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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.13 no.1 Ribeirão Preto  2012

 

ARTIGOS

 

Família, espontaneidade e crise social: o psicodrama de "A vida é bela"

 

Family, spontaneity and crisis: the psychodrama of "Life is beautiful"

 

Familia, espontaneidad y crisis: el psicodrama de "La vida es bella"

 

 

Isabela Rezende Carneiro; Emerson Fernando Rasera

Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio tem como objetivo refletir sobre algumas contribuições da teoria psicodramática para o estudo do grupo familiar. Por meio da análise do filme "A vida é Bela", será possível compreender como as características grupais familiares influenciam no desenvolvimento do indivíduo e sua integração à sociedade. O filme apresenta a luta do criativo Guido para conquistar o amor de Dora e o esforço do mesmo para garantir a sobrevivência de sua família em um campo de concentração nazista, utilizando sua fantasia e espontaneidade para transformar os terrores da guerra em regras de um grande jogo. A análise deste filme proporciona o entendimento prático e a interlocução com os conceitos psicodramáticos de matriz de identidade, conserva cultural e jogo dramático. Além disso, "A vida é Bela" ilustra de forma consistente o valor da espontaneidade no grupo familiar, possibilitando a expressão criativa e a adaptação às situações apresentadas pelo ambiente.

Palavras-chave: Espontaneidade; Família; Psicodrama; Cinema.


ABSTRACT

This essay aims to reflect on some contributions of the psychodramatic theory for the study of the family group. Analysing the film "Life is Beautiful" will make possible to understand how the family group characteristics influence the development of the individual and his integration into society. The film presents the fight of the creative Guido to conquer Dora's love and his effort to guarantee the family survival in a Nazi concentration camp, using his fantasies and spontaneity to transform the terrors of the war into rules of a great game. This film analysis provides a practical understanding of the psychodramatic concepts of matrix of identity, cultural conserve and dramatic game. "Life is Beautiful" consistently illustrates the value of spontaneity in the family group, what makes possible the creative expression and the adaptation to situations presented by the environment.

Keywords: Spontaneity family; Psychodrama; Cinema.


RESUMEN

Este ensayo tiene el objetivo de reflejar sobre algunas contribuciones de la teoría psicodramática para el estudio del grupo familiar. Analizar la película "La vida es bella" hará posible entender cómo las características del grupo familiar influencian el desarrollo del individuo y su integración a la sociedad. La película presenta la lucha del creativo Guido para conquistar el amor de Dora y su esfuerzo de garantizar la supervivencia de la familia en un campo de concentración nazi, usando sus fantasías y espontaneidad para transformar los terrores de la guerra en reglas de un gran juego. El análisis de esta película proporciona un entendimiento práctico de los conceptos psicodramáticos de matriz de identidad, conserva cultural y juego dramático. "La vida es bella" ilustra claramente el valor de la espontaneidad en el grupo familiar qué hace posible la expresión creativa y la adaptación a las situaciones presentadas por el ambiente.

Palabras clave: Espontaneidad; Familia; Psicodrama; Cine.

 

 

Este ensaio tem como objetivo refletir sobre algumas contribuições da teoria psicodramática para o estudo do grupo familiar. Por meio da análise do filme "A vida é Bela" (Benigni, Ferri, & Braschi, 1997), será possível compreender como as características grupais familiares influenciam no desenvolvimento do indivíduo e sua integração à sociedade em um momento de crise social. Assim, o artigo explorará aspectos fundamentais da teoria psicodramática - como matriz de identidade, conserva cultural, jogo dramático, espontaneidade - e sua contribuição para o entendimento do grupo familiar. A partir da seleção de alguns conceitos, buscaremos ilustrá-los em cenas do filme de forma a promover novos significados sobre a narrativa apresentada, bem como, apontar elementos para o enfrentamento das crises sociais pelas famílias.

Nos últimos anos, alguns autores buscaram uma aproximação entre o psicodrama e os estudos da família (Dias, 2000; Toloi, 2010; Yorio et al., 2004). Contudo, a despeito dessa fértil aproximação, poucos artigos científicos sobre essa temática estão disponíveis nos periódicos brasileiros. Em um levantamento junto ao SciELO e PePSIC no período de 2000 a 2010, foram encontrados apenas quatro trabalhos com os temas 'psicodrama' e 'família'. Da mesma forma, não foi encontrado nenhum estudo sobre 'psicodrama' e 'cinema'1. Considerando a relação inerente entre drama e cinema, trata-se de um investimento necessário e que tem produzido resultados interessantes em outras áreas da Psicologia (Buschinelli, 2007; Silva, 2008). Assim, o presente artigo, apesar de ser um exercício analítico exploratório circunscrito a apenas alguns conceitos psicodramáticos, espera apontar, por um lado, para a riqueza possível desse tipo de estudo e, por outro, estimular novos empreendimentos nesse campo.

 

A TEORIA PSICODRAMÁTICA E O GRUPO FAMILIAR: BREVES APROXIMAÇÕES

A família apresenta-se como o primeiro grupo do qual o indivíduo participa e interage. Dessa forma, o funcionamento familiar propicia determinados relacionamentos, vínculos e modelos de aprendizagem que influenciam na formação da identidade do ser, em um contexto sócio-histórico e cultural (Almeida, 2011; Moreno, 1978). O fato de compor uma família permite à pessoa vivenciar o sentido de pertencimento a um grupo, compartilhar histórias, sentimentos e comportamentos por meio da relação espontânea com os pares, o que mostra o valor dessa instituição para o seu desenvolvimento.

Para o Psicodrama, a família possui duas funções primordiais: é matriz de identidade e espaço de expressão da espontaneidade. Ela funciona como matriz de identidade, na qual o novo integrante se desenvolve e incorpora as características grupais e herança cultural, sendo responsável por prepará-lo para sua integração à sociedade (Fox, 2002; Rojas-Bermudez, 1970). É por meio dessa que a criança adquire os recursos necessários para o seu desenvolvimento emocional e social.

Cada matriz de identidade oferece ao indivíduo um conjunto de papéis que são aprendidos no decorrer do tempo e permitem a transmissão da herança cultural e ação diante o mundo. O papel, como unidade que conduz o modo pelo qual o ser se expressa, possui as particularidades da cultura sob a qual se define (Almeida, Wolf, & Gonçalves, 1988; Rojas-Bermudez, 1970). O desempenho dos papéis está sempre associado a um jogo dialético entre papéis e contrapapéis, destacando o contexto de relacionamento e desenvolvimento de vínculos (Pereira & Diogo, 2009). Na família, percebe-se a existência de papéis que, ao serem desempenhados, possibilitam uma relação interpessoal adequada e o desenvolvimento saudável. Assim sendo, os papéis aprendidos e desempenhados nas relações familiares se ampliam para as relações sociais. A possibilidade de jogar esses papéis sociais - maneiras de agir predeterminados pelo ambiente familiar - por meio da ação dramática permite ao indivíduo perceber-se como responsável pelo seu próprio trajeto e mudança criativa, livre para agir espontaneamente (Pucci, 2008).

A segunda função da família é ser espaço de expressão da espontaneidade. De acordo com Nery e Costa (2008), "espontaneidade é a capacidade de dar respostas novas a problemas antigos, ou respostas adequadas a problemas novos" (p. 248). Deste modo, nota-se a importância do grupo doméstico como espaço primordial para a livre expressão e capacidade criadora, sendo referência básica para o crescimento do eu. A espontaneidade se opõe à conserva cultural, produto de uma sociedade caracterizada por regras, tradições, mitos e costumes que bloqueia a manifestação da criatividade, suscitando respostas repetitivas, fixas e ordenadas (Fox, 2002; Moreno, 1978; Nery & Costa, 2008). Esse processo poderá despertar sentimentos de indignação e distanciamento da capacidade do indivíduo de dirigir sua própria história. De tal modo, faz-se necessário desenvolver estratégias e ações que escapam dos padrões rígidos e ideais, visando ampliar a percepção do potencial espontâneo e criativo da família. Esta se torna capaz de solucionar os próprios conflitos e adaptar-se às situações que lhe são postas, possibilitando o crescimento do grupo e do próprio indivíduo que o compõe.

No contexto psicoterápico, a utilização de técnicas psicodramáticas aplicadas ao grupo familiar contribui para a mobilização e reestruturação desse sistema a partir de seus próprios recursos, mantendo a organização do mesmo (Mieses & Lopez-Barbera, 1991). Entre essas formas de trabalhar com a família está o jogo dramático, que se caracteriza por: ser uma atividade voluntária, garantindo aceitação dos indivíduos em participar e podendo ser interrompida quando necessário; ter regras específicas e absolutas, as quais são aderidas pelos participantes; ter um tempo de duração limitado, variando em relação ao tipo de jogo e ocorrer no contexto dramático (Yozo, 1996). Contudo, o aspecto fundamental do jogo é a sua possibilidade de identificar e resolver conflitos por meio do resgate da ordem lúdica.

Finalizando, pode-se observar que a proposta do Psicodrama visa à reintegração da espontaneidade e da criatividade dos indivíduos que compõe o grupo familiar, constrangidos pelas instituições e conservas culturais no enfrentamento de seus problemas. Assim, o Psicodrama "possibilita a transformação gradual dos indivíduos e dos grupos, pois atua sobre a vivência dos conflitos e sobre as potencialidades de resolução destes" (Pereira & Diogo, 2009, p. 150).

 

A FAMÍLIA EM CONTEXTOS DE CRISE SOCIAL: DESENVOLVIMENTO E ESPONTANEIDADE EM "A VIDA É BELA"

"A vida é Bela", uma comédia dramática ambientada nos anos 30, apresenta um cenário de forte ausência de liberdade e perda da espontaneidade humana, composto por governos totalitários nazistas e campos de concentração. Entretanto, é neste contexto que Guido expande sua criatividade e imaginação, encontrando novas e adaptadas respostas para aquela situação. O filme combina o amor pela vida e família aos horrores da guerra. De tal modo, em um grupo, o sofrimento está presente nestas situações conflituosas e angustiantes. O filme apresenta a dor de um grupo familiar em uma época de repressão e campos de concentração e, ao mesmo tempo, mostra a importância do riso para a reconstrução de uma nova visão do mundo e sociedade (Zuccarello, 2008).

 

A CONQUISTA DE DORA E A FORMAÇÃO DA FAMÍLIA: ESPONTANEIDADE, CONSERVA CULTURAL E MATRIZ DE IDENTIDADE

Em 1938, quando a Itália promulga as leis raciais e adota práticas antissemitas, promovendo uma virada na vida dos judeus italianos, Guido Orefice chega a Arezzo, Itália, com o sonho de abrir sua livraria. No caminho, ao aproximar-se de um sítio, encontra a bela Dora, que "cai do céu" em seus braços. Ele se apresenta como príncipe, dono daquele reino, no qual irá trocar as vacas e galinhas por camelos e avestruz, causando grande impressão. A "princesa" agradecida por salvar sua vida, procura retribuí-lo.

Guido é um modesto e despreocupado judeu italiano, que se utiliza da imaginação para conquistar Dora, com a qual vai se encontrando das formas mais surpreendentes - casual ou propositadamente. Esses encontros espontâneos possibilitam a Guido e Dora entrar em contato, sentir um ao outro, conhecer-se pelo movimento, ver, observar e compartilhar.

A espontaneidade proporciona o rompimento da conserva cultural (Moreno, 1978; Nery & Costa, 2008), sendo representada pelas normas e regras da cidade. A sociedade italiana fascista e suas conservas culturais são demonstradas quando começam a humilhar e odiar os judeus italianos, destruindo pertences, fixando placas nos estabelecimentos comerciais e dizendo ser proibida a entrada de judeus e cachorros. Mesmo diante da conserva cultural, bloqueadora da expressão espontânea, Guido não se mostra limitado ou reprimido. Ao contrário, ele busca utilizar os recursos disponíveis para provocar uma resposta flexível às novas circunstâncias, transformando o ambiente ao seu redor.

A ação criativa de Guido pode ser percebida em vários instantes do filme. Em certo momento, ele brinca ser um inspetor de Roma, responsável por discursar sobre o Manifesto da Raça na escola onde Dora trabalha, com o intuito de reencontrar e conquistar sua amada. Para demonstrar como a raça ariana é superior, utiliza de suas habilidades cômicas para representar às crianças que ele foi o escolhido para falar-lhes por ser um legítimo ariano, pois não se encontrava orelha, musculatura, movimentos e umbigo mais perfeitos. Guido, ao desempenhar sua espontaneidade, consegue adaptar-se, ao seu modo, às circunstâncias que são expostas pelo meio.

O ambiente também é favorecido por sua expressão espontânea, pois os demais organismos que compõem o grupo passam a produzir novas e imprevisíveis respostas (Fox, 2002). Dessa forma, Dora também age de maneira criativa ao abandonar um burocrata fascista no dia de seu noivado. O encontro com Guido ocorre embaixo de uma mesa, onde Dora o beija apaixonadamente e implora para que a leve embora, rompendo com as regras e as conservas culturais daquela sociedade e de sua família. Então, o "príncipe" Guido, montado no cavalo de seu tio, rapta sua "princesa" como em um conto de fadas, com direito a encanto, beleza e paixão.

Desta união, nasce o filho Giosué Orefice, fascinado por tanque de guerra. Por ser criança e crescer em um ambiente familiar em que se opera a espontaneidade, o pequeno garoto também sonha, fantasia e age de forma criativa. Isso é demonstrado quando tenta se livrar do banho escondendo-se dentro de um criado mudo. Giosué participa com seu pai de um truque, cujo móvel torna-se vivo, e se dirige até Dora trazendo-lhe flores. Como em um espetáculo, sai do criado de forma magnífica, dizendo "Bom dia, Princesa".

Esse ambiente familiar funciona como matriz de identidade, no qual o indivíduo se desenvolve e incorpora as características grupais e a herança cultural (Almeida, Wolf, & Gonçalves, 1988; Rojas-Bermudez, 1970). Dessa forma, a família do pequeno garoto lhe oferece os recursos necessários para o seu desenvolvimento emocional e social, preparando-o para se relacionar com a sociedade. Percebe-se, então, a importância de um ambiente familiar espontaneamente rico, possibilitando ao indivíduo uma expressão criativa, como a de Giosué.

A matriz de identidade fornece distintos papéis a serem desempenhados pelo indivíduo. O papel conduz o modo como cada integrante do grupo familiar se comporta e se relaciona com os outros (Pucci, 2008). Assim, os papéis que são desempenhados no ambiente familiar são transpostos para as relações sociais: o pai livreiro, criativo e expressivo; a mãe professora, dedicada à sua família e ao ambiente doméstico; o filho teimoso, mas que trata bem os clientes da livraria, fazendo contas e devolvendo o troco, quando o pai se encontra ausente.

 

A VIDA NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO: ESPONTANEIDADE E JOGO DRAMÁTICO

No dia que Giosué completa cinco anos, ele e seu pai são presos pela força militar e enviados a um campo de concentração nazista. Dora, apesar de não ser judia, decide acompanhá-los em união e amor à família. Então, Guido começa a utilizar sua criatividade para resistir ao caminho difícil que terá que percorrer. Determinado a poupar o pequeno Giosué do terror de uma guerra e garantir a sobrevivência de sua família em um campo de concentração, elabora uma complicada explicação que vai se adaptando à medida das necessidades, visando caracterizar aquele momento como um jogo aos olhos do filho.

Durante o jogo, os indivíduos do grupo adotam e jogam com diferentes papéis (Yozo, 1996). O jogo é muito organizado: mulheres, homens e idosos compõem equipes separadas e concorrentes que buscam a vitória. Os soldados nazistas assumem o papel de funcionários que repassam as ordens e regras do jogo, por isso precisam ser duros. Guido ainda diz ao filho que o primeiro colocado no jogo ganhará o grande prêmio, um belo tanque de guerra, admirado por Giosué, que os levará para casa. Mas, para ganhá-lo, é preciso acumular mil pontos por meio de tarefas e brincadeiras. Algumas situações ocasionam a perda de pontos, como ficar com medo dos soldados, começar a chorar, querer ver a mamãe, sentir fome e pedir comida. As jogadas mais importantes são manter-se calado e escondido o tempo todo.

Os papéis assumidos e desenvolvidos durante esse jogo permitem a expressão e atividade criativa, demonstrando a extensão psicológica do ser (Pereira & Diogo, 2009). Nesse aspecto, os sentimentos de Giosué acabam aparecendo em relação ao estar em um cenário opressor, no qual não há mais crianças. O pequeno garoto afirma não querer continuar no jogo, preferindo ir embora para casa naquele exato momento. Então, Guido novamente age de forma criativa e diz ao filho que eles são os primeiros colocados do jogo e que o grande prêmio, o tanque de guerra, está ficando belíssimo.

Esse jogo que se desenvolve no filme é análogo a um jogo dramático, pois proporciona a expressão pela fantasia e a resolução de conflitos e situações que se manifestam para o grupo familiar do personagem (Moreno, 1978). Contudo, é necessário ressaltar que esta metáfora precisa ser analisada de forma particular, devido ao fato de que Guido cria outra realidade para o filho, na qual se insere o jogo. Apesar de se desenvolver em um alojamento de um campo de concentração e os outros confinados reconhecerem a existência de tal jogo, eles não participam ativamente. O jogo é instalado por Guido, o que possibilita a expressão de sua espontaneidade e fantasia, promovendo a transformação da situação de opressão e guerra em uma brincadeira muito divertida apenas para Giosué.

Ao perceber que a guerra aproximava-se do fim, Guido faz a última tentativa para salvar sua família, mas é capturado pela força militar nazista. Apesar do ambiente opressor e ausência de liberdade, Guido foi capaz de se adaptar e expressar dentro dos limites estabelecidos. Deste modo, a vida tornou-se bela, por buscar agir de forma inovadora mesmo em situações de pura repressão e bloqueio, por sustentar sua espontaneidade para ver a vida com outros olhos.

Assim que o exército americano chega ao campo de concentração para resgatar os aprisionados, o pequeno garoto sai de seu esconderijo e vislumbra à sua frente um tanque de guerra, o prêmio prometido. É sobre este tanque, nos braços de um homem, que Giosué avista e reencontra sua mãe. Para eles, o jogo terminou; representado pela frase final do garoto: "Mamãe! É verdade! Ganhamos! Mil pontos, é de morrer de rir, vamos voltar para casa de tanque". Muito além do que ganhar o tanque de guerra como prêmio, Giosué e Dora levarão para casa o exemplo do pai, a valor da expressividade e capacidade criativa.

Assim, por meio do Psicodrama, é possível identificar nos sujeitos e suas relações a capacidade de transformar sistemas sociais que se apresentam em determinados contextos, sendo autores e atores de sua própria história e desenvolvimento de seu grupo (Pereira & Diogo, 2009). Logo, pode-se perceber como a espontaneidade em um grupo familiar ameniza as dores, permite a dissolução criativa dos conflitos, das batalhas e guerras que compõem o caminho da vida.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Psicodrama reconhece a importância dos indivíduos terem um espaço e tempo para expressarem suas realidades e recriá-las como seus verdadeiros responsáveis. Na análise do filme, quase não se vê limite para a espontaneidade de Guido em um contexto repressor, tanto para conquistar o amor da encantadora Dora em um momento social crítico quanto para poupar o filho dos horrores da guerra. A proposta de Moreno ancora-se sobre três princípios: a real força propulsora do desenvolvimento do indivíduo é a espontaneidade e criatividade; o alicerce para a relação em grupo é o amor e o compartilhar mútuo; e é possível construir uma sociedade baseada nesses princípios (Cushnir, 1997). Guido baseia-se nesses pressupostos para significar sua vida e grupo familiar. As forças que o moviam eram a alegria, o amor, a esperança e o querer.

Uma análise crítica do filme pode mostrar os limites da espontaneidade. Guido, apesar de proteger a integridade física e emocional de seu filho, não conseguiu preservar sua própria vida. As condições sociais, em determinadas situações de extrema violência, podem dificultar não só a expressão espontânea, mas a própria vida. Contudo, neste ensaio procurou-se mostrar a importância da expressão livre como potencial transformador, como fortalecedora das relações e como promotora da esperança diante de crises sociais.

Além disso, os indivíduos, em situações de crise social, podem não buscar a expressão livre e criadora em suas relações familiares. Massificados por valores e regras do sistema social, tornam-se seres isolados e desintegrados. Contudo, Moreno (1978) acredita que a espontaneidade é fator essencial para uma existência saudável. Percebe-se na análise do filme que, mesmo em situações tumultuosas e de desordem, o indivíduo precisa garantir sua espontaneidade, a livre expressão de sentimentos e experiências, o diálogo e interação no ambiente familiar, buscando o desenvolvimento e o crescimento humano.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Isabela Rezende Carneiro
E-mail: isacarneiropsico@yahoo.com.br

Recebido em 29/09/2011.
1ª Revisão em 07/11/2011.
Aceite Final em 06/12/2011.

 

 

1 Apesar de reconhecermos que há outras produções bibliográficas não indexadas, é significativa a pouca atenção que a comunidade científica brasileira tem dedicado ao tema do Psicodrama na família, que merece maiores esforços de investigação.