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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.13 no.2 Ribeirão Preto  2012

 

ARTIGOS

 

Grupoterapia e deficiência auditiva infantil: trabalhando com mães e crianças

 

Group therapy and hearing disability in children: working with mothers and children

 

"Grupoterapia" y la deficiencia auditiva infantil: trabajando con madres y niños

 

 

Natália Michelato Silva 1; Fernanda Cevithereza Paiva 2; Cláudia Alexandra Bolela Silveira 3

Universidade de Franca, Franca, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo consiste no atendimento em grupo realizado através do estágio de grupoterapia no quinto ano de Psicologia em 2009 com três crianças, entre sete e dez anos, portadoras de deficiência auditiva e com suas mães, com idades entre 25 e 40 anos. Os atendimentos semanais ocorreram na Clínica de Psicologia da Universidade. O objetivo desse artigo é compartilhar esta experiência grupal de trabalhar com as crianças e seus familiares em grupos distintos, porém concomitantes, oferecendo um espaço que favorece a expressão de conflitos pessoais e relacionais; para as crianças por meio do lúdico e às mães por meio do relato oral. O recurso usado para a análise qualitativa dos dados foi o relato das sessões com as crianças e com as mães, transcrito por cada estagiária após o atendimento e a psicanálise foi o referencial teórico utilizado. No decorrer do processo de intervenção grupal observaram-se mudanças positivas na relação de mães e filhos e através do espaço oferecido em grupo puderam lidar com os conflitos vivenciados acerca da deficiência auditiva e do relacionamento familiar.

Palavras-chave: Psicoterapia de grupo; Perda auditiva; Psicologia.


ABSTRACT

This study was made in a group attendance by a group-therapy internship of students in the fifth year of a Psychology course in 2009. The group was formed by three children with hearing disability aged 7-10 and by their mothers, aged 25-40. Weekly attendances happened at the university’s psychology clinic. The aim of this article is to share this experience of working with children and with their mothers in distinct yet concomitant groups in a provided a space which stimulated the expression of personal and relational conflicts. Ludic activities were set for the children, whereas the mothers were encouraged to give an oral report. Sessions were later reported by each intern for further qualitative analysis. Psychoanalysis was the theoretical perspective used. During the process of group intervention, positive changes were observed in mother-children relationship. In this space, they were able to cope with conflicts about hearing disability and family relationships.

Keywords: Group psychotherapy; Hearing disability; Psychology.


RESUMEN

Esta investigación consiste en el atendimiento en un grupo realizado a través de la práctica de "grupoterapia" en el 5º año de Psicología en 2009, con tres niños de 7 a 10 años de edad, portadores de deficiencia auditiva y sus madres con edad entre 25 y 40 años. Los atendimientos semanales ocurrieron en la Clínica de Psicología de la Universidad. El objetivo de este artículo es compartir esta experiencia grupal de trabajar con niños y sus familiares, en grupos distintos, pero concomitantes, ofreciendo un espacio que favorece la expresión de conflictos personales y relacionales – para los niños a través del lúdico y con las madres a través del relato oral. El recurso utilizado para el análisis cualitativo de los datos fue el relato de las secciones con los niños y las madres transcritos por las practicantes, después del atendimiento el psicoanálisis fue el referencial teórico elegido. Durante el proceso de intervención grupal se observaron cambios positivos en la relación madre-hijo y a través del espacio ofrecido en grupo se pudo trabajar con los conflictos vividos acerca de la deficiencia auditiva y del relacionamiento familiar.

Palabras clave: Psicoterapia de grupo; Pérdida auditiva; Psicología.


 

 

INTRODUÇÃO

Este relato de experiência profissional foi realizado por meio do estágio de grupoterapia oferecido a alunos do quinto ano do curso de Psicologia de uma universidade privada do interior paulista, acompanhado por supervisões semanais, cujo objetivo era atender à demanda da Clínica de Fonoaudiologia, que solicitou o trabalho psicológico para crianças deficientes auditivas atendidas no setor em função das dificuldades emocionais e relacionais encontradas na fonoterapia, além das provenientes do vínculo familiar.

O presente artigo tem o objetivo de compartilhar uma experiência prática de grupoterapia com crianças e seus familiares, em grupos separados, porém concomitantes, oferecendo um espaço tanto para as mães quanto para os filhos, favorecendo a expressão dos conflitos pessoais e relacionais vivenciados.

Para as crianças, o veículo de expressão dos sentimentos e relacionamentos se faz predominantemente por meio do componente lúdico. Dessa forma, o objetivo da realização de uma intervenção psicoterápica grupal infantil, além de oferecer um espaço lúdico que favoreça a expressão dos sentimentos, é auxiliar na reorganização das características psíquicas básicas de cada uma. Por serem crianças, ainda têm seu mundo psíquico em organização, isto é, por meio do brincar, a criança tenta dominar suas angústias, controlar seus instintos e obter prazer. Com isso, adquire mais experiência, proporcionando mais conhecimento de si mesma (B. S. Fernandes, 2003). Dessa forma, essa experiência possibilitou trabalhar a integração, as dificuldades relativas às frustrações e melhora nas sessões de fonoaudiologia. Quanto às mães, por meio do relato oral de suas vivências, a intervenção grupal também objetivou oferecer um espaço para acolher e refletir acerca das angústias e ansiedades vivenciadas na relação com seus filhos.

 

DEFICIÊNCIA AUDITIVA

A linguagem desempenha um papel essencial na organização perceptual, na recuperação, na recepção e estruturação das informações, na aprendizagem e as interações sociais do ser humano, sendo a audição um pré-requisito para a aquisição e o desenvolvimento da linguagem. Audição e linguagem são funções correlacionadas e interdependentes (Gatto & Tochetto, 2007) e, sendo essencial essa relação, fica evidente que as crianças sujeitos deste estudo apresentam uma restrição quanto à linguagem em função do déficit auditivo congênito que possuem. Porém, é importante ressaltar que a comunicação se faz de outras formas, como pela leitura labial e os gestos.

A deficiência auditiva constitui-se em qualquer distúrbio no processo de audição normal, independente da causa, tipo ou severidade. Pode ser congênita, ou seja, o indivíduo nasce com a doença, ou adquirida ao longo da vida (Bevilacqua, 1998). Consiste na perda parcial ou total da audição, podendo se apresentar na forma isolada - não sindrômica -, como nos casos de hipersensibilidade aos antibióticos aminoglicosídeos e presbiacusia, ou associada a outras doenças, como na síndrome de Kearns-Sayre, diabete e surdez de herança materna (Carvalho & Ribeiro, 2002).

Em crianças deficientes auditivas, o processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem pode ser prejudicado, caso não ocorra diagnóstico e intervenção em tempo adequado para evitar o atraso do desenvolvimento linguístico (Silva, Queirós, & Lima, 2006). Há que se destacar também a importância das interações sociais, especialmente entre seus familiares, para favorecer o desenvolvimento da linguagem (Brito & Dessen, 1999). Assim, o trabalho com os cuidadores das crianças com perda auditiva é essencial, no tocante aos aspectos da estimulação à linguagem e questões emocionais.

 

LIMITES NA RELAÇÃO PAIS E FILHOS

Quando a criança consegue perceber que existem direitos e deveres na relação com o outro e que, para conviver, é preciso observar e respeitar esses aspectos, ela está começando a compreender a questão de limites, processo que ocorre a partir da convivência familiar, dos modelos parentais que vão se expandindo para a relação de amizade, vizinhança, escola, entre outras.

Zagury (2003) destaca que colocar limites significa levar a criança a compreender que seus direitos terminam quando inicia o direito do outro, que é preciso aprender a tolerar pequenas frustrações desde pequeno. Essa tarefa compete predominantemente aos familiares. O limite é uma dificuldade encontrada entre os pais de crianças portadoras de deficiência auditiva pelo fato de não haver um diálogo efetivo para que isso ocorra, isto é, uma dificuldade de interagir e se comunicar com a criança, além de tentar suprir a deficiência não frustrando o filho (Castro, 1999). Nesse processo, a família, a escola e todas as formas de convivência social são importantes para a construção da autonomia. Inicialmente as regras são impostas, cobradas e posteriormente podem ser construídas.

Nas sessões de grupoterapia, as regras são estabelecidas na primeira sessão, quando se faz o enquadramento. A partir desse contexto, todo o trabalho se desenvolve, pelo sigilo, pelo estabelecimento do vínculo de confiança com o terapeuta e pelo desejo de continuar no grupo. Assim, na grupoterapia, além de propiciar um ambiente que favoreça a elaboração de conflitos, de reflexão acerca das angústias e ansiedades, também se reproduzem vivências das situações cotidianas acerca dos limites, por meio das regras que compõem o setting terapêutico.

 

GRUPOTERAPIA

A psicoterapia de grupo possibilita o alívio ou eliminação dos sintomas, o desenvolvimento de comportamentos mais saudáveis, o autoconhecimento e o desenvolvimento proporcionado pelo aprendizado que ocorre nas relações interpessoais e na vivência com o grupo, entidade que reproduz a sociedade em que vivemos (W. J. Fernandes, 2003).

Os principais objetivos das psicoterapias de grupos são: o aprimoramento dos processos de comunicação, a capacidade para identificar situações transferenciais e mecanismos de defesa, maior discriminação do mundo externo/mundo interno e individual/grupal, melhor qualidade de vida, maior percepção e elaboração das forças construtivas e destrutivas que existem dentro de si e no grupo (W. J. Fernandes, 2003).

O grupo de psicoterapia com crianças favorece a empatia, a cooperação e ajuda a lidar com dificuldades relativas à agressividade, competição e inveja (Cruz, Dias, & Mancebo, 2007). Assim também ocorre nas sessões de grupoterapia com adultos, porém com estes o trabalho é a partir da fala, enquanto as crianças utilizam o brincar por meio da "caixa lúdica", por exemplo.

As sessões são livres para adultos e crianças, iniciam-se a partir do enquadre, estabelecido na primeira sessão, por meio de algumas regras fundamentais: dia, hora, local e sigilo sobre todo conteúdo do grupo. Com o enquadramento, estabelecem-se as regras e os limites da sessão terapêutica. Assim, a interação se faz a partir do "contrato terapêutico".

Na terapia, quando a criança está brincando, ela recria o mundo ao seu redor, refazendo os fatos para adequá-los à sua capacidade de assimilação. Enquanto brinca, seu conhecimento do mundo se amplia, porque ela pode expressar tudo que sente e vê durante essa interação (Barros & Lutosa, 2009). É por meio do brincar que as crianças podem elaborar suas angústias e dificuldades diante das limitações que a deficiência traz, proporcionando assim, uma forma melhor de lidar, aceitar e se adaptar à sua realidade.

Quanto à grupoterapia de orientação psicanalítica com adultos, o processo ocorre por meio da associação livre e dos processos transferenciais entre paciente-terapeuta, grupo-terapeuta, paciente-paciente, paciente-grupo, de forma a compartilhar sentimentos e emoções, favorecendo uma reflexão no grupo e uma elaboração de conflitos internos.

 

MÉTODO

A intervenção com o grupo de crianças e mães ocorreu ao longo de oito meses, no período de abril a novembro de 2009, com duração de 50 minutos e frequência semanal. O recurso usado para a análise qualitativa dos dados foi o relato semanal das sessões com as crianças e com as mães, transcrito por cada estagiária após o atendimento.

A amostra foi constituída por três crianças, entre sete e dez anos, portadoras de deficiência severa, ou seja, incapazes de ouvir sons abaixo de 80 decibéis e que usam a linguagem gestual e a técnica de leitura labial para se comunicar. Os participantes foram identificados ficticiamente por uma letra, como destacado a seguir.

B., sexo feminino, nove anos, cursando o quarto ano do ensino fundamental em uma escola pública de inclusão. Apresentava dificuldades pedagógicas, além da dificuldade de lidar com o limite, característica comum entre todas as crianças do grupo. Faz uso do aparelho auditivo desde os dois anos de idade e é acompanhada pela fonoaudióloga há cinco anos.

M. E., sexo feminino, dez anos de idade, cursando o quinto ano do ensino fundamental em uma escola pública de inclusão. Apresentava dificuldade de lidar com limite e dificuldade de leitura. Faz uso do aparelho auditivo e realiza acompanhamento fonoaudiológico desde o primeiro ano de idade.

P., sexo masculino, sete anos, cursando o segundo ano do ensino fundamental em uma escola particular de inclusão. Apresentava dificuldades pedagógicas e de lidar com limites. Foi diagnosticado com deficiência auditiva com um ano e sete meses. Há cinco anos realiza acompanhamento fonoaudiológico e desde os seis anos faz uso do aparelho auditivo.

Além das crianças, participaram do estudo as suas mães, a saber: V., mãe de B., 44 anos, casada, dois filhos e trabalha como faxineira. F., mãe de M. E., 34 anos, divorciada, uma filha e trabalhava como vendedora de loja. R., mãe de P., 38 anos, solteira, um filho e trabalha como balconista em uma padaria.

Antes do início da intervenção grupal, foram realizadas entrevistas com as mães para o levantamento da história de vida de cada criança, para propor o trabalho em grupo e para a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em respeito às disposições éticas.

A análise foi realizada a partir do levantamento dos dados dos relatos das sessões que evidenciam reflexões e mudanças de comportamento das crianças e das mães durante o processo. Os fragmentos foram apresentados na discussão de forma a ilustrar o estudo, evidenciando os aspectos trabalhados neste artigo. A abordagem teórica foi a base psicanalítica.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

No decorrer das sessões de grupoterapia infantil, observou-se que as crianças se contiveram em relação aos limites estabelecidos, fato observado por meio do cumprimento do "contrato terapêutico", contrariando a principal queixa das mães. Também foi possível observar a socialização das crianças brincando juntas, principalmente nos jogos coletivos e ao guardar os brinquedos, como neste trecho da 1ª sessão:

Com a estagiária, as crianças colocaram os brinquedos na caixa, mas esta não fechou. Então tiravam os brinquedos da caixa, ajudando-a, e recolocavam de modo a caber todos, os mesmos colocaram a mão em cima da caixa para que esta fechasse, e conseguiram fechá-la.

Com o andamento das sessões, as crianças começaram a interagir espontaneamente, brincando e desenhando juntas, como exemplificado a seguir:

Haviam terminado de brincar, quando B. pegou uma folha para desenhar, logo em seguida P. foi desenhar também. (3ª sessão).

M.E. depois de brincar com os pinos mágicos foi até a caixa e pegou vários jogos, e B. resolveu brincar de damas e chamou a estagiária para jogar. A mesma chamou P. para jogar com ela, e logo em seguida M.E. também foi jogar. (5ª sessão).

Dos três componentes do grupo, um chamou bastante a atenção pelo seu desenvolvimento emocional, pois de início era resistente, isto é, interagia menos, gostava de brincar sozinho, situação que mudou a partir da 3ª sessão. Brincando com um carrinho estragado, ele pode trabalhar alguns aspectos de sua deficiência. A partir desse contexto, P. passou a controlar seus impulsos e respeitar as regras estabelecidas no setting terapêutico por meio do enquadramento inicial, conseguindo se socializar e apresentar resultados nas sessões de fonoaudiologia. Na terceira sessão, esse paciente, em meio a tantos brinquedos na caixa lúdica, escolheu dois carrinhos, sendo um guincho de tamanho pequeno e um carrinho grande. Ele sempre brincava com estes objetos nas sessões de forma que os dois carros se colidissem. "Havia momentos em que P. batia no carrinho da estagiária só para arrumá-lo e para que ela arrumasse o dele". (7ª sessão). Sempre que o paciente entregava o carro para a estagiária, este estava faltando uma peça. Analisando essa atitude do paciente no decorrer das sessões, percebeu-se que o carro sem uma peça poderia simbolizá-lo, como se sentia com a deficiência, "faltando uma peça". A entrega do carro com defeito parecia representar sua entrega aos cuidados da estagiária e a atitude desta em aceitar o carrinho sem a peça significou estar aceitando o paciente com suas dificuldades. Esse trecho evidencia o cuidado que a criança estava querendo com o seu carrinho defeituoso na brincadeira e, ao mesmo tempo, consigo na relação com a estagiária durante a sessão. O carrinho simbolizava que ele estava ali no trabalho grupoterápico com a expectativa de melhorar, crescer, desenvolver-se, ser cuidado em suas angústias e ser aceito pelo outro.

Nas sessões seguintes até a penúltima sessão, P. sempre tinha este movimento de montar/desmontar, arrumar/desarrumar e, com isso, ele pode trabalhar suas dificuldades e estabelecer um vínculo intenso com a estagiária: "pegou um chiclete do seu bolso, pediu para que a estagiária abrisse e lhe ofereceu" (9ª sessão). Esta foi uma forma que P. encontrou de agradecer, agradar a estagiária, uma vez que a atitude de uma criança em dar algo a alguém pode representar carinho, agrado. Esse gesto poderia ter inúmeros significados, porém, naquele contexto, pareceu significar um agrado à estagiária por aceitá-lo e por oferecer-lhe um espaço para trazer suas angústias e conflitos internos.

B. S. Fernandes (2003), com sua experiência em grupoterapia infantil, destaca que esta constitui um processo no qual a criança transmite sua ansiedade a um adulto compreensivo, que a acolhe emocionalmente, proporcionando com que se sinta melhor. Quando vivencia situações com alguém que consegue suportar sua dor e contê-la, faz com que sua própria capacidade de suportar a angústia aumente.

Outro aspecto interessante observado foi o traçado dos desenhos de P., que no início eram muito fortes e o conteúdo do desenho era sempre o seu carrinho (1ª, 2ª e 4ª sessões). No decorrer das sessões, esses traços ficaram mais leves e P. começou a desenhar dois carrinhos na folha (10ª e 11ª sessões), um da estagiária e outro dele. Dessa forma, o mesmo começou a interagir mais com a estagiária e com as crianças do grupo, como, por exemplo, emprestar o lápis, esperar sua vez para jogar. Diante dessas atitudes, percebeu-se que P. estava se vendo junto com o outro, permitindo aproximação. Assim, no decorrer das sessões, as relações estabelecidas, as experiências vivenciadas no grupo por meio do brincar, do desenho, foram se modificando e possibilitando novas formas de interação com a estagiária e as crianças do grupo, confirmando de certa forma a importância do espaço grupoterápico infantil.

Na última sessão (13ª) ele desenhou, além dos carros, nuvens, sol e um arco-íris, um desenho todo colorido, demonstrando a elaboração de suas angústias e conflitos. Lembrando que a formação do vínculo com a estagiária foi muito importante para que isso acontecesse, por ter confiado na mesma, que, por sua vez, soube agir de acordo com o tempo dele, realizando as intervenções necessárias.

Segundo Svartman (2003), há momentos na vida em que situações difíceis produzem montantes de emoções diversas que a nossa mente não consegue processar. Na intersubjetividade, nossa mente pode suportar sobrecargas que no isolamento poderiam detoná-la. Por isso estabelecemos vínculos com aqueles que intermediam nossa relação com o que vem de dentro de nós mesmos (dores, angústias, medos, anseios) e nossa relação com o que nos rodeia. São também nossa referência, personagens com quem nos identificamos.

Esses resultados evidenciam a importância e a eficiência da grupoterapia com crianças portadoras de deficiência auditiva. Por meio da ludoterapia, as crianças puderam elaborar seus conflitos internos através da simbolização e lidar com os limites e regras, o que contribuiu para a evolução das mesmas no tratamento fonoaudiológico.

A importância do brincar, do faz de conta, torna-se premente na criança com perda auditiva, pois, a falta de audição impede que perceba as alterações da voz, timbres, mudanças de tonalidades, malícias, etc., o que a deixa à margem da comunicação subjetiva. Dessa maneira, sua própria vivência de como lidar com fatos através dos brinquedos dá-lhe uma segurança maior no trato com a realidade, fazendo com que vivencie à sua maneira suas dificuldades e desejos em relação aos outros. Além disso, o trabalho em cima do brinquedo dá novo impulso à fala, pois prepara o intelecto da criança para o uso dos símbolos expressos por palavras, ou seja, o acesso à linguagem oral (Jucá, 2004. p. 143).

O grupo de mães, realizado concomitante ao grupo de crianças, ofereceu um espaço terapêutico enquanto esperavam os filhos. No decorrer das sessões, notou-se que a angústia e o medo eram contínuos, pois demonstravam em suas falas e gestos esses sentimentos. Ansiedades decorrentes da dificuldade em aceitar e lidar com a deficiência de seus filhos, ilustrada no trecho da quarta sessão, por exemplo. Nessa sessão, R. relata: "Às vezes acho que a culpa do meu filho ter a deficiência foi de alguma falha minha", M. diz: "Não é fácil, principalmente no começo, não sabia como agir".

É de nosso conhecimento que os pais, desde antes do nascimento do filho, possuam expectativas em relação ao mesmo. A presença de um filho com deficiência auditiva exigirá que cada membro familiar redefina seu papel diante de uma situação inesperada, quando necessitam se tornar pais especiais. Além de pressões internas, há também as externas, pois a sociedade em que vivemos demonstra dificuldade para conviver com diferenças, sendo que esta dificuldade de convívio ocorre também em relação à pessoa com deficiência auditiva, o que acaba por se estender a toda a família e na relação com a pessoa deficiente (Boscolo & Santos, 2005). Diante disso, observa-se a importância de cuidar dessas mães, que representam papel essencial na reabilitação de seus filhos, além de oferecer um espaço para orientação e acolhimento de suas dificuldades, angústias e medos.

Uma das dificuldades foi o estabelecimento de limites aos filhos, lidar com as reações deles diante do "não", ilustrado a seguir na fala de uma das participantes:

R.: Não aguento mais, pois ele me pede todo momento alguma coisa. Isso me deixa muito angustiada. Na semana anterior eu já havia dado um carrinho para ele e o mesmo queria outro, fazendo a maior birra e jogando o carrinho no chão. Começou a chorar sem controle. (11ª sessão).

Nesse momento, a estagiária acolhe sua angústia e pergunta como agiu, ela relata: "Acabei cedendo e dei o carrinho". Assim, conversam sobre "limite", a importância de a criança aprender a lidar com frustração.

Segundo Novaes (2005), educar crianças com deficiência auditiva é uma tarefa complexa que cria expectativas e leva ao enfrentamento de situações e dificuldades que deixam os pais, muitas vezes, confusos e sem saber como agir. Cada nova etapa de desenvolvimento da criança exige mudança de conduta para o atendimento de suas necessidades. As dificuldades e os conflitos peculiares de cada fase do desenvolvimento são temporários e, quando solucionados, geram descobertas e aprendizados para o filho e para os pais.

Durante as sessões com R., esta relatou mudanças: controle e autonomia nas atitudes do filho, ela passou a impor limites conseguindo dizer "não" em algumas situações. Portanto, podemos pensar que na vida existe o princípio do prazer e o princípio da realidade, mantendo a integridade do ego que controla o funcionamento mental. Segundo Freud (1980, p. 15):

É fácil ver que o ego é aquela parte do id que foi modificada pela influência direta do mundo externo, por intermédio do Pcpt.-Cs.; em certo sentido, é uma extensão da diferenciação de superfície. Além disso, o ego procura aplicar a influência do mundo externo ao id e às tendências deste, e esforça-se por substituir o princípio de prazer, que reina irrestritamente no id, pelo princípio de realidade. O ego representa o que pode ser chamado de razão e senso comum, em contraste com o id, que contém as paixões. Tudo isto se coaduna às distinções populares com que estamos familiarizados; ao mesmo tempo, contudo, só deve ser encarado como confirmado na média ou ‘idealmente’.

Estabelecer limites é uma prática educativa e dizer "não" constitui também um gesto de amor. É por meio dessa palavra que a criança começa a aprender a lidar com suas vontades, frustrações, quando não consegue realizar seu desejo pela imposição do "não" e passa a compreender a importância da espera para a realização do desejo. O limite na educação apresenta conotação usual e restritiva, sendo referente ao que é permitido ou não, de acordo com as regras de convivência social. A construção de limites está diretamente relacionada à capacidade da criança de se socializar e conviver bem com as pessoas, de forma que ela possa reconhecer e considerar seus próprios limites. A família é o alicerce dessa construção por ser a primeira instituição social com a qual a criança tem contato, por meio da qual se desenvolvem as primeiras noções de convívio e educação (Araújo & Sperb, 2009; Gonçalves & Gonçalvez, 2008).

Diante dessa necessidade, notou-se que as mães presentes nesse estudo mostraram uma dificuldade de impor limites a seus filhos, pensando que o ato de não deixá-los sofrer frustrações pudesse amenizar a deficiência auditiva, evidente na fala da mãe:

Fico com dó, penso que isso é o mínimo que poderia fazer, mas estou percebendo que não consigo dizer não, estou perdendo o controle da situação, não sei se é o correto.

Por meio dessas atitudes, percebemos que as mães tentam suprir as dificuldades dos filhos tentando evitar que sofram. Ao trabalhar questões de limites com a criança portadora de deficiência auditiva no grupo de orientação de pais, foi possível pensar e compartilhar o cotidiano, a relação com seus filhos, angústias e inseguranças foram expressas, possibilitando uma compreensão das dificuldades.

Com o passar das sessões, foi possível trabalhar as ansiedades das mães diante do desejo de ver a evolução de seus filhos no tratamento, pois se mostravam muito empenhadas em ajudá-los a superar suas dificuldades, como no fragmento a seguir:

Não sei, mas quero muito ver meu filho falar. Estes dias o mesmo balbuciou algumas palavras e fiquei muito feliz, pois percebo que ele está tendo evolução no tratamento. (13ª sessão).

A ansiedade ocasionada pelo medo, a angústia de ter um filho deficiente e não saber como ajudá-lo a superar suas dificuldades fizeram com que o trabalho com essas mães fosse essencial para saber lidar com a deficiência de seus filhos, inclusive auxiliando-os a progredirem no acompanhamento fonoaudiológico.

A ansiedade dos pais diminui à medida que o espaço terapêutico possibilita a elaboração de suas angústias e medos, de forma a manter sua integridade psíquica e o compromisso com seus filhos, dedicando-se a eles com amor. Os pais têm expectativas em relação aos filhos, mas, para enfrentar a realidade de ter um filho deficiente, é preciso entender que há um começo e, com ele, a expectativa de progressos (Oliveira, 2011).

Por meio do grupo de mães, algumas começaram a perceber esta realidade, a entrar em contato com o sentimento de culpa e se fortaleceram para colocar os limites necessários a seus filhos, trabalhar suas ansiedades diante das dificuldades, questões representadas nos fragmentos:

Depois que comecei a participar do grupo, senti que a relação com a minha filha melhorou. (A., 8ª sessão).

Consegui dizer não. Agora ele não faz mais birra, até a fonoaudióloga percebeu sua mudança. (R., 10ª sessão).

Ela (a criança) está outra. (R., 10ª sessão).

Hoje consigo ficar mais calma, a esperar de acordo com o tempo dele e não com o meu. (R., 10ª sessão).

Ela está fazendo todos os exercícios de fono sem eu precisar de ficar nervosa, acho que estou aprendendo a lidar com ela. (R., 8ª sessão).

Com isso, pudemos conhecer melhor os sentimentos e dificuldades apresentadas pelas mães e auxiliá-las na reflexão acerca de suas vivências e, principalmente, acolhê-las emocionalmente.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio deste estudo em grupo com as crianças deficientes auditivas e com suas mães, foi possível oferecer um espaço para que elas pudessem pensar na educação e convivência com seus filhos, buscando um desenvolvimento saudável quanto aos aspectos emocionais e relacionais junto às crianças. Segundo B. S. Fernandes (2003), precisamos pensar não só nas crianças, mas também em seus pais, que vivem no mesmo contexto. Muitas vezes eles sofrem, pois não sabem como lidar com a nova situação de conflito e, por isso, precisam também de ajuda para crescer enquanto pais e com suas próprias identidades.

Foi essa possibilidade de trabalhar as dificuldades na relação com os filhos que levou as mães a repensarem suas atitudes diante dos conflitos. Notou-se também que os resultados foram possíveis, devido ao trabalho nas duas instâncias, da família e dos filhos, possibilitando uma aproximação das angústias e anseios destas mães com as crianças por meio do acolhimento e da orientação.

Este artigo não pretende esgotar o tema e sim compartilhar a experiência com os profissionais da área. Neste estágio, os pacientes foram encaminhados pelo serviço de fonoaudiologia, podendo assim trabalhar seus aspectos emocionais, orientar e acolher suas mães, favorecendo o trabalho com as crianças nas sessões de fonoaudiologia. Além de abrir novas possibilidades de estudo, pesquisa e atuação psicológica em grupo, espera-se com essa intervenção integrar o atendimento com as crianças e seus pais, de forma a auxiliá-los na superação das dificuldades, elaboração de conflitos internos, favorecendo o desenvolvimento da criança tanto em questões físicas quanto emocionais. Estudos com esta temática e metodologia podem ser realizados junto à deficiência auditiva, visual, entre outras, buscando melhores condições de vida tanto às crianças quanto a seus pais.

 

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Endereço para correspondência
Cláudia Alexandra Bolela Silveira
E-mail: claudiabolela@hotmail.com

Recebido em 20/03/2012.
1ª Revisão em 20/05/2012.
2ª Revisão em 15/08/2012.
Aceite Final em 11/09/2012.

 

 

1 Natália Michelato Silva é psicóloga e especialista em Psico-oncologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Realizou aperfeiçoamento em Psico-oncologia pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP).
2
Fernanda Cevithereza Paiva é psicóloga e atua como Analista em Recrutamento e Seleção.
3
Cláudia Alexandra Bolela Silveira é psicóloga e pedagoga, Mestre em Ciências e Práticas Educativas e doutoranda em Promoção de Saúde pela Universidade de Franca (UNIFRAN). Docente e supervisora de estágios do curso de Psicologia da Universidade de Franca. Docente e membro da SPAGESP.