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Revista da SPAGESP

Print version ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.12 no.1 Ribeirão Preto June 2011

 

ARTIGOS

 

Trabalho coletivo em estágio supervisionado: a emergência da subjetividade no contexto escolar

 

Collective work in supervised apprenticeship: the emergence of subjectivity in the school context

 

El trabajo colectivo de supervisión: la emergencia de la subjetividad en el contexto escolar

 

 

Aline Gabriela A. do Nascimento 1; Vanessa Purificação Garcia 2; Soraya Maria Romano Pacífico 3

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com este artigo, pretendemos apresentar uma situação de estágio vivenciada em uma Escola Municipal de Ribeirão Preto, em que o trabalho coletivo foi o pilar de sustentação de nossa experiência. Tendo como fundamentação teórica a Análise do Discurso francesa, trabalhamos um projeto de intervenção em Língua Portuguesa que teve como tema "ser criança". Objetivamos proporcionar a uma turma do 2º ano do Ensino Fundamental o aprendizado mediante o trabalho em grupo, visando à emergência da subjetividade, por meio da interpretação e produção textual.

Palavras-chave: Trabalho coletivo; Discurso; Subjetividade.


ABSTRACT

This article intends to present an apprenticeship situation experienced in a Municipal School of Ribeirão Preto, in which collective work was the mainstay. With the theoretical French Discourse Analysis, we worked on an intervention project in Portuguese, with the "being a child" theme. Our main goal was to provide learning within group work in a 2nd grade classroom, aiming to promote subjectivity with textual interpretation and production.

Keywords: Coletive work; Discourse; Subjectivity.


RESUMEN

Tenemos la intención, con este artículo, de presentar una situación de experiencia en una Escuela Municipal de Ribeirão Preto, cuyo trabajo colectivo fue la base de nuestra experiencia. Tenemos la teoría del Análisis del discurso francés como una referencia para el desarrollo de un proyecto de intervención en portugués, cuyo tema fue "ser un niño". Nuestro objetivo es proporcionar espacio de aprendizaje, para un 2 º año de la escuela primaria, a través del trabajo en grupo destinado a la emergencia de la subjetividad, por medio de la interpretación y producción textual.

Palabras clave: Trabajo colectivo; Discurso; Subjetividad.


 

 

INTRODUÇÃO

Nem toda palavra é aquilo que o dicionário diz
Nem todo pedaço de pedra
Se parece com tijolo ou com pedra de giz

(Fernando Anitelli, Sonho de uma Flauta)

Com este artigo, pretendemos apresentar uma situação de estágio vivenciada em uma Escola Municipal de Ribeirão Preto, em que o trabalho coletivo foi o pilar de sustentação de nossa experiência. Esse estágio faz parte da grade curricular do curso de Pedagogia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP).

Trabalhamos um projeto de intervenção em Língua Portuguesa, que teve como tema "ser criança", com uma turma do 2º ano do Ensino Fundamental, de forma que os estudos teóricos realizados no curso de Pedagogia, especialmente no que se refere à disciplina Metodologia de Ensino da Língua Portuguesa, integrassem nossa prática e permitissem às crianças o aprendizado mediante o trabalho em grupo e a emergência da subjetividade, por meio da interpretação e produção textual.

Com base nessas considerações e nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso pecheuxtiana, apresentaremos um relato de experiência que teve o trabalho coletivo como pano de fundo, discorrendo sobre como a relação eu/outro promove a emergência da subjetividade, pois observamos que os discursos e os conceitos formulados constituem-se de significações que extrapolam a visão de linguagem que concebe os sentidos como predeterminados, ou entendidos como únicos, uma vez que, para a Análise do Discurso, o sentido sempre pode vir a ser outro. Concordamos com Scherer, Morales e Leclerq (2003, p. 25) em que:

Os dados e os fatos poderão ser partilhados, mas o acontecimento é único e tudo depende do percurso do próprio sujeito, de seu modo de apreender o mundo e as relações sociais, pois nossa memória, o que narramos, o que podemos narrar, faz parte do discurso coletivo, e é aí que nosso discurso encontra seja o apoio, seja a possibilidade de ser mimado.

Dessa forma, entendemos que, a partir da relação com o outro, via linguagem, e com base na ação da memória discursiva (PÊCHEUX, 2007), o sujeito construirá determinados sentidos e não outros, ao expor-se aos textos trabalhados na intervenção que realizamos, cujos resultados apresentaremos a seguir.

Vale ressaltar que a relação dos sujeitos-escolares com os sentidos, na experiência que será relatada, difere das atividades de leitura e escrita propostas pelo livro didático, em que os alunos são levados a ler e a repetir o sentido legitimado, seja pelo autor do material didático, seja pelo professor.

Segundo Pacífico (2007), essa prática pedagógica faz com que os alunos sejam capturados por sentidos de que é difícil ler e escrever, que eles não sabem redigir, que ler é muito chato. Dessa forma, a manutenção, a construção e a divulgação de sentidos permanecem no poder daqueles que são autorizados a isso. Coracini (1999) também aponta que o livro didático não oferece ao aluno a oportunidade de ocupar a posição discursiva de autor, uma vez que cabe ao aluno legitimar um sentido já dado por outrem.

Em situações como essas, a nosso ver, não há espaço para a emergência da subjetividade, pois o sujeito não está autorizado a exercer gestos de interpretações, uma vez que a interpretação já foi dada por aqueles que têm o poder de dizer. Há uma formação discursiva permitida, cujos sentidos devem ser repetidos; as outras permanecem interditadas para o sujeito-escolar.

 

O ESTÁGIO E O MÉTODO

As experiências de sala de aula analisadas neste trabalho derivam de nossa prática na disciplina de Ação Pedagógica Integrada – API –, composta por uma carga horária de 120 horas. Destas, 60 horas são destinadas ao desenvolvimento do estágio supervisionado, atrelado também às disciplinas de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa e Metodologia do Ensino de Matemática, sendo elaborado um Projeto de Intervenção referente a cada uma dessas áreas do conhecimento.

As atividades desenvolvidas na escola estagiada consistiram em dez horas de observação da rotina da turma; cinco horas de conversa com as crianças (divididas em grupos) acerca de suas concepções de Língua Portuguesa e de Matemática; dez horas para o desenvolvimento do Projeto de Ensino referente à Língua Portuguesa; dez horas para o desenvolvimento do Projeto de Ensino referente à Matemática; duas horas de discussão com os alunos e com a docente da turma acerca das atividades desenvolvidas por nós (na condição de estagiárias) e oito horas de organização e realização da mostra de trabalhos da turma aos pais e colegas de outras classes. Há, ainda, 15 horas previstas para a organização dos materiais relativos ao estágio e momentos de supervisão nos horários de aula, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), referentes à disciplina de API, do curso de Pedagogia, em que são discutidas situações vivenciadas na sala de aula à luz dos estudos teóricos realizados no curso.

Neste artigo, deteremo-nos a algumas situações referentes às nossas conversas com as crianças e à dinâmica de algumas atividades em sala de aula em que percebemos a emergência da subjetividade no contexto do trabalho coletivo de forma mais acentuada.

A experiência de observar a turma com a qual trabalhamos nos reforçou o desejo de articular à prática as concepções teóricas que foram estudadas na disciplina de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa. Apesar da atenção e respeito da professora para com a turma, o ensino da língua ainda se pautava no aprendizado da "palavra isolada" e na cópia, não permitindo aos alunos a compreensão dos variados dizeres que circulam em um texto, da "não neutralidade" da língua. Uma vez que o uso da linguagem se relaciona à posição que o sujeito ocupa em relação a ela e à própria sociedade (TFOUNI, 1995), o aprendizado mediante a "palavra isolada" camufla os sentidos que ela carrega nos diferentes contextos de diferentes sujeitos. A falta de espaços dentro da própria escola nos quais os alunos possam dizer o que pensam e serem ouvidos acerca das temáticas estudadas também nos inquietou e motivou a trabalhar com a turma de forma que as crianças expusessem seus discursos e ouvissem o dos colegas. Acreditamos que, assim, não só os conteúdos são mais bem apreendidos (por serem objeto de discussão), mas a própria coletividade é vivenciada.

Desta forma, buscamos um tema que integrasse os alunos, isto é, que os mobilizasse a contar suas experiências e impressões. Neste sentido, escolhemos a temática "ser criança é..." por sua proximidade às crianças e pela oportunidade dos próprios sujeitos "criança" pensarem sobre si e sobre diferentes crianças que existiram e existem, percebendo a atuação de fatores sociais, econômicos e históricos da construção da infância.

Foram usados como textos de estudo um poema, duas músicas e dois textos pictóricos. O uso desses portadores de texto se baseou na proposição de uma dinâmica em sala de aula pautada na apropriação da cultura humana como um direito e na possibilidade das diferentes interpretações que permite o texto literário. Por conseguinte, o trabalho com o texto literário, em contraposição ao trabalho com textos semelhantes aos encontrados nas cartilhas - em que o uso de determinadas sílabas se sobrepõe à coerência e à literariedade do próprio texto -, permite que a criança interprete a realidade ao seu redor e inscreva sentidos sobre ela, sendo que também para os adultos os textos literários ajudam a ler o mundo.

As atividades com cada texto proposto se deram de maneiras distintas, sendo que a intervenção ocorreu em dez horas distribuídas em quatro dias de trabalho.

 

SER CRIANÇA: SUJEITOS E SENTIDOS CONSTRUINDO A INFÂNCIA

Infância: sf (lat infantia) 1 Período da vida, no ser humano, que vai desde o nascimento até a adolescência; meninice. 2 As crianças em geral. 3 Primeiro período da existência de uma sociedade ou de uma instituição. 4 O começo da existência de alguma coisa (DICIONÁRIO MICHAELIS).

Antes de iniciarmos nossas análises sobre os sentidos construídos pelos sujeitos-escolares sobre infância, consideramos relevante destacar que o sujeito é assujeitado pela língua e com ela constrói múltiplos sentidos, os quais não estão presos nas páginas das gramáticas ou dos dicionários. De acordo com Leray (2003, p. 120):

A língua, quer a designemos pelo termo de língua ou dialeto, corresponde ao funcionamento sócio-histórico da linguagem numa comunidade. O comportamento humano de linguagem carrega, pois, a marca de tudo que determina o homem e principalmente sua capacidade de sociabilidade e de historicidade.

Por ser assim, julgamos que, por meio do trabalho coletivo e da linguagem, os sujeitos-escolares socializam experiências, conhecimentos e interpretações, colocando os sentidos em (dis)curso, curso que fica interrompido quando as atividades de linguagem restringem-se a cópias, preenchimentos de lacunas, a leituras parafrásticas (ORLANDI, 1993).

Conforme a teoria discursiva, sabemos que os sentidos de infância vão além daqueles encontrados no dicionário, tais como lemos nas definições anteriores. Vários são os sentidos naturalizados por nossa sociedade que corroboram essas definições do código, concebendo este conceito como um espaço-tempo restrito ao "início da existência" e, portanto, relativo apenas "às crianças em geral". Contudo, no desenvolvimento deste tema, em sala de aula, ao construirmos coletivamente discursos sobre a infância, percebemos a emergência da subjetividade dos sujeitos-alunos expressa em suas falas, em suas produções textuais, bem como em sua interação com os colegas, confirmando que sempre é possível a construção de sentidos outros.

Ao longo do trabalho, promovemos discussões com a turma, instigando os alunos a exporem suas opiniões acerca do tema e dos sujeitos presentes nos textos estudados para que, na interação e no diálogo, novos dizeres fossem construídos. Sustentando a importância da construção do arquivo, entendido como um campo de documentos disponíveis e pertinentes sobre dada questão (PECHÊUX, 1997), isto é, no acesso ao conhecimento de diferentes textos e sentidos sobre determinado tema para a formação dos discursos, trabalhamos com as crianças o poema "Infância", de Carlos Drummond de Andrade; as músicas "Problema social", de Seu Jorge e "Criança não trabalha", do grupo Palavra Cantada. Além disso, analisamos os textos pictóricos "Futebol", de Cândido Portinari e "Las Meninas", de Diego Velázquez.

Selecionamos, para este artigo, alguns dos momentos do nosso trabalho que, a nosso ver, elucidam a importância da dinâmica do trabalho coletivo, na sala de aula.

Apresentamos o tema a ser trabalhado com a "caixa da infância" que era uma caixa colorida e cheia de objetos. Conforme retirávamos os objetos da caixa, os alunos tinham de responder se os objetos teriam alguma relação com o ato de "ser criança". Adotamos esta estratégia de ensino como forma de questionar os sentidos comuns acerca da infância mediante a fala e a escuta dos alunos com os colegas, visto que é na interação com diferentes dizeres que o discurso de cada um de nós é construído. Neste sentido, o contato com apenas um dizer sobre o tema pode levar a uma imposição de sentido, instaurando o discurso autoritário (ORLANDI, 1996). Assim como Orlandi (1996, p.25), acreditamos que a sala de aula deve ser um lugar privilegiado para a disputa dos sentidos, isto é, para a instauração do discurso polêmico. Desta forma, a mediação docente no ensino da língua materna em contato com a variedade de dizeres se dá enquanto "ação que modifica, que transforma" o próprio aluno. Narramos a seguir um episódio em que, potencialmente, percebemos a importância da mediação docente no sentido de "transformar" discursos.

Conversamos com as crianças acerca de suas concepções de infância, conforme retirávamos os diferentes objetos da caixa. Lá havia brinquedos, livros, papéis coloridos e uma flanela. Na fala das crianças, os principais sentidos sobre "ser criança" foram: brincar, jogar bola e ir para a escola. Após a apresentação do tema às crianças, fizemos o seguinte questionamento: "Para vocês, o que é ser criança?". Elas responderam que ser criança é: "brincar, correr, pular, jogar bola, comer coisas gostosas, estudar um pouco, dormir, ir à casa da "vó" e se machucar de vez em quando também". A fala de um aluno, em especial, chamou-nos a atenção: "É roubar para os negrinhos da rua, eles gostam de roubar para comer". Diante dessa fala, indagamos o porquê do uso do substantivo "negrinhos" para se referir às crianças que vivem nas ruas e qual seria o motivo dos supostos furtos, levando os alunos a perceberem que essa fala explicita uma visão equivocada acerca das crianças abandonadas e do negro.

É importante ressaltar que essa visão equivocada é naturalizada pela ideologia, entendida, conforme a Análise do Discurso, como um mecanismo de naturalização dos sentidos, aquilo que faz parecer natural determinada interpretação e não outra, criando o efeito de evidência dos sentidos (PÊCHEUX, 1995).

Pois bem, essa fala fez com que uma criança da sala (que provavelmente se sentiu diretamente atingida pelo fato de ser negra) se pronunciasse dizendo que, se essas crianças roubavam não era porque gostavam, mas por não terem outra opção, isto é, roubavam "porque senão morreriam de fome". Esta foi uma situação polêmica para a turma em que muitos alunos não se posicionaram e os que expuseram suas opiniões encontraram pontos de vista diferentes dos seus. Segundo Leray (2003, p. 120):

A língua é o primeiro vetor identitário que testemunha a diversidade sociolingüística das comunidades humanas e a construção identitária não se restringe aos limites de um território, mas inscreve-se numa história mestiça de línguas e culturas.

Defendemos a importância da discussão em grupo, visto que na interação com esses diferentes dizeres das próprias crianças é possível desconstruir sentidos já naturalizados em nossa sociedade, que integram o discurso dominante dando a ilusão de serem legítimos e inquestionáveis. No desenvolvimento desta atividade com a "caixa da infância", esforçamo-nos para que todos os alunos da turma se manifestassem ("o grupo") e discutissem entre si as falas dos colegas. Porém, o próprio silenciamento da maioria das crianças indicia o desconforto em se posicionar diante do assunto. Apesar disso, entendemos que é no contato com uma multiplicidade de dizeres e com uma luta de vozes que novas visões de mundo são criadas.

Neste sentido, ouvir e permitir falar às crianças também permite a "transformação" dos dizeres. Não podemos afirmar que a visão de mundo do aluno que se referiu às crianças que vivem na rua como "negrinhas" tenha mudado. Todavia, o contato com o outro/OUTRO dizer que questionou este sentido é um primeiro passo para que essa imagem preconceituosa possa ser questionada.

Dando continuidade ao nosso trabalho, discutimos a obra "Las Meninas", de Velazquez, perguntando à turma que impressões ela trazia e como seriam as meninas retratadas no texto. Algumas destas questões deveriam ser respondidas em grupo, sendo que explicitamos a necessidade de o grupo decidir conjuntamente a resposta para cada pergunta. Percebemos que, ao longo da atividade, os grupos foram aprendendo a responder conjuntamente as questões, dividindo a tarefa, na maioria das vezes, o que incluía até quem seria o redator de cada resposta.

As crianças, ao interpretarem o texto, diziam que, devido à roupa e às carinhas tristes das meninas de Velazquez, elas deviam ficar o dia todo dormindo ou costurando, mas não brincando, como é próprio das crianças. Em resposta à pergunta "Se você vivesse naquela época, acha que seria feliz?" a maioria respondeu que não, porque Paris (a cidade em que o autor morava) era muito fria e porque elas não deveriam brincar, já que o vestido delas era muito pesado.

A partir desse gesto de interpretação, notamos o espanto das crianças ao "conhecerem" uma infância tão diferente daquela representativa do que elas conhecem sobre "ser criança", que tem como símbolo o brincar, o sujar-se, o estudar... Dessa forma, os alunos perceberam como os sentidos - aparentemente já estabelecidos - estão imersos num contexto e se modificam ao longo da história.

No trabalho com o quadro "Futebol", de Portinari, observamos a fala de uma aluna soando diferente das demais: "mas não tem nenhuma menina jogando bola. E eu jogo bola!". Em resposta, um garoto da turma alegou que a aluna "nem jogava bola direito", tendo o apoio da maioria dos meninos. A aluna, então, disse "jogo sim, jogo melhor que você que é menino". Questionamos se mais alguém da turma "jogava bola" e a maioria das meninas respondeu que sim, que gostava desta brincadeira. Desta forma, o sentido dominante de que "futebol é coisa de menino" foi questionado pelas próprias crianças mediante suas experiências, emergindo de sua individualidade, mas se consolidando na coletividade.

Consideramos que o trabalho com os textos literários possibilita uma maior emergência da subjetividade, visto que "Eles possuem, determinadas lacunas ou espaços vazados ou nebulosos que são descobertos e preenchidos pelos leitores" (BRAGATTO FILHO, 1995, p. 15). Desta forma, ao encontrar e preencher esses "espaços vazados", cada criança tece seu próprio tecido, sendo cada um deles único devido ao modo como cada sujeito é afetado pela língua.

Como forma de dar voz aos discursos dos alunos, conversamos com eles buscando compreender suas concepções sobre a Língua Portuguesa. Dialogando com as crianças sobre a importância de "saber ler e escrever", observamos que as respostas se repetiam, em um movimento muito semelhante, em que cada criança reproduzia a resposta já dada pelo colega. Basicamente, versaram sobre a possibilidade de ler livros e textos escritos em geral, sendo importante aprender a ler e a escrever para "não ser burro" e para "ter um bom emprego", isto é, relacionando a leitura e a escrita a necessidades que estão por vir e não como uma atividade relevante ou prazerosa para o hoje.

Não obstante, essa fala revela uma concepção ideológica de letramento (TFOUNI, 1995) que concebe o desenvolvimento como resultado do processo de alfabetização. Logo, nessa perspectiva, aqueles que não dominam a escrita (padrão) seriam menos desenvolvidos. Consideramos preocupante que esta concepção de letramento circule no discurso dos sujeitos-escolares. Novamente, constatamos a importância de ouvir a fala das crianças para que sejam construídos novos dizeres na mediação com diferentes discursos.

A fala das crianças alertou também para a impossibilidade - em âmbito escolar e com base nas atividades de leitura e escrita praticadas nessa instituição - de os sujeitos-escolares escreverem sobre aquilo que gostam e se identificam. "Na escola só pode escrever quando terminou tudo", isto é, no tempo livre, depois que as lições foram realizadas é que os alunos podem escrever sobre aquilo que desejam contar e dizer.

Nesse sentido, uma fala em especial chamou-nos a atenção. O sujeito-aluno relacionava muitos dos assuntos que surgiam em nossa conversa com programas da TV Cultura e com alguns contos que conhecia, isto é, relacionava a presença de portadores de texto que ele encontrava nas ruas e as histórias que lia ou lhe contavam com desenhos assistidos na TV.

Consideramos muito interessante as relações que o sujeito estabeleceu entre esses diferentes textos e discursos. Percebemos que, por ser tratarem de temas com os quais o sujeito se identificava, o estabelecimento de relações entre estes e outros conhecimentos se tornou mais significativo. Cabe aqui ressaltar a importância deste tipo de relação ser trabalhada pela escola para que ela também seja um espaço de palavras acerca do que é importante para as crianças.

Organizar o conhecimento de forma a mobilizar o aluno e abrir espaço para que ele crie, fale e escreva sobre as relações que estabelece com os objetos de estudo propostos pela escola é considerar a criança como ser que é sujeito hoje (PARO, 2010), isto é, que tem desejos, experiências, gostos e voz hoje sem ter sua legitimidade atrelada à idade adulta.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa experiência nos proporcionou a escuta das crianças do segundo ano do Ensino Fundamental, cujos dizeres por elas construídos fizeram ecoar identidades que poderiam ficar aprisionadas caso não lhes fosse permitido interpretar os sentidos aos quais a sala esteve exposta, considerando a opacidade da linguagem e a sua não transparência.

Articulando a relevância do trabalho coletivo à teoria discursiva, segundo a qual o discurso é heterogêneo e se constitui como um palco de luta de vozes em que a alteridade é condição para a construção de sentidos, podemos dizer que o trabalho em grupo possibilitou aos sujeitos-escolares vivenciarem a linguagem na perspectiva discursiva.

Ressaltamos, também, que a dinâmica do trabalho coletivo entre os docentes se faz necessária ao processo de ensino. A forma como lidamos com as situações da sala de aula descritas neste trabalho só se tornou possível devido aos momentos de reflexão vividos nas supervisões de estágio e à busca do curso de Pedagogia em articular teoria e prática no processo de ensino de forma intencional, planejada e organizada, mediante a elaboração e desenvolvimento do Projeto de Ensino. No processo de formação, tanto de alunos quanto de professores, a disputa pela palavra, isto é, pelo argumento entre os pares permite nosso desenvolvimento pessoal, profissional (no caso dos docentes) e político, visto que, além dos conteúdos, a educação escolar ensina valores, posturas e visões de mundo.

Assim, o trabalho coletivo põe em cena e em curso dizeres que se completam, que se confirmam, que se contradizem, favorecendo a emergência de sujeitos e sentidos que vão tecendo inúmeras e inesperadas formas de poder dizer a nossa língua, a nossa narrativa, a nossa história de cada UM.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Soraya Maria Romano Pacífico
E-mail: smrpacifico@ffclrp.usp.br

Recebido em 19/07/2011.
1ª Revisão em 28/07/2011.
2ª Revisão em 02/08/2011.
Aceite Final em 05/08/2011.

 

 

1 Graduanda em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
2 Graduanda em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
3 Docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Email: smrpacifico@ffclrp.usp.br.