. Porém essas questões parecem mais psíquicas do que escolares, ou ainda, revelam aspectos mais familiares do que individuais, e, neste segundo caso, os conflitos se elaboram a partir de materiais simbólicos compartilhados.

Se o pai não tem lugar ou não é humano (e sim animal), resta uma função paterna degradada e, sendo assim, há um “sentir-se sem pernas”, destituído de possibilidades de trânsito: o sujeito fica paralisado, afinal de que outro modo ocorreriam deslocamentos de significantes, metáforas e construções de sentidos, senão pelas pernas simbólicas?

Portanto, sem função fálica, a família tornar-se-ia desamparada pelo simbólico. O sujeito estaria aprisionado, sem movimento, pois só se pode sair de um lugar para outro quando se pode mover: se não houver portas (nem pernas), não existem saídas, não existem caminhos, não há um sujeito capaz de deslocar-se. Se não houver algo para separar (muro de caixas de remédio, véu de plástico, pele de isopor, tampa de margarina), passagens não são possíveis, não há dentro e fora, eu e outro - tudo se torna uma coisa só, indissociável.

Por isso, o trabalho realizado junto à criança consistiu em reposicionar papéis, reabilitar “pernas”, (re)situar o sujeito diante de seu desejo, edificando os muros e as portas definidoras de espaços. Enquanto a pequena artista interpreta e elabora significantes em circulação em sua própria família circense, os autores apenas testemunham, segundo Bairrão (2001), o ato enquanto produção do sujeito; escutam o outro e o que dizem (ou não) suas palavras, seus desenhos de mitos populares, lendas folclóricas e “obras de sucata”.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FREIRE, A. B.; COSTA, C. A. R. O literal e a surpresa: “os estágios preliminares do chiste”. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, Rio de Janeiro, v. 11, n. 2, 2008.         [ Links ]

LACAN, J. O Seminário – Livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: JZE, 1957-1958/1999, 531 p.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Alice Costa Macêdo
E-mail: alicemacedo1984@yahoo.com.br

Recebido em 07/04/2011.
1ª Revisão em 25/06/2011.
Aceite Final em 30/06/2011.

 

 

1 Graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). E-mail: alicemacedo1984@yahoo.com.br.
2 José Francisco Miguel Henriques Bairrão é Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas e docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

* Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio financeiro.