SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.12 número1A etnopsicologia e o trabalho institucional em uma unidade de abrigoReforma Psiquiátrica Brasileira: o caminho da desinstitucionalização pelo olhar da historiografia índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.12 no.1 Ribeirão Preto jun. 2011

 

ARTIGOS

 

Grupos psicoterapêuticos de mulheres dependentes químicas: questões de gênero implicadas no tratamento

 

Drug-dependent women psychotherapeutic groups: gender issues involved in treatment

 

Grupos psicoterapéuticos de mujeres dependientes químicas: cuestiones de género implicadas en el tratamiento

 

 

Priscila de Azevedo e Souza Venosa 1

Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares, NESME, São Paulo, SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho tem como principal objetivo contribuir com a discussão a respeito do tratamento de mulheres dependentes químicas em um dos dispositivos considerados mais importantes para a sua terapêutica: o grupo psicoterapêutico - psicanaliticamente orientado. Entende-se que pesquisar como se dá a transferência nesses grupos homogêneos quanto ao gênero e ao sintoma – dependência – a partir da experiência clínica contribui para abrir perspectivas de manejo neste campo. Neste texto, nota-se na experiência clínica a escolha destas mulheres em falar sobre as condições de ser mulher em suas associações livres. A dependência química aparece como secundária aos conflitos que vivenciam como mulheres. Finalmente, conclui-se que a reflexão e ampliação das possibilidades de conceber o que é "ser mulher" por estas pacientes podem interferir no vínculo simbiótico entre a paciente e a droga, potencializando, portanto, o processo psicoterapêutico.

Palavras-chave: Psicanálise de grupo; Mulheres; Transferência psicoterapêutica; Processos psicoterapêuticos; Droga (dependência).


ABSTRACT

The main objective of this work is to contribute with the discussion concerning treatment for drug-dependent women. The purpose is to approach this theme from the author's experience. It's based on the idea that researching about the transference in these groups called homogenous in relation to gender and symptom (dependence) can widen the perspectives of handling in this area. From the clinical experience of the author, it is noticeable the women's preference on talking about the subject of what or how it is "to be a woman" in their free association. The drug dependence appears as a secondary issue in relation to that. In the end, it points that the possibility of widening the ways of "being a woman" by each of them, as it seemed possible in a psychoanalysis-guided group therapy, interfere in the symbiotic bonds between the patient and the drug, bringing advantages, therefore, to the psychotherapeutic effects.

Keywords: Group psychoanalysis; Women; Psychotherapeutic transference; Psychotherapeutic processes; Drug dependency.


RESUMEN

El presente trabajo tiene como principal objetivo contribuir con la discusión a respecto del tratamiento de mujeres con dependencia química en uno de los dispositivos considerados más importantes para su terapia: el grupo psicoterapéutico (psicoanalíticamente orientado). Se entiende que pesquisar como sucede en la transferéncia de esos grupos homogêneos, en cuanto al género y al síntoma (dependéncia). Esta experiéncia clínica, contribuye para abrir perspectivas de manejo en este campo. En este texto, se percibe a través de la experiéncia clínica, la opción de esas mujeres en hablar sobre las condiciones de ser mujer en sus asociaciones libres. La dependéncia química surgue como secundaria a los conflitos que vivencían como mujeres. Se concluye que la reflexión y la ampliación de las posibilidades de concebir lo que es "ser mujer" por estas pacientes puede interferir en el vínculo simbiótico entre la paciente y la droga, potencializando, por consiguiente, el proceso psicoterapéutico.

Palabras clave: Psicoanálisis de grupo; Mujeres; Transferencia psicoterapéutica; Procesos psicoterapéuticos; Dependencia a las drogas.


 

 

O uso de práticas terapêuticas grupais para o atendimento de pessoas com doenças ou outras questões em comum é antigo na história, sendo a sua primeira experiência a de Pratt, um médico de Boston. Em 1905, ele começou a reunir pacientes tuberculosos para tratamento no Massachusetts General Hospital (CONTEL, 1997). Usando principalmente as técnicas da sugestão e da exortação, Pratt procurava potencializar os efeitos terapêuticos pela aderência ao grupo e pelo reforço das esperanças de cura que observava nos doentes que possuíam a mesma sintomatologia (MELLO FILHO, 1997).

Após a II Guerra Mundial, em uma época em que os estudos sobre grupos começavam a ganhar mais reconhecimento no campo das intervenções psicológicas, a técnica dos Alcoólicos Anônimos – um grupo leigo de apoio exclusivo aos usuários de álcool – precedeu esse modo de trabalho em que se reúnem pacientes com dependência química, no caso, de álcool (BRASILIANO, 2008). Dentre as mais variadas intervenções psicoterapêuticas no campo das dependências químicas, as grupais são muito recomendadas (SONENREICH et al., 2000).

Muitos autores sugerem que as mulheres drogaditas devem ser atendidas em programas especializados que respondam de forma direta às variadas dimensões de sua problemática. Nessas observações, reside a importância não só de reunir em grupos mulheres com sintomatologias semelhantes, mas também de realizar estudos de avaliação das intervenções terapêuticas com essas mulheres (GRELLA et al., 2008).

A partir da experiência da autora do presente trabalho com grupos psicoterapêuticos homogêneos de atendimento a mulheres dependentes químicas, observou-se que, nesses grupos, a identificação entre as pacientes está facilitada pelas questões que têm em comum. Inevitavelmente, isto contribui para a formação de um apoio pelo grupo, pelo sentimento de pertencimento. Pacientes que já haviam buscado tratamentos semelhantes, mas com o formato de grupos heterogêneos quanto ao gênero, contam não terem se sentido à vontade para falar de suas intimidades por não estarem apenas entre mulheres. Considerando este dado, torna-se relevante investigar o que ocorre nesses grupos, nos quais, segundo relatos das participantes, há mais possibilidade de falar – meio de se tratar.

O presente trabalho, portanto, tem o objetivo de investigar as particularidades da transferência ao longo das sessões desses grupos atendidos pela autora, a fim de acrescentar a discussão acerca do tratamento dessas mulheres e do manejo desses grupos psicoterapêuticos ditos homogêneos - e psicanaliticamente orientados. Considera-se que a especificidade da transferência nesses grupos ditos homogêneos está dada, em boa parte, pela questão de gênero, por uma semelhança entre algumas características da feminilidade presentes nas pacientes – inseridas em uma cultura que compartilham. Assim, inicia-se esse percurso, partindo da definição de alguns conceitos psicanalíticos que auxiliarão na determinação do campo em que se procura esclarecer essa questão.

 

TRANSFERÊNCIA

A transferência, como propõe Svartman (2003, p.36), pode ser entendida inicialmente como um:

(...) processo por meio do qual os conteúdos inconscientes são atualizados sobre objetos da realidade presente. Assim são repetidos os protótipos infantis, que são vividos com uma sensação de atualidade. Na transferência, um afeto é deslocado de uma representação para outra. Esse deslocamento permite que os sentimentos, os desejos e as fantasias reprimidas ou recalcadas venham à tona.

Assim, a transferência é, em si, uma forma de vínculo ativada na presença de um outro real externo (grifo meu), para quem ou para onde será destinada essa energia. A teoria afirma que não se pode pensar em transferência prescindindo do conceito de repetição, pois ambos estão intimamente ligados (ZIMERMAN, 2000; SVARTMAN, 2003; BARTUCCI, 2006). A repetição, por sua vez, precisa ser entendida em sua relação estreita com a compulsão à repetição (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). A compulsão à repetição, assim como a repetição, traz a noção de retorno ao que chamamos de primeira "vivência de satisfação", como experiência divisora de águas e que funda, para cada um à sua maneira, a diferença entre prazer e desprazer (OCARIZ, 2003, p. 84).

No artigo "Recordar, repetir e elaborar" de Freud (1914) aparece pela primeira vez a noção de "compulsão à repetição" como algo inevitável ao paciente, pois esta é sua maneira de recordar o que foi recalcado (FREUD, 1914/2006, p. 166). Assim, a própria transferência, enquanto uma forma de repetição, pode ser considerada, em parte, resistência (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988, MILLER DE PAIVA, 1994). A resistência surge então como expressão de "forças que o paciente põe em ação, às vezes sem saber, para se opor ao reconhecimento de seu desejo inconsciente" (FEDIDA, 1979/1985, p. 153).

Svartman (2003, p. 38), citando descrição de Foulkes, de 1957, diz que há principalmente duas formas de transferência nos grupos - a vertical e a horizontal. A primeira "implica a consideração do enfoque histórico genético, da experiência subjetivante do sujeito singular" e remeterá "à história dos indivíduos na – e especialmente antes de – sua inclusão no grupo". A segunda se refere ao "desenrolar dramatizado das fantasias originárias, aquelas cuja origem está situada antes do período edípico, ou seja, quando a subjetivação ainda não foi completada", e o grupo é experienciado "como uma extensão da própria subjetividade" por seus participantes, através de processos de identificação que se estabelecem entre eles, gerando indiscriminação (BERNARD, 1996 apud SVARTMAN, 2003, p. 38).

 

MULHER E DEPENDÊNCIA QUÍMICA

Durante longo período, desde o início da psicanálise, Freud conseguiu evitar a confrontação envolvendo a questão da diferença entre os sexos, até que na década de 20 precisou se posicionar com relação às mulheres (APPIGNANESI; FORRESTER, 2010). A princípio, Freud (1925) considerou que a mulher desejava o que lhe faltava. Ele se perguntava o que queria a mulher e respondia que era o falo (pênis) - por não tê-lo, ela o invejava (FREUD, 1925/2006). Depois de muitos anos dessa formulação de Freud, diversos autores vieram trazer outras possibilidades de se pensar a questão da feminilidade. Segundo Mannoni (1999), por exemplo, a feminilidade só pode ser interrogada a partir do lugar de um não saber.

Pesquisando o campo das dependências químicas, chega-se à informação de que o aumento da prevalência do abuso e dependência de drogas entre as mulheres nos últimos anos não foi acompanhado pelo desenvolvimento de estudos sobre suas necessidades (KESSLER et. al., 1994; BRADY; RANDALL, 1999; HOCHGRAF, 2001). Isso permite pensar que a especificidade da feminilidade vem sendo marginalizada também no campo das dependências.

Neste trabalho, a dependência química é entendida como um sintoma. Freud, segundo Fedida (1979/1985, p. 159), compreende-o como uma "formação de compromisso" que o sujeito estabelece para si para lidar ou amenizar o efeito de tensões originadas por um conflito intrapsíquico, mas que, apesar de lhe trazer algum equilíbrio, muito lhe faz sofrer. Assim, conclui-se que os sintomas são também históricos.

Quando um sujeito se droga, ele "altera suas percepções, suas capacidades de agir, a pressão dos valores que em estado normal aceita, (...) vive sem continuidade, com interrupções" (SONENREICH et al., 2000, p. 347). Assim, é imprescindível levantar questões sobre as interferências que o uso de drogas pode ter na interação dos sujeitos com seus semelhantes, nos vínculos sociais que estabelecem.

É indiscutível que o fenômeno das dependências provoca questionamentos sobre as formas como se pode viver na sociedade atualmente. De acordo com Escobar (2006, p. 218), para a psicanálise, "o encontro com a substância é na realidade um reencontro. A busca é de um objeto que complete uma falta existente (...) anulando-a temporariamente". Para o dependente de substância psicoativa, a toxicomania "aparece como uma resposta extremada a esse apelo de consumo, onde o próprio sujeito se consome na relação com o seu objeto, ao buscar, deste modo, escapar à falta constitutiva inerente ao ser humano" (PACHECO FILHO, 2009). Se isso é assim, é necessário refletir sobre a função que o uso da droga pode ter na vida de cada mulher e se há algo que possa ser extraído da experiência de atendimento a grupos psicoterapêuticos exclusivos para essas mulheres quanto à transferência no que concerne o tratamento destas pacientes.

 

APRESENTAÇÃO DOS GRUPOS

São apresentados dois grupos através de recortes de sessões. São grupos abertos até que o máximo de 10 pacientes seja alcançado. Eles já estavam em andamento há alguns anos e suas sessões tinham a duração de uma hora, em frequência semanal, aliado a outros atendimentos propostos pela equipe do ambulatório onde acontecia o tratamento.

A seleção das pacientes para os grupos buscava reuni-las por questões psicodinâmicas comuns apresentadas no momento da triagem, além de questões mais objetivas, como a droga de preferência, o padrão de uso da substância, sua idade, sua situação familiar e sua condição profissional – questões que às vezes coincidiam com o seu funcionamento psíquico.

A cada entrada de uma paciente no grupo, o contrato terapêutico era explicitado. Abordavam-se nele os assuntos relativos ao horário, local e regras relativas a atrasos, faltas e o ao sigilo, além de que o tema das sessões era livre.

 

MOSTRAS DO PROCESSO GRUPAL

A partir da utilização de um enfoque clínico, serão apresentados a seguir recortes de sessões de dois grupos psicoterapêuticos considerados úteis para refletir sobre a transferência.

Uma participante do grupo que costumava faltar com frequência às sessões trazia como justificativas ora a coincidência do horário do grupo com as consultas médicas necessárias em função de problemas crônicos de saúde, ora a necessidade de atender a demanda do marido que reclamava que seus compromissos a afastavam do lar. O que chamava a atenção era o fato da paciente não se mostrar incomodada em "precisar" faltar ao grupo psicoterapêutico. Ela parecia fazer uso dessas consultas para explicitar para o outro o limite que ela não conseguia dar. Ao que tudo indica, ela desconhecia que desejava. Sendo diabética e garantindo assim uma porção de consultas médicas, ela parecia ter encontrado uma forma de poder faltar àquele que ela sentia lhe exigir, sem, no entanto saber nada sobre isso, ou seja, permanecendo no lugar de objeto para o desejo do outro.

Nesse sentido, pode-se entender que a paciente protagonista da situação descrita acima estaria procurando uma forma de "tornar-se mulher" – para aludir à colocação de Simone de Beauvoir – uma forma de ser que o sujeito mulher pode chegar a ter se sair daquele lugar inferiorizado que lhe é destinado socialmente, afinal, como diria a escritora, filósofa existencialista e feminista francesa, não se nasce mulher. O "beber" e o "ser doente" pareciam possibilitar a ela que assumisse essa forma de quem não está sempre posta aos gostos alheios, mas também aos seus próprios sabores. Com suas faltas, ela se fazia sujeito de seu próprio desejo, e na transferência mostrava essa sua potência – entretanto, sem que dela soubesse.

Outra paciente, em outra sessão, trazia um conflito entre o seu papel de mãe, tal como o concebia moralmente, e o seu desejo inconsciente. Estava ressentida com uma de suas filhas, mas, de acordo com seu depoimento, não podia compartilhar esse sentimento com ninguém, pois era "mãe" (sic) e, portanto, deveria buscar sempre a harmonia e o bem-estar dos seus filhos – o que estaria em contradição com "desagradar-lhes" com algum assunto como esse. O cerne da questão nessa postura de mãe que ela dizia assumir parecia ser o fato de não haver lugar para que pudesse também existir como mulher. O sujeito desejante que há nela ficava dessa forma impossibilitado de viver. Para esta mulher, parecia não ser possível conciliar o fato de ser mãe com o de ser mulher. As outras pacientes do grupo pareciam estar tanto quanto ela impedidas de ver a questão de outros pontos de vista. Havia ali uma ideia compartilhada de forma muito restrita de que estavam feias ou gordas porque "engoliram muitas situações como esta". Se tivessem "chutado o balde" (sic), como muitas outras mulheres fizeram, estariam belas e descansadas.

Nesta última cena, aparentemente predominara a transferência chamada horizontal que parece facilitada pela homogeneidade do grupo formado de mulheres que expressam um feminino pela via da lógica fálica (do sacrifício, da maternidade), ou seja, na sua forma dependente, vitimada, submetida a uma ordem social que lhes seria imposta. Conforme descrito anteriormente, na transferência chamada horizontal não é possível observar um nível adequado de discriminação, a união pelas semelhanças que se mostra a serviço da resistência, impedindo o contato dos sujeitos com seu desejo. O desejo inconsciente que não poderia ser reconhecido – pode-se pensar – seria o próprio desejo de ter "chutado o balde", ou pelo menos de não ter se descuidado e se deixado envelhecer, cansar, associado à raiva e à inveja de quem se permitiu fazê-lo.

Outra participante do grupo dizia em uma sessão sentir muita falta do médico que as atendia e havia saído da equipe. Ela falava que essa foi uma imensa perda para todas elas. Parecia, com isso, a porta-voz do grupo e de fato foi depois assim reconhecida pelas demais, a partir das associações que elas fizeram em seguida. Dessa forma, ela revelava o que parecia ser uma dependência "do feminino ao masculino" que se destacava naquele grupo mais do que aquela "do sujeito à droga". Elas pareciam angustiadas por não poderem mais contar com a presença de um homem, seu médico. Talvez desejassem que eu fosse mais fálica, pois, como diziam, um médico de "pulso firme" poderia impedir que elas bebessem. Em uma transferência que ali se mostrava de maneira horizontal, elas denunciavam uma nostalgia ligada ao fato de terem sido deixadas, como objetos, e assim revelavam sua posição subjetiva nesta situação. A reivindicação dessas mulheres de que o médico viesse preencher sua falta permite uma associação com a espera das princesas dos contos de fadas por seu príncipe encantado – aquele único que, justamente por ser encantado, como a droga às vezes faz o mundo parecer, poderá vir tirá-las das garras do dragão, da torre em que as madrastas as colocaram, enfim, daquilo que pode ser lido como um vínculo simbiótico com a mãe.

Nesse trabalho, "não raro, poderá o analista em determinado momento, ser convidado a ocupar o lugar da droga, pervertendo o setting e negando a castração" (ESCOBAR, 2006, p. 220). Ou, como se diz, "contratransferencialmente", como visto no material clínico exposto, o analista pode ser requisitado a preencher a falta ou até mesmo poderá ser acusado de não poder fazê-lo, não ser bom o suficiente para isso ou para aquilo (BRASILIANO, 1997, p. 235). Sabe-se, entretanto, que este comportamento de atender a tal demanda de seus pacientes é também uma tendência de alguns profissionais da saúde e não apenas, nem isoladamente, uma demanda de seus pacientes (FERENCZI, 1927 apud RUNIA; NIJENHUIS, 1995). Por esse motivo, ressalta-se a importância de cuidado para esses profissionais, para que eles não reforcem o comportamento dependente já presente em seus pacientes.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo que a experiência permitiu observar, no dispositivo dos grupos homogêneos, devido às semelhanças, a transferência é despertada ali por muitos aspectos que lhe atraem, encontrando meios para realizar sua costumeira ligação – a "falsa conexão", como a nomeia Pontalis (1991, p. 79). Como já foi dito sobre o fenômeno da dependência química, o que ocorre é que o sujeito vai buscar na droga um reencontro com o objeto perdido. Betarello (2000, p. 360) afirma que "ao se dispor a abandonar sua relação com as drogas, o toxicômano abre o caminho para que outros elementos ocupem esse lugar", o que parece que os grupos homogêneos têm poder de proporcionar através da citada união facilitada pelas semelhanças.

Pode-se dizer que há nestes grupos um predomínio do que pode ser denominada "transferência horizontal" (SVARTMAN, 2003, p. 38) – conforme descrita anteriormente – em relação à chamada "transferência vertical". Quanto menos efeito teve o tratamento das pacientes do grupo, maior foi o predomínio da indiscriminação na sua percepção. O trabalho psicanalítico do grupo possibilita que aos poucos vá se criando um espaço para a discriminação, para que possa surgir o sujeito para além da massa do grupo, com sua história e singularidade.

Não se pode conhecer "a dependente química", tal entidade, mas é possível conhecer cada uma dessas mulheres e a função que a droga veio exercer em sua economia libidinal. Propõe-se, portanto, privilegiar a questão de gênero em relação à da dependência e escolher focar aqui, e não ali, o trabalho analítico. Assim, pode-se concluir que tratar mulheres dependentes químicas em grupos homogêneos é, sobretudo, poder tratá-las em um campo mais primário, no campo do que elas são – mulheres – preterindo o que veio lhes assolar secundariamente ao gênero – ou seja, a doença.

Nesse sentido, a intervenção psicoterapêutica nesses grupos, podendo atentar para tais questões, estaria cumprindo a sua função por excelência que é a de por em movimento todo um processo de refutamento das certezas que o sujeito construiu acerca de si, tirando-o da espera, levando-o a falar mais e a elaborar. De fato, para a psicanálise, o que ocorre é que o sujeito que se tornou dependente químico vai encontrando sentidos para o seu sintoma, no caso, para a dependência à droga em sua vida. Assim, pode encontrar formas menos mortíferas de lidar com seus conflitos (BRASILIANO, 1997). Tornando-se pouco a pouco livre das alterações de percepção provocadas pelo uso da droga, ele pode vir a refletir sobre suas atuações, sobre suas repetições dentro e fora do grupo e tendo a possibilidade de elaborar questões como, por exemplo, a de como integrar as identidades de mulher e de mãe.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

APPIGNANESI, L.; FORRESTER, J. As mulheres de Freud. Trad. Nana Vaz de Castro, Sofia Maria de Sousa Silva. Rio de Janeiro: Record, 2010. 726 p.         [ Links ]

BARTUCCI, G. Fragilidade absoluta: ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade. São Paulo: Planeta, 2006. 236 p.         [ Links ]

BETARELLO, S. V. Psicodinâmica. In: SEIBEL, S. D.; TOSCANO, A. Jr. Dependência de drogas. São Paulo: Atheneu, 2000. p. 351-362. 560 p.         [ Links ]

BRADY, K. T.; RANDALL, C. L. Gender differences in substance use disorders. The Psychiatric Clinics of North America, v. 22, p. 241-52, 1999.         [ Links ]

BRASILIANO, S. Grupos com drogadictos. In: ZIMERMAN, D. V.; OSORIO, L. C. et al. Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 229-239. 424 p.         [ Links ]

BRASILIANO, S. Psicoterapia analítica de grupos com drogadictos: há uma especificidade afinal? Contribuições para uma discussão. Vínculo, São Paulo, v. 5, n. 2, p.172-184, 2008.         [ Links ]

CONTEL, J. O. B. Psicoterapia de grupo para pacientes internados e egressos. In: ZIMERMAN, D. V.; OSORIO, L. C. et. al. Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 269-279. 424 p.         [ Links ]

ESCOBAR, J. C. S. A Perspectiva Psicanalítica. In: SILVEIRA, D. X.; MOREIRA, F. G. Panorama Atual de Drogas e Dependências. São Paulo: Atheneu, 2006, p. 217-221, 493 p.         [ Links ]

FEDIDA, P. Diccionario de Psicoanalisis. Trad. Griselda Perucchi. Madrid: Alianza Editorial, 1985. 174 p.         [ Links ]

FREUD, S. (1914). Recordar, repetir e elaborar. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v. XII, p. 159-171. 406 p.         [ Links ]

FREUD, S. (1925). Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 2006. v. XIX, p. 273-286. 355 p.         [ Links ]

GRELLA, C. E.; SCOTT, C. K.; FOSS, M. A.; DENNIS, M. L. Gender similarities and differences in the treatment, relapse and recovery cycle. Sage Journals – Evaluation Review, v. 32, n. 1, p. 113-137, 2008.

HOCHGRAF, P. Mulheres farmacodependentes. Jornal Brasileiro de Dependência Química, São Paulo, n. 2, supl. 1, p. 34-37, 2001.         [ Links ]

KESSLER, R. C.; MC GONACLE, K. A.; ZHAO, S.; NELSON, C. B.; HUGUES, M.; ESHLEMAN, S.; WHITCHENN, H. U.; KENDLER, K. S. Lifetime and 12-month prevalence of DSM-III-R psychiatric disorders in the United States. Results from the National Comorbidity Survey. Archives of General Psychiatry, v. 51, p. 8-19, 1994.         [ Links ]

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1988. 707 p.         [ Links ]

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 552 p.         [ Links ]

MANNONI, M. Elas não sabem o que dizem: Virginia Woolf, as mulheres e a psicanálise. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. 126 p.         [ Links ]

MELLO FILHO, J. Grupoterapia com pacientes somáticos: 25 anos de experiência. In: ZIMERMAN, D. V.; OSORIO, L. C. et. al. Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. p. 185-204. 424 p.         [ Links ]

MILLER DE PAIVA, L. A situação transferencial em grupanálise. Revista Grupanálise, Coimbra, n. 5, p. 19-31, 1994.         [ Links ]

OCARIZ, M. C. O sintoma e a clínica psicanalítica: o curável e o que não tem cura. São Paulo: Via Lettera, 2003. 208 p.         [ Links ]

PACHECO FILHO, R. A. Drogas: um mal-estar na cultura contemporânea. Disponível em: < http://www.psicologia.org.br/internacional/pscl6.htm >. Acesso em: 26 de out. 2009.

PONTALIS, J.-B. A força de atração. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. 141 p.         [ Links ]

RUNIA, E.; NIJENHUIS, E. "Experience-Sharing" as an antidote to dependence-making behavior of general practioners. International Journal of Group Psychotherapy, Nova Iorque, v. 45, n. 1, p. 17-35, 1995.         [ Links ]

SONENREICH, C.; ESTEVÃO, G.; SILVA, L. de M. A. Introdução às psicoterapias. In: TOSCANO, A. Jr.; SEIBEL, S. D. Dependência de drogas. São Paulo: Atheneu, 2000. p. 341-349. 560 p.         [ Links ]

SVARTMAN, B. Fundamentos da Psicanálise dos Vínculos. In: FERNANDES, W. J. et al. Grupos e configurações vinculares. Cap. 2, Porto Alegre: Artmed, 2003. p. 33- 42. 303 p.         [ Links ]

ZIMERMAN, D. E. Transferência. In: Fundamentos Básicos das Grupoterapias. 2. ed. cap. 17, Porto Alegre: Artmed, 2000. p. 160-163. 244 p.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Priscila de Azevedo e Souza Venosa
E-mail: priscilavenosa@yahoo.com.br

Recebido em 03/07/2011.
1ª Revisão em 02/08/2011.
2ª Revisão em 15/08/2011.
Aceite Final em 22/08/2011.

 

 

1 Psicóloga, Psicoterapeuta individual e grupal, especialista em Psicologia Clínica, Membro do NESME – Núcleo de Estudos em Saúde Mental e Psicanálise das Configurações Vinculares. Email: priscilavenosa@yahoo.com.br.